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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.71 no.4 São Paulo oct./dic. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000400013 

    ARTIGOS
    MULTILINGUISMO

     

    Educação escolar indígena no Brasil: multilinguismo e interculturalidade em foco

     

     

    Edleise Mendes

    Professora associada da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde atua na graduação em letras e no Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura (PPGLinC). Possui variadas publicações na área da linguística aplicada, especialmente no âmbito da educação linguística, com especial interesse no ensino e na formação de professores de línguas, no desenvolvimento de materiais e abordagens com enfoque intercultural e decolonial

     

     

    CENÁRIO INICIAL: OS DESAFIOS DA DIVERSIDADE

    Em diferentes contextos de contato entre línguas e culturas, enfrentamos os desafios de compreender a diversidade através do modo como as pessoas, dependendo da situação, interagem com outras, comunicam-se e projetam suas identidades. No contexto contemporâneo do ensino de línguas, esses espaços cada vez mais complexos exigem de gestores, pesquisadores e professores a elaboração de políticas linguísticas que promovam a criação de áreas de diálogo intercultural capazes de construir a cooperação entre pessoas e sociedades. Nessa perspectiva, as línguas podem desempenhar um papel importante como mediadoras, atuando como espaços de negociação e construção de conhecimento, através da valorização da diferença e da promoção da diversidade.

    O Brasil é um país diverso do ponto de vista linguístico e cultural e está entre os dez países mais multilíngues do mundo, entre os quais estão a Índia, a Indonésia e a China, por exemplo. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foram registradas no Censo de 2010, 274 línguas indígenas faladas, e a essas se somam em torno de 50 línguas de imigração, além da Libras (Língua Brasileira de Sinais) e do português, que é a língua majoritária. Essa enorme diversidade representa um grande desafio para o sistema educacional, sobretudo quando consideramos as comunidades falantes de outras línguas que não o português, como as comunidades indígenas.

    De acordo com dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), a população indígena brasileira, desde 1500 até a década de 1970, decresceu bastante e muitos povos e suas línguas foram extintos, tendo a população indígena saltado de três milhões em 1500 para 70 mil em 1957 (tabela e gráfico 1). Embora os relatos históricos lamentem esse extermínio e ressaltem o impacto desse acontecimento para o Brasil, grande parte da população brasileira não percebe que, de certo modo, outras formas de extermínio continuam em curso no país.

    A partir da década de 1970, como mostram a tabela e o gráfico 1, a população indígena começou a crescer, principalmente, porque os mecanismos de monitoramento dessa população mudaram, com a inclusão dos indígenas no Censo demográfico nacional a partir de 1991.

    Os dados do último Censo demográfico realizado pelo IBGE mostram que, em 2010, a população indígena brasileira era de 817.963 pessoas, das quais 502.783 viviam na zona rural e 315.180 habitavam as zonas urbanas brasileiras.

    As comunidades indígenas estão espalhadas nas cinco regiões brasileiras, em todos os estados da federação, inclusive no Distrito Federal (DF). No entanto, é na região Norte onde há a maior concentração de indígenas, com 305.873 pessoas, o que representa 37,4% do total, como mostra o gráfico 2.

     

     

    No Norte, é o estado do Amazonas que apresenta o maior número de indígenas, representando 55% do total da região. A região Nordeste é a segunda com maior concentração de indígenas, com 25,51% em relação ao total nacional. O Sul, por outro lado, apresenta a menor concentração de indígenas do país, com 9,1% do total.

    As comunidades indígenas, apesar de contarem com um maior monitoramento e proteção do Estado do que há algumas décadas, ainda convivem com muitos problemas, entre eles o acelerado processo de mudança social, causado, sobretudo, pelo contato e aproximação com outras comunidades não indígenas. Como resultado, essas comunidades vivem a constante ameaça de invasão de suas terras, a falta de recursos para o seu sustento devido à degradação ambiental, a pobreza, a prostituição, o alcoolismo, entre outros problemas. Esses aspectos afetarão diretamente a organização escolar dessas comunidades.

