SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.71 issue4 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

    Related links

    • On index processCited by Google
    • Have no similar articlesSimilars in SciELO

    Share


    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.71 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000400004 

    BRASIL
    ARQUITETURA E URBANISMO

     

    O papel da universidade e os processos de transformação nas favelas

     

     

    Patricia Piacentini

     

     

    A favela do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, a primeira do país, surgiu no final do século XIX. Desde então, esses aglomerados subnormais, segundo denominação adotada oficialmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), têm sido uma das únicas opções para a população de baixa renda. De acordo com os dados do Censo do IBGE, em 2010, 11,4 milhões de pessoas moravam em favelas, o que representava 5,61% dos domicílios brasileiros (mais de 3 milhões). "Apenas em São Paulo, 11% dos domicílios estão localizados em favelas. No Rio de Janeiro, 22%, em Belém do Pará, 54%, ou seja, mais da metade da população vive nesse tipo de moradia", conta a arquiteta Camila D'Ottaviano, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Universidade de São Paulo (USP). "Historicamente, as favelas se caracterizaram por apresentarem casas autoconstruídas de forma precária, em terrenos ocupados. Porém, nesse mais de um século de história, elas se tornaram parte integrante da realidade das grandes cidades brasileiras", explica.

     

     

    A questão é que esses espaços, apesar de já consolidados nas metrópoles, ainda apresentam muitas carências, com condições que variam bastante de região para região. Ações públicas como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), direcionado para a urbanização de assentamentos precários, implantado em 2007, melhoraram o acesso à rede de água e esgoto em muitos desses locais, mas ainda há sérios problemas de infraestrutura. "Nos últimos anos, temos observado um adensamento crescente nas favelas, com a construção de pisos adicionais em antigas moradias e de novas moradias nos vazios existentes. Isso faz com que a maior parte dos cômodos não tenha qualquer tipo de iluminação e ventilação natural, impactando na salubridade dos espaços e na qualidade de vida de seus moradores", afirma D'Ottaviano.

    A autoconstrução é uma forma extremamente popular no Brasil e está muito associada à precariedade e à carência de moradia nas grandes metrópoles, já que a aglomeração de pessoas é muito maior do que em municípios menores, por exemplo. "Foi assim que milhões de pessoas puderam se estabelecer nas grandes cidades e constituir uma força de trabalho necessária ao surgimento dos grandes centros urbanos, tais como São Paulo. No entanto, essas pessoas construíram suas casas onde encontraram acesso: em glebas ou lotes irregulares, sem nenhuma infraestrutura urbana, afastados dos centros e dos locais de empregos. Negar acesso à cidade para essa grande população é um equívoco e um assunto de reparação histórica sobre o qual o Estado deve atuar", acredita Paula Custódio Oliveira, pesquisadora da FAU/USP.

     

    UNIVERSIDADE NA FAVELA

    É nesse contexto que se abre um espaço interessante para que a universidade pública possa atuar nos processos de transformação desses locais podendo contar, inclusive, com a participação da comunidade. Esse é o trabalho do coletivo multidisciplinar LabLaje, composto por arquitetos, advogados e geógrafos de diferentes universidades, que têm estudado e militado no tema da intervenção em favelas a fim de construir espaços mais justos, adequados, acessíveis, seguros e integrados à cidade. "É fundamental estimular a relação entre teoria e prática para construir uma visão mais crítica sobre as formas de intervenção que se propõem para esses espaços e suas comunidades", comenta Lara Isa Costa Ferreira, também arquiteta da FAU/USP que participa do coletivo.

     

     

    Uma das formas de atuação do grupo é por meio de oficinas nas favelas, como as que aconteceram nos últimos anos no Jardim Jaqueline, Zona Leste de São Paulo, onde vivem nove mil pessoas. Em uma dessas oportunidades os moradores aprenderam técnicas de conforto térmico. Foi o que aconteceu com Nívea Santos, moradora e líder comunitária no Jardim Jaqueline que hoje compartilha seu conhecimento com outras pessoas da comunidade. Em outro tipo de atuação, o LabLaje ajudou a comunidade em negociações com o poder público para conseguir obras de infraestrutura para a região. "Essas experiências de interação podem ser tanto para a construção de uma praça ou espaço de resistência em casos de remoção forçada, como no caso da Vila Autódromo no Rio de Janeiro", acrescenta D'Ottaviano.

    No Jardim Jaqueline, os técnicos e pesquisadores do LabLaje ajudaram as lideranças da comunidade a conhecer os aspectos incluídos na formalização da área, como o fato de ter rede de energia ou serviço de correios. A partir dessa parceria, a associação de moradores solicitou aos alunos da FAU/USP um projeto para a construção de uma praça no local. A conquista do espaço envolveu uma disputa de terra com um shopping vizinho ao bairro, além do esforço para conseguir recursos humanos e materiais para construir a praça. "Agora a gente sabe conversar com a prefeitura. Quando alguém mostra um mapa da favela, a gente sabe localizar a nossa casa, nossos vizinhos e amigos. Esse conhecimento nos permite falar: 'aí não pode remover não, aí tem gente morando!'", relata Nívia Santos no livro Dimensões do intervir em favelas (Peabiru TCA/Coletivo LabLaje, 2019), disponível em versão digital. "Minha meta, hoje, é ver finalizado o processo de regularização fundiária. A gente tem um compromisso com esse processo. Enquanto isso não acontece, a gente vai melhorando a comunidade pontualmente", destaca.

    Para Oliveira, a experiência do coletivo trouxe uma visão mais ampla sobre esses espaços. "Eles têm muito conhecimento, muita capacidade de se estabelecer perante as dificuldades. É comum que os próprios moradores não só construam suas casas, mas instalem também a infraestrutura urbana básica. Enxergo melhor agora que o meu papel enquanto profissional de arquitetura não se resume a transmitir conhecimento para solucionar as carências que grande parte da cidade ainda tem. A busca é agregar esse conhecimento popular à minha experiência, para que as possíveis soluções não sejam descoladas da realidade", finaliza a arquiteta.