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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.71 no.4 São Paulo oct./dic. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000400002 

    TENDÊNCIAS

     

    Desmatamento, fogo e clima estão intimamente conectados na Amazônia

     

     

    Margareth CopertinoI; Maria Teresa Fernandez PiedadeII; Ima Célia Guimarães VieiraIII; Mercedes BustamanteIV

    IProfessora associada no Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (Furg)
    IIPesquisadora titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa)
    IIIPesquisadora titular do Museu Paraense Emilio Goeldi
    IVProfessora titular do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (UnB)

     

     

    A aparente homogeneidade da floresta amazônica engana os olhos de quem a visualiza de cima. O bioma, na verdade, abriga diversos tipos florestais, como matas de terra firme, florestas úmidas e secas, matas de várzea e de igapó, manguezais, campos inundados, além das áreas de transição com os biomas adjacentes. A biodiversidade e a vulnerabilidade de cada um desses tipos de vegetação aos impactos de secas, desmatamentos e queimadas diferem. As florestas primárias de terra firme são densas, perenes e adaptadas à água em abundância. A elevada densidade de árvores e suas copas frondosas mantêm uma alta umidade no solo e no ar, tornando esse ecossistema naturalmente resistente ao fogo. A ação humana, entretanto, altera o equilíbrio da floresta e sua resistência à seca e ao fogo, porque, uma vez derrubadas as árvores, o material do solo - como folhas e galhos - pode ser facilmente desidratado e incendiado. Distintamente da vegetação do cerrado, que pode se recuperar rapidamente após a queimada, a maioria das árvores das florestas primárias amazônicas não possui adaptações para resistir e se recuperar após o fogo, de forma que esses eventos costumam ser catastróficos.

    A partir da década de 1960, o incentivo à intensa ocupação da região Norte do Brasil promoveu o incremento nas taxas de desmatamento e de mudanças no uso da terra e alterou drasticamente o regime de fogo na Amazônia. Os desmatamentos crescentes causaram fragmentação das florestas e as queimadas usadas para preparo de área agrícola, que eram naturalmente bloqueadas pela umidade floresta, agora encontram fragmentos florestais e, assim, avançam sobre essas matas e empurram os seus limites ano após ano. Ainda, as mudanças climáticas afetaram a vulnerabilidade das florestas às queimadas diretamente, por meio do aumento da temperatura e redução da precipitação; e, indiretamente, pelas mudanças induzidas na estrutura da vegetação. As consequências são florestas menos densas, menos úmidas, mais inflamáveis e com menor capacidade de tamponar o fogo.

    O fogo tem sido usado tradicionalmente na agricultura e pecuária na Amazônia para o manejo e preparo do solo, pois é um método barato, acessível mesmo em áreas remotas, além de não demandar tecnologias ou maquinário. Embora a legislação proíba o uso do fogo na vegetação, ela abre exceção para essa prática em certas circunstâncias. De acordo com o artigo 38 do Código Florestal brasileiro (Lei nº 12.651/2012): "I - em locais ou regiões que justifiquem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, mediante prévia aprovação do órgão estadual ambiental". Assim, desde que dentro das normas e em pequena escala, o uso do fogo é legal, pois, em princípio, a prática pressupõe a possibilidade de retorno da floresta após o cultivo.

    Como desmatamento e fogo estão intimamente relacionados na Amazônia, seria esperado que, após o aumento registrado nas taxas de desmatamento no mês de julho de 2019 (80% comparado a julho de 2018), focos de queimadas aparecessem nas áreas mais desmatadas - fato confirmado em publicação recente na revista Global Change Biology. Mais da metade do desmatamento observado ocorreu em áreas privadas ou em em terras públicas em diversos estágios de posse (áreas sem destinação pelo Estado), enquanto o restante foi registrado em assentamentos (20%), unidades de conservação (19%) e terras indígenas (6%). Os resultados do sistema Prodes confirmam o aumento relativo nas taxas de desmatamento entre 2018 e 2019, o que já tinha sido previamente alertado pelo sistema Deter em julho de 2019. Ambos sistemas operacionais são complementares e pertencem ao programa de monitoramento da Amazônia do Instituto Nacional da Pesquisas Espaciais (Inpe).