    Nos últimos anos, por exemplo, temos assistido a uma regressão das políticas de proteção à população indígena, sobretudo a partir de 2016, quando os interesses e ações governamentais voltam-se para o estudo de novas formas de exploração das áreas demarcadas e para a revisão de direitos já assegurados a essas comunidades, criando insegurança e incerteza. Nesse cenário, mais uma vez, a questão educacional passa a ser secundária, visto que há lutas mais urgentes a serem travadas pela sociedade, como a proteção das reservas naturais contra a exploração predatória e a defesa dos modos de vida de muitas comunidades indígenas que hoje estão sendo afetadas.

     

    A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DIFERENCIADA, INTERCULTURAL, BILÍNGUE/MULTILÍNGUE E COMUNITÁRIA

    A partir da Constituição Federal de 1988 [1], a realidade para os indígenas mudou porque eles deixaram de ser vistos como seres incapazes, tutelados e beneficiários de políticas assistencialistas, para tornarem-se valorizados de acordo com suas diferenças e com sua pluralidade étnica, linguística e cultural. A partir desse momento, novas políticas e ações, baseadas em visões conceituais e jurídicas mais democráticas e respeitosas em relação à diversidade, passaram a ser implementadas, assegurando às comunidades indígenas o direito de preservarem as suas línguas e culturas, a viverem em suas terras e a terem, consequentemente, uma educação diferenciada.

    Às comunidades indígenas, desse modo, foi assegurado o direito a uma educação específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária, de acordo com a legislação nacional que estabelece as bases da educação escolar indígena brasileira. Ainda de acordo com a Constituição Federal de 1988 e a Lei Nacional de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, 1996), a coordenação nacional das políticas de educação escolar indígena é de responsabilidade do Ministério da Educação (MEC), e cabe aos estados e municípios realizarem ações para garantir esse direito aos povos indígenas. No entanto, a maneira como as políticas são organizadas para essas escolas tem sido desigual, inconstante e irregular, dependendo da região e do governo estadual ou municipal que as executa.

    Segundo a Funai, um dos maiores desafios da política indigenista brasileira, incluindo a política educacional, "é melhorar a integração e sinergia das ações do governo federal em parceria com estados, municípios e sociedade civil, com vistas a maior eficiência e eficácia das políticas" [2]. O fato é que passados mais de 30 anos da promulgação da Constituição de 1988, os povos indígenas ainda enfrentam muitas dificuldades e conflitos, sobretudo, como já ressaltei anteriormente, pela constante invasão de suas terras por madeireiros, garimpeiros, agropecuaristas, empresas de exploração de minérios, entre outros, sempre orientados pelo lucro, em detrimento das vidas e da preservação dos povos indígenas e suas línguas e culturas.

    Na área de formação de professores, o acesso crescente ao ensino superior nos últimos 10 anos, através de vagas complementares e/ou vestibular específico, além do estabelecimento de cursos especiais para a formação de professores indígenas no nível superior - as licenciaturas interculturais indígenas - têm contribuído para melhorar o panorama. Uma das ações importantes nesse campo, implementada em 2013, é o Programa Bolsa Permanência MEC (MEC/Funai), que fornece apoio financeiro a estudantes indígenas que ingressam no ensino superior, como meio de suprir a dificuldade que eles têm em se manter nas cidades ao longo do seu período de curso, sobretudo porque a maior parte deles é egressa de comunidades com poucos recursos financeiros.

    Apesar desses avanços e de boas perspectivas de aprimoramento, a educação indígena e, consequentemente, a atuação das línguas indígenas nas escolas não é uma constante em todo o país. De acordo com dados do Censo Escolar 2018 [3], há 3.085 escolas indígenas no Brasil, com 285 mil estudantes e em torno de 20 mil professores. No entanto, esses mesmos dados mostram que há apenas 1.961 professores indígenas formados pelas licenciaturas interculturais indígenas para atuar especificamente nessas escolas. Ainda que os números sejam tímidos, diante do quantitativo total de professores, o surgimento dessas licenciaturas foi um grande ganho para a educação indígena nacional.

