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    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.71 no.4 São Paulo out./dez. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000400005 

    MUNDO
    ENTREVISTA: FRANCISCO VISSANI

     

    A importância de fortalecer a cultura científica

     

     

    Meghie Rodrigues

     

     

     

    Francesco Vissani tem riso fácil e boa prosa - o que faz parecer que física de partículas pode ser mais simples do que na verdade é. O físico italiano, que é diretor de pesquisa nos Laboratórios Nacionais de Gran Sasso no Istituto Nazionale di Fisica Nucleare (INFN), estuda o neutrino, partícula subatômica de carga neutra com massa quase inexistente que interage muito pouco com a matéria - e mesmo assim é uma das partículas mais abundantes no universo. Apaixonado por divulgação científica, Vissani integra a divisão de educação, divulgação e patrimônio da União Astronômica Internacional (IAU) e, em 2014, criou o Prêmio Asimov, que busca engajar alunos de ensino médio com divulgação científica na Itália. Eles escolhem, todo ano, o melhor livro de cunho científico publicado no país - dentro de uma seleção prévia de cinco livros feita por professores, cientistas, jornalistas e profissionais de diversas áreas engajados com divulgação científica. Os estudantes participam fazendo resenhas justificando sua escolha - e as melhores são lidas por seus autores na cerimônia de premiação. Em sua terceira visita ao Brasil, Vissani é o primeiro cientista convidado a participar do programa "Cesar Lattes" do Cientista Residente pelo Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em entrevista à Ciência & Cultura, ele fala sobre a natureza e a complexidade do estudo dos neutrinos e sobre a importância da divulgação científica no atual contexto de polarização política em âmbito mundial.

    Ciência&Cultura: Como é que descobrimos os neutrinos e qual a função deles na natureza?

    Vissani: É muito curioso como a possibilidade da existência do neutrino foi introduzida na ciência. Começou com o físico austríaco Wolfgang Pauli (pai da teoria do spin do elétron), que estava com problemas para entender alguns fenômenos que ele estava observando. No início do século XX, a radioatividade era estudada e alguns fenômenos não se conformavam de maneira alguma com o que entendíamos. Ao se desintegrar, alguns elementos não conservavam a mesma energia que tinham quando ativos. Se prótons, nêutrons e elétrons têm sempre a mesma massa, esses elementos deveriam se desintegrar com a mesma energia atômica que sempre tiveram. Mas isso não acontecia - alguns elétrons tinham mais energia, algumas vezes, menos. A energia atômica de todos os elementos deveria ser conservada - e alguém estava levando a energia embora. Essa foi uma questão séria durante algumas décadas. Pauli pensou, então, que isso talvez acontecesse "por ação de algum agente invisível, fantasma", mas não estava muito feliz com essa hipótese. A conversa evoluiu, a ideia foi refinada e descobriu-se que a "partícula fantasma" não era exatamente um fantasma, mas tinha uma interação muito fraca com a matéria e, anos depois, na década de 1950, pôde ser observada.

    C&C: Pode explicar isso melhor?

    Vissani: De acordo com o que sabemos, a energia é conservada em qualquer situação. Os neutrinos têm, digamos, sua parcela na composição dessa energia. Eles têm rotação, mas não têm carga elétrica. E são absurdamente minúsculos, mesmo em escala atômica. Se ampliássemos um átomo ao tamanho do planeta Terra, seu núcleo seria do tamanho de um campo de futebol - e o neutrino seria do tamanho de um vírus. Por causa do seu tamanho, ele atravessa a matéria sem perturbação (ou interação com ela) e é muito difícil "pegá-lo". Ele é tão difícil de detectar que, para fazê-lo, é preciso fazê-lo indiretamente, vendo seu efeito sobre outros átomos para perceber que ele está ali - além disso, é preciso muitos neutrinos para ver um só. O Sol, ao fundir hidrogênio em hélio, libera neutrinos no processo. Vemos a luz do Sol, que é o resultado dessa reação, que requer muita energia, e também libera luz. Se podemos ver o interior dos nossos corpos com máquinas de raios-x, conseguimos ver o interior do Sol com telescópios de neutrinos. Com o Borexino, detector de neutrinos que opera no Laboratori Nazionali del Gran Sasso, conseguimos ver praticamente todo tipo de neutrinos do Sol e as reações químicas acontecendo em tempo real, com elementos se transformando em outros e liberando energia em forma de neutrino - tal como no sonho de um alquimista.

    C&C: Além de "partícula fantasma", o neutrino já recebeu outros apelidos, como "partícula vampira". Por que isso?

