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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.71 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000400006 

    MUNDO
    SAÚDE

     

    Imunoterapia: a virada do sistema imunológico contra o câncer

     

     

    Diego Freire

     

     

    O sistema imunológico sofre duplamente com o câncer: primeiro, perde por não conseguir combater as células cancerosas, dotadas de mecanismos que burlam as defesas do organismo; depois, com tratamentos que, em geral, atacam as células indiscriminadamente, tumorosas ou não - incluindo as células imunológicas, enfraquecendo ainda mais a saúde. Mas o avanço da imunoterapia tem levado ao desenvolvimento de estratégias e tecnologias que estimulam o sistema imunológico do paciente para que ele mesmo combata diversos tipos de câncer, entre os quais os de pulmão, próstata e mama, alguns dos mais incidentes na população mundial e que têm se beneficiado da terapêutica.

    O surgimento de agentes anticancerígenos que atuam nos checkpoints imunológicos - o "ponto de partida" da resposta do organismo a agressores - transformou a oncologia, levando a respostas duráveis e melhorias na sobrevida global de pacientes com cânceres de pele do tipo melanoma, de rim, cabeça e pescoço, bexiga e pulmão, entre outros. Uma atividade clínica promissora também tem sido demonstrada no bloqueio da PD-L1, proteína expressa pelas células tumorais que pode indicar uma inibição das respostas imunes, permitindo que o tumor cresça e se espalhe para outros órgãos, gerando a metástase. Isso tem levado a resultados promissores no tratamento de alguns linfomas, carcinoma de pulmão e melanomas. Isso porque esses cânceres são capazes de driblar o sistema imunológico usando uma "camuflagem" ou "desligando" os mecanismos responsáveis por identificar que há algo errado com a célula. O tratamento, então, oferece ferramentas para que o sistema imunológico enxergue as células cancerígenas e as combata mais fortemente.

     

     

    Apesar de recente, o uso dessa terapia no combate a esses tipos de câncer tem acumulado resultados animadores. Os avanços são tantos que levaram os imunologistas James P. Allison, chefe da área de imunologia no MD Anderson Cancer Center, dos Estados Unidos, e Tasuku Honjo, da Universidade de Kyoto, do Japão, a ganharem o Nobel de Medicina em 2018. A premiação se deu pela descoberta, conduzida por ambos, de que o sistema imunológico pode ser usado para atacar as células cancerígenas: Allison descobriu que a proteína CTLA-4 pode parar o sistema imunológico e que havia como bloqueá-la para atacar as células tumorais; já Honjo revelou que a proteína PD-1 pode "parar" as células tumorais - e que esse mecanismo também podia ser controlado. Juntos, os especialistas desenvolveram medicamentos que permitem que o sistema imunológico enfrente as células cancerígenas.

     

    IMUNOTERAPIA MADE IN BRAZIL

    Muitas outras descobertas têm sido empreendidas desde Allison e Honjo - algumas das quais no Brasil. No Instituto Nacional de Câncer (Inca), o grupo do biomédico Martín Bonamino se dedica à descrição e ao estímulo das respostas imunes antitumorais avaliando os componentes imunológicos dos tumores. Para promover tais respostas, são desenvolvidas estratégias de imunoterapia alterando células do sistema imunológico por meio de cultivo celular e manipulação genética.

    Foi assim que, entre seus feitos mais recentes, o grupo desenvolveu protocolos para terapias com CAR-T cells, células de defesa extraídas do próprio corpo e moldadas em laboratório para se tornarem mais agressivas contra a doença.

    O processo, em geral, pode levar algumas semanas. Primeiro, as células T do sistema imunológico, grupo de glóbulos brancos (leucócitos) responsáveis pela defesa do organismo contra agentes desconhecidos (antígenos), são coletadas do sangue do paciente, por meio de um procedimento chamado leucoferese. Após a coleta, as células são geneticamente alteradas em laboratório para incluir um novo gene sintético, que contém uma proteína específica: um receptor quimérico de antígeno (CAR) que as direciona para atingir e destruir células cancerosas. Modificadas, elas são infundidas de volta ao paciente.

    A terapia CAR-T vem sendo desenvolvida e estudada desde a década de 1990 e, em países onde já é comercializada, chega a custar 350 mil dólares por paciente. Um dos diferenciais da técnica brasileira é que as células geneticamente modificadas também são capazes de reconhecer o vírus Epstein-Barr, envolvido em várias complicações hematológicas, desde a mononucleose até linfomas e quadros de proliferação celular descontrolada em pacientes com baixa imunidade, como transplantados com medulas ósseas.