    O Ministério da Educação (MEC), através de uma iniciativa que reuniu duas de suas secretarias - a Secretaria de Educação a Distância, Alfabetização e Diversidade (Secad) e a Secretaria de Educação de Ensino Superior (Sesu) -, criou, a partir de 2000, o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind), que tem como objetivo "apoiar financeiramente cursos de licenciatura especificamente destinados à formação de professores de escolas indígenas, as chamadas licenciaturas indígenas ou licenciaturas interculturais" [4].

    A partir do trabalho do Prolind e de especialistas convidados para discutir a questão da formação superior de professores indígenas, surgiram, em 2005, as diretrizes político-pedagógicas do Prolind, publicadas no edital n.º 5/2005/ Sesu/Secad-MEC. A partir desse primeiro edital, diferentes instituições de nível superior públicas (federais e estaduais) enviaram seus projetos. Hoje, são pouco mais de 20 instituições que oferecem essas licenciaturas. Isso se dá pelo fato de que somente nos anos de 2008 e 2009 foram lançados outros instrumentos, como o primeiro edital de 2005, possibilitando a criação de novos projetos [4].

    Além dessa iniciativa, é importante salientar o permanente e importante trabalho de formação de professores desenvolvido por muitos estados e municípios, sobretudo da região Norte do país, mas não somente, nos diferentes projetos dos magistérios indígenas, muito anteriores à implantação das licenciaturas interculturais indígenas. Tal trabalho tem sido desenvolvido, sobretudo, a partir da década de 1990, embora os dados a esse respeito sejam de difícil consolidação. Considerando-se informações atuais, por exemplo, ressalto a atuação da Secretaria de Estado da Educação do Governo do Amazonas, que, dentro do Projeto Pirayawara, alcançou, em 2019, 37 municípios do estado e formou, até o momento, 288 professores, projetando para 2020 mais 424 docentes que receberão o diploma do magistério indígena. Esse projeto tem como principal objetivo "a formulação de uma política que atribua lugar e função à escola indígena, com o intuito de proporcionar a formação desses professores com efetiva participação da comunidade" [5]. Com um currículo diferenciado, com base em uma metodologia que valoriza os conhecimentos tradicionais das comunidades beneficiadas, o projeto atingiu os indígenas das etnias Baré, Tukano e Makunadeb.

    Apesar dessas importantes iniciativas, ainda é necessário que as comunidades indígenas ampliem o número de professores formados para trabalhar na rede escolar por meio do ensino superior. Isto se dá porque, embora as ações das secretarias estaduais (através dos magistérios indígenas) e as licenciaturas interculturais indígenas venham contribuindo para a formação de professores para atuarem nesse contexto específico, em diferentes idiomas e em diferentes partes do país, as oportunidades e vagas ainda são insuficientes para atender às necessidades das comunidades indígenas em todo o Brasil, de modo a assegurar, de fato, uma educação bilíngue e intercultural.

    Considerando-se, por exemplo, a criação das licenciaturas interculturais indígenas, em 2005, somente nos anos de 2008 e 2009 foram abertos outros editais para a inclusão de novos projetos e a consequente participação de novas instituições de ensino superior públicas, federais e estaduais. Isto não significa, necessariamente, um retrocesso em relação a uma política de formação específica para professores indígenas, mas sim uma certa estagnação ou lentidão em relação ao atendimento das demandas nacionais. Se considerarmos o crescimento do número de estudantes indígenas que avançam na escolarização e alcançam o ensino médio, podemos antever uma grande defasagem entre as oportunidades de vagas oferecidas e um grande público potencial que poderia estar sendo formado para atuar nas mais de três mil escolas indígenas do Brasil.

    Outro grande e importante desafio relaciona-se à produção de materiais bilíngues, que considerem as línguas maternas de cada uma das comunidades beneficiadas, ao invés do uso de materiais genéricos, produzidos em escala nacional, e que não atendem aos anseios das comunidades escolares. Esse aspecto tem sido um grande impedimento para que os objetivos de uma educação indígena multilíngue e multicultural se efetive.