    Vissani: É uma forma de falar de algumas propriedades desta partícula. O nome "fantasma" não é porque o neutrino morreu e voltou para nos assombrar (risos) e nem porque passa pelas paredes, mas porque passa pelo Sol e todo tipo de matéria - e esse é o melhor tipo de fantasma que se poderia ter. Sobre ele ser uma partícula "vampira", existe uma história curiosa. Ao contrário dos elétrons, que têm spins ou rotações em direções contrárias - para cima e para baixo, por exemplo - sendo, portanto, "espelhados", os neutrinos não funcionam assim. Tal como os vampiros, neutrinos não conseguem "se ver no espelho" porque só giram em uma direção. Essa é uma razão pela qual chamamos o neutrino de "vampiro". A outra razão é porque ele rouba energia de outras partículas. O neutrino, além disso, não é uma partícula estável, imutável. Um neutrino que "anda" junto de um elétron é chamado de elétron-neutrino. Saindo do Sol ele pode, no meio do caminho para a Terra, se transformar em um múon-neutrino, por exemplo - por passar a andar com um múon, o primo mais pesado do elétron. Essas observações renderam o Nobel de Física de 2015 a Takaaki Kajita e Arthur McDonald, físicos das universidades de Tokyo, no Japão, e de Queen's, em Kingston, no Canadá, respectivamente.

     

     

    C&C: O que não sabíamos à época do Nobel, em 2015, que sabemos agora?

    Vissani: É importante dizer que esse achado que rendeu o Nobel em 2015 nos mostra que a melhor teoria que temos para explicar o comportamento das partículas, o modelo padrão, não é uma teoria completa da natureza. De lá para cá, conseguimos entender melhor fenômenos que nos dão pistas sobre a massa dos neutrinos. E agora também conseguimos ver todos os neutrinos que estão sendo produzidos pelo Sol, o que também amplia nosso conhecimento sobre eles. Também há avanços numa área para a qual o físico brasileiro César Lattes (1924-2005) contribuiu muito, que é o estudo de píons - partículas instáveis que nascem da colisão de outras partículas de alta energia, como as presentes em raios cósmicos (Lattes foi o codescobridor do méson pi). Os píons decaem e se desintegram espontaneamente, produzindo neutrinos. Isso é algo que já sabíamos há algum tempo, mas não sabemos de onde vêm os raios cósmicos. Pode ser que os neutrinos que vêm junto com eles nos ofereçam algumas pistas sobre a origem desses raios cósmicos. Há um experimento no Polo Sul, no The IceCube Neutrino Observatory, financiado pela National Science Foundation (NSF), investigando isso.

    C&C: Você tem grande envolvimento com divulgação científica e criou o Prêmio Asimov alguns anos atrás. O que motivou a criação do prêmio e como tem sido o processo?

    Vissani: Quando eu era criança, costumava ler bastante sobre ciência e ficção científica. E acho que livros ainda têm uma vantagem sobre outros meios de comunicação porque te obrigam a parar e pensar para absorver o que está ali. A ideia do Prêmio Asimov é estimular estudantes a fazer isso. Hoje, centenas de escolas na Itália participam da premiação. É muito curioso porque os alunos que têm suas resenhas escolhidas são muito sérios e as pessoas ficam impressionadas com a articulação desses jovens. E os alunos que não têm resenhas tão boas são muito estimulados a melhorar. Praticamente não há dinheiro envolvido no prêmio, mas pagamos a viagem do autor da melhor resenha para se encontrar com o autor do livro vencedor em um festival de ciências onde eles podem passar algum tempo juntos. O processo todo é bastante artesanal - há uma placa de cerâmica feita à mão com a imagem do vencedor, que ele leva para casa. A ideia foi inspirada em um modelo parecido da Royal Society, no Reino Unido. A partir desse modelo eu pensei: "bom, isso poderia funcionar na Itália também!", e então resolvemos fazer - e tem dado certo.

    C&C: Falar de ciência e lutar contra a desinformação nos tempos que correm são tarefas cada vez mais difíceis. A desinformação sempre esteve conosco e não percebemos? Como falar de ciência de uma forma empática em meio a tanta polarização?

    Vissani: Muitas pessoas foram acusadas de bruxaria e mandadas para a fogueira por produzir sabonete caseiro artesanal na Itália do século XVII. Hoje em dia, descobrimos doenças e as tratamos com o conhecimento que temos. O que estou tentando dizer com isso é que as pessoas tentam seu melhor para reagir a situações que veem com a informação que têm. O importante é ter informação confiável - e o fortalecimento de uma cultura científica é absolutamente crucial para isso. Como cientistas, nosso papel na divulgação científica não é apenas noticiar descobertas para angariar mais financiamento para pesquisa ou soltar frases bombásticas para causar frisson na mídia - isto está realmente estragando as coisas. É importantíssimo que façamos bem nosso trabalho e que sejamos justos e comuniquemos nossas descobertas - e então as pessoas podem decidir o que pensar sobre isso, baseadas na melhor informação disponível. Há muita gente que delega o raciocínio a terceiros, mas eu acredito que as pessoas querem pensar e tirar suas próprias conclusões. Precisamos reportar o que estamos fazendo, não os devaneios do que gostaríamos de fazer. Penso que, para comunicar melhor a ciência, precisamos manter os pés no chão.