    Embora em geral as queimadas na Amazônia sejam espacialmente limitadas às áreas desmatadas, de manejo agropecuário e próximas às rodovias, elas podem escapar ao controle. Nesses casos, podem provocar incêndios desastrosos que avançam sobre áreas florestadas, particularmente em anos de secas extremas, como nos em que se registra o El Nino - como aconteceu em 1997-98, quando 30% a 40% da Amazônia brasileira (5,5 milhões de km2) se tornou inflamável e 39 mil km2 de florestas pegaram fogo, contribuindo para a liberação imediata de 200-600 megatoneladas de carbono para a atmosfera em uma única estação. Nos anos 2000, mais de 85 mil km2 de florestas foram incendiados, a maioria durante os anos quentes e secos de 2005, 2007 e 2010. Para 2019, embora os climatologistas não tenham registrado seca severa, os focos de calor estão superando aqueles de anos anteriores.

    Além de conter uma mega biodiversidade, a Amazônia é um grande regulador do clima do planeta. A evapotranspiração da floresta alimenta os extensos "rios voadores" - correntes de jato que se formam na região equatorial do Oceano Atlântico e que percorrem as altas camadas da atmosfera (3-5 km de altura). A floresta retroalimenta esses rios de vapor d´água que transportam a umidade da Amazônia para o centro-oeste, sudeste e sul do Brasil. O desmatamento e queimadas alteram o equilíbrio desse ciclo hidrológico, reduzem a evapotranspiração da floresta, diminuindo as chuvas sobre a própria Amazônia e aumentando o risco de tempestades extremas no sul e sudeste do país.

    A Amazônia já entrou em um novo regime de clima mais quente e altamente variável, com estações secas mais prolongadas e intensas. A severidade das secas altera o regime de fogo, amplificando as queimadas para maiores porções da floresta e para além das áreas desmatadas para o manejo agrícola. Além de causar emissões imediatas de CO2, as queimadas constantes induzem mudanças na vegetação, reduzindo a capacidade natural da floresta em estocar e reciclar nutrientes, com enormes implicações para o ciclo global de carbono. Além disso, a remoção da floresta vem trazendo profundas consequências ao ciclo hidrológico da região, mudando os padrões de precipitação e de variação nos níveis do rios, com extremos de cheias e secas. Esse cenário é ampliado pelas mudanças climáticas e pelo uso indiscriminado do fogo. A combinação desses fatores está levando a floresta amazônica a um ponto de inflexão a partir do qual, especialmente os ecossistemas na Amazônia oriental, sul e central podem deixar de ser floresta, passando para um tipo de vegetação aberta, em um processo denominado de "savanização" [1].

    O gigantesco estoque de carbono contido na biomassa da floresta amazônica (100 petagramas ou 100 bilhões de toneladas de carbono) equivale a aproximadamente 370 bilhões de toneladas de CO2. O balanço de sequestro/emissões mostra que, entre 2003 e 2014, as florestas tropicais do mundo emitiram mais carbono do que absorveram da atmosfera. Os maiores balanços negativos, quando as emissões superam os valores de sequestro de CO2, foram observadas na América Latina, principalmente no Brasil - atualmente, o país é o oitavo maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, com 50% das emissões brasileiras provindas das atividades de desmatamento e agropecuária.

    A floresta amazônica resistiu a mudanças climáticas no passado e poderá se adaptar às mudanças futuras, desde que seu manejo e conservação sejam priorizados. Para isso, a manutenção de grandes áreas de floresta intacta é fundamental para preservar sua biodiversidade e controlar o fogo na região. Ainda, a restauração de áreas degradadas e a promoção do uso sustentável da biodiversidade, da água e de outros recursos florestais, além de melhorar a qualidade de vida das comunidades da região, poderá também auxiliar a redução da concentração de CO2 atmosférico do planeta e combater as mudanças climáticas.

     

    Referências

    1. Lovejoy, T. E.; Nobre, C. "Amazon tipping point". Sci. Adv., 4, eaat2340. 2018.