    Tokarnia, que entrevistou gestores e professores da rede escolar indígena, registra que "ir para a escola e assistir aulas em outro idioma, não conhecer a própria história, aprender a história de outro povo e ter exemplos estranhos à realidade em que se vive é uma situação que parece irreal" [6]. Essa, no entanto, é a realidade de muitas crianças e jovens indígenas, ela afirma.

    O Censo Escolar de 2015 também mostrou que pouco mais de 50% das escolas indígenas têm materiais didáticos específicos para o grupo étnico, embora os relatos de professores, gestores e pesquisadores, em muitas partes do país, afirmem que esse número é muito mais baixo do que o apontado pelo Censo.

    O terceiro grande desafio, que afeta diretamente a implementação dos aspectos já ressaltados anteriormente, é a criação de um sistema de avaliação escolar indígena eficiente, que possa acompanhar e avaliar o desempenho dos diferentes agentes no sistema escolar, desde a efetivação dos planos políticos e pedagógicos estabelecidos pelas redes municipais e estaduais até o desempenho dos agentes em cada contexto escolar, como gestores, professores, entre outros.

    Ao apresentar as ações desenvolvidas pelo Instituto Nacional de Evaluación Educativa (Inee) do México, Schmelkes [7] ressalta que o objetivo de toda avaliação educacional deve ser contribuir para a melhoria da educação, desse modo:

    "[…] avaliações com uma abordagem intercultural devem servir para a melhoria da qualidade do ensino e da aprendizagem, bem como outros indicadores educacionais como acesso escolar e retenção, com o objetivo de diminuir a iniquidade nesses indicadores e no desempenho educacional, e para promover o desenvolvimento de uma sociedade que valoriza sua diversidade" [7]

    Esse breve cenário nos mostra que falta um incremento de políticas mais efetivas para que a educação escolar indígena, tal como assegurada em lei, possa de fato se efetivar. Como ressalta Sobrinho [8], as escolas indígenas não podem ser vistas como um conjunto homogêneo e singular, visto que elas possuem um histórico de implantação diferenciado em cada comunidade, pois são reivindicadas por seus povos a partir de interesses e necessidades distintos, apesar das finalidades educacionais serem comuns. Desse modo, a escola, "sendo uma instituição de origem não indígena, é ressignificada pelos povos indígenas de acordo com seu projeto societário, e a legislação em vigor garante-lhe um tratamento diferenciado, de acordo com as especificidades de cada povo" [8]. Nessa perspectiva, toda a organização escolar deve respeitar as especificidades de cada comunidade, as quais devem ser evidenciadas nos currículos, nos materiais didáticos produzidos, nas abordagens de ensino, na avaliação e na formação de professores, entre outros aspectos.

     

    UMA ESCOLA BILÍNGUE E INTERCULTURAL? ALGUNS APONTAMENTOS CRÍTICOS

    Nas últimas décadas, muitos estudos e pesquisas desenvolvidos no campo do ensino/aprendizagem de línguas e de outros conteúdos escolares têm-se dedicado a discutir a importância da cultura e das relações interculturais como dimensões integrantes do processo de aprendizagem. Essa preocupação tem como princípio o fato de que ensinar e aprender no espaço escolar são processos complexos, que envolvem mais do que ensinar conteúdos, mas significam a construção de conhecimento partilhado, produzido em espaços híbridos de negociação cultural e identitária. Nesses espaços de negociação, as línguas representam um papel muito importante como mediadoras interculturais. Para se compreender esse papel, é importante que compreendamos o sentido que damos à língua nesse contexto.

    A língua não faz parte da cultura ou vice-versa, a língua é a própria cultura - uma linguacultura. Assim, olhar para a língua é olhar para os indivíduos que a utilizam e os contextos histórico, cultural, político e econômico em que as interações ocorrem. Além disso, produzir conhecimento sobre a língua e dentro dela é necessariamente olhar para o que está além dela. Uma linguacultura é o próprio lugar de interação, é prática social, é o modo como somos e agimos no mundo, e que não se mantém presa a uma ideia de país ou nação. Ela representa uma certa maneira de interpretar a realidade e de inserir um grupo social no mundo que o cerca.