    Outro diferencial é a forma como os pesquisadores fazem a mudança no gene das células T: em vez de utilizar um vírus para infectar a célula do sistema imune e promover a mudança genética, técnica mais amplamente utilizada, são empregados fragmentos não infecciosos de DNA. "Nosso grupo é um dos primeiros fora da Europa e Estados Unidos a conseguir levar o gene CAR para o núcleo da célula sem usar o vírus. E isso tem uma série de vantagens potenciais que estamos explorando, entre elas, a redução no custo", conta Bonamino.

    Resultados da etapa da pesquisa em animais foram recentemente publicados na revista Human Gene Therapy. Agora, o grupo se prepara para a etapa com pacientes. Além do Inca, o trabalho é conduzido em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o Centro Infantil Boldrini e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

     

    IMUNOTERAPIA TURBINADA

    Enquanto isso, novas pesquisas são conduzidas ao redor do mundo combinando a imunoterapia a outras estratégias terapêuticas. Na última edição do congresso anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco), em Chicago (EUA), o oncologista alemão Axel Hauschild, especialista em oncologia cutânea da Universidade de Kiel, na Alemanha, falou sobre uma análise combinada de seis estudos de neoadjuvância, a administração de agentes terapêuticos antes do tratamento principal, que avaliaram o benefício de imunoterapia pré-operatória para pacientes com melanoma. Os resultados, apresentados na programação do congresso da Asco, revelaram acentuadas taxas de resposta completa desse esquema, principalmente quando utilizada a combinação de dois imunoterápicos: nivolumabe e ipilimumabe. "A imunoterapia também demonstrou um benefício duradouro, uma vez que, após o uso de inibidores de checkpoints imunológicos, nenhum dos pacientes apresentou recorrência da doença durante o seguimento do estudo", diz Hauschild.

    Ainda em Chicago, o oncologista Sérgio Simon, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, comentou dados de atualização do estudo IMpassion130, que teve novas análises divulgadas durante o congresso, a respeito de sobrevida global - período durante o qual um paciente permanece vivo após o diagnóstico da doença ou o início do tratamento. Publicado no The New England Journal of Medicine, o estudo teve a participação de mulheres com um subtipo de câncer de mama metastático, que receberam tratamento com nab-paclitaxel associado a placebo ou a atezolizumabe, um inibidor de checkpoint imunológico antiPD-L1. As pacientes do grupo que recebeu a imunoterapia tiveram ganho de sete meses na sobrevida global.

    As perspectivas da imunoterapia são tantas que vão além do câncer, com desenvolvimentos nas áreas básica, translacional e clínica, e aplicações em diversas frentes de tratamento e prevenção de doenças infecciosas, autoimunes e crônico-degenerativas, vacinas, transplantes e terapia celular, entre outras. A comunidade brasileira de imunologistas recebeu cientistas de todo o globo para tratar dos inúmeros potenciais da área no ImmunoTherapy 2019, congresso que a Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI) promoveu em Florianópolis (SC), de 29 de setembro a 2 de outubro. "Ao entendermos que o sistema imune é o conjunto de células e moléculas responsáveis pela conservação da homeostasia tecidual por meio do reconhecimento de padrões de injúria celular e da manutenção de tecidos próprios ao organismo, podemos perceber que sua ativação envolve a participação de vários tipos celulares e mecanismos efetores presentes em diferentes órgãos e tecidos. Há uma regulação estreita de cada um dos efeitos gerados por esses componentes e a perda do controle da resposta imunológica pode levar ao aparecimento de um conjunto amplo de doenças, como alergias, inflamações, doenças autoimunes e o próprio câncer", explica o imunologista João Viola, pesquisador do Inca e presidente do comitê organizador do evento.

    Para Viola, mesmo diante dos avanços, há um longo caminho a ser trilhado até a ampla adoção da imunoterapia contra o câncer. "Apesar da grande revolução que as imunoterapias antitumorais estão imprimindo no tratamento de neoplasias, ainda temos muitos desafios pela frente. O primeiro deles são os seus efeitos adversos, pois como essas terapias estão baseadas na quebra da tolerância imunológica, muitos pacientes apresentam o desenvolvimento de doenças autoimunes", relata. Além disso, a resposta às imunoterapias não são homogêneas, variando entre pacientes e tipos de tumor. "Sendo assim, somente mais investimento em pesquisas na área poderá gerar novos conhecimentos que minimizem efeitos adversos e ampliem a eficácia terapêutica", defende.

    Viola ressalta ainda que "novas terapias costumam apresentar custo elevado devido à baixa competitividade da indústria farmacêutica, protegida por patentes - e esse é o caso da imunoterapia". A saída, acredita o pesquisador, é o incentivo à ciência brasileira, "que poderá reverter esse panorama em médio e longo prazo, com pesquisas direcionadas à nossa população e associadas ao desenvolvimento de tecnologia nacional".