    Da mesma forma, a cultura não é algo que está fora do que produzimos ao vivê-la. Não é apenas um conteúdo a ser ensinado e transmitido de pai para filho, como um baú de recordações. A cultura precisa ser entendida como uma rede, uma matriz geradora de sentidos, como uma complexa rede de significados que são interpretados por elementos que fazem parte da mesma realidade social, que a modificam e são modificados por ela. A cultura é uma dimensão que não existe sem a realidade social que lhe serve de ambiente - é a vida em sociedade e as relações dos indivíduos que moldam e definem os fenômenos culturais, e não o contrário [9, 10, 11, 12, 13].

    No caso do Brasil, não existe uma cultura brasileira singular, mas culturas que interagem no mesmo espaço de convivência, experimentando movimentos de aproximação e de tensão, regulados pelas relações de poder e pelo trânsito de identidades. A cultura brasileira, como todas as culturas, é um caleidoscópio, uma multiplicidade de referências que são interpretadas por todos aqueles que dela se aproximam. As comunidades indígenas, dentro desse caleidoscópio, ampliam esse caráter complexo e multidimensional.

    Considerando esses princípios e ideias, podemos entender que o intercultural não existe como algo que está pronto, visto que precisa ser criado, construído, cultivado. Nesse sentido, a dimensão multicultural das sociedades contemporâneas é uma realidade, mas a ação intercultural precisa ser construída, porque ela não existe senão através do desejo e do trabalho humanos.

    A interculturalidade, portanto, é um esforço e uma ação, ambos compostos por um conjunto de atitudes capazes de:

    a) estimular comportamentos comprometidos com princípios que defendem o respeito ao outro, às diferenças, à diversidade linguística e cultural que caracteriza todo processo de ensino / aprendizagem;

    b) promover a interação, a integração e a cooperação entre indivíduos de diferentes contextos culturais, criando áreas de negociação, de interseção - um entrelugar;

    c) contribuir para a erradicação de todos os tipos de discriminação, de preconceito e de atitudes que ofendem e prejudicam os indivíduos e/ou seus direitos básicos e universais, nos espaços de sala de aula e também fora deles.

    A partir dessa breve discussão, podemos compreender que para assegurar a construção de um espaço intercultural dentro das escolas indígenas é necessária a construção de uma abordagem de ensino intercultural que, entre outras coisas, forneça a professores e alunos o ambiente necessário para que as experiências de ensinar e aprender sejam também experiências de exploração, de análise, de observação crítica de pessoas, situações e ações. A sala de aula deve ser, nesse sentido, um ambiente propício para a constante observação e análise, transformando cada professor e cada aluno em etnógrafos da sua própria experiência.

    O trabalho desenvolvido pelo Curso de Licenciatura Intercultural Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável, implantado no campus de São Gabriel da Cachoeira da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), no Alto Rio Negro, é um exemplo de como é possível a construção de um projeto diferencial que, entre outros aspectos, respeita e inclui as especificidades das comunidades indígenas envolvidas, com a participação direta das próprias comunidades. Com a parceria da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e da Secretaria Municipal de Educação de São Gabriel da Cachoeira (Semed/SCG), o projeto foi discutido amplamente com as comunidades indígenas de 2005 até ser implantado, em 2009. O curso foi organizado de acordo com o território das três línguas cooficiais do município - nheengatu, tukano e baniwa -, ofertando cento e vinte vagas, inicialmente, distribuídas em três turmas de quarenta alunos cada uma.

    Além da participação direta das comunidades na construção do projeto, desde o início, essa iniciativa inovou no modo como concebeu a estrutura curricular do curso, através da metodologia do "ensino via pesquisa", possibilitando que os diferentes projetos fossem realizados nas línguas de instrução do curso. Desse modo, essa perspectiva metodológica valoriza a diversidade linguística e cultural, favorecendo a apropriação dos conhecimentos pelos professores em formação de modo dinâmico, ativo e contextualizado, revertendo, de acordo com Faria e Oliveira [14], "o processo de colonização de conhecimento a que foram historicamente submetidos. Caminha-se, desse modo, para um cenário de descolonização do saber, regido pela pluralidade e pelo reconhecimento da autodeterminação dos povos indígenas" (p. 97).

    O ensino via pesquisa apresenta uma visão de currículo aberto e que se estrutura a partir de problemáticas formuladas pelos próprios alunos, para serem depois trabalhadas processualmente, à medida que eles avançam em sua formação. Desse modo, as pesquisas permitem o desenvolvimento de habilidades variadas, sendo os alunos o centro do seu próprio desenvolvimento intelectual. O foco do currículo, então, é identificar e discutir os interesses e os contextos de vida dos discentes, para que se formulem, a partir desses interesses e contextos, as pesquisas que desenvolverão. Assim, o currículo organiza-se de modo post-factum, "porque somente ao final do curso, cumprida uma carga horária pré-estabelecida e realizados os requisitos de produção (monográficos, trabalhos de conclusão de curso etc.) é que se tem uma descrição completa dos conhecimentos e procedimentos utilizados" [14, p. 86].

    A experiência da Licenciatura Intercultural Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável da Ufam nos mostra que um dos modos de assegurar uma educação indígena diferenciada, intercultural e bilíngue é respeitar aquilo que está posto em toda a legislação específica, e também em muitos projetos que foram propostos a partir de 2005, mas que não se efetiva de fato, que é a construção do conhecimento a partir da experiência dos professores em formação e das especificidades das comunidades em que irão atuar. Parece óbvio? Mas a realidade nos mostra que não.

    Nesse sentido, a interculturalidade só pode acontecer como uma construção coletiva, como um espaço que emerge do compartilhamento de saberes, dentro do qual as línguas dos alunos serão vetores importantes. Como nos dizem Faria e Oliveira [14] (2012, p.91):

    "[...] a visão pedagógica do ensino via pesquisa do curso de licenciatura é complementar à política linguística que busca garantir soluções plurilíngues para uma região plurilíngue, garantindo, ao mesmo tempo, que as línguas indígenas não só não sejam deslocadas pelo português nos seus ambientes tradicionais de uso, mas ainda que sejam potencializadas como línguas de trabalho, como línguas de produção científica e como línguas de administração, para citar apenas alguns dos seus novos usos, em conformidade com a legislação vigente. Por isso, uma das tarefas da licenciatura é a da equipagem das línguas indígenas, tanto as das etnias presentes no curso, e na qual os alunos trabalharão nas suas respectivas comunidades (línguas de trabalho), como, e muito especialmente, das línguas cooficiais, que na licenciatura têm caráter de línguas de instrução. Por equipagem linguística entende-se a criação de instrumentos linguísticos capazes de propiciar, a estas línguas, variados usos em variados contextos, conforme forem exigidos pelas comunidades de falantes." (p. 91)

    No entanto, a experiência diferencial que usei como exemplo não representa uma constante nas políticas e projetos que formam professores indígenas em âmbito nacional. No contexto escolar indígena, de modo geral, a interculturalidade tem sido um dos pontos de apoio de leis e ações dentro das políticas educacionais planejadas para a área, mas ela se faz presente, na maior parte do Brasil, apenas nos discursos e nas intenções, pois não se concretiza de fato. Como aponta Silva [15],

    "A interculturalidade teve e tem tido seu lugar nas pautas políticas com o discurso de que seria um dispositivo de diálogo no empoderamento das minorias, onde estas no domínio de seus códigos específicos e dos códigos ocidentais poderiam pleitear seus espaços na sociedade e economia. Mas que empoderamento e que diálogo é este sem autonomia? Que diálogo é este que tem como premissa que o outro se curve aos conhecimentos que eu julgo importante? Que diálogo é este onde eu dou as cartas do funcionamento? Como eu proponho um currículo diferenciado e específico e em seguida eu aplico um exame em molde nacional para medir a qualidade desta escola?" (p. 5)

    Num espaço educacional onde a interculturalidade seja o eixo organizador de práticas pedagógicas, cada participante envolvido no processo de ensino/aprendizagem é um mediador cultural entre o seu próprio modo de ser e agir e o do outro com o qual está dialogando. No entanto, para que esse diálogo seja possível e funcione verdadeiramente como meio de integração intercultural, é necessário que cada comunidade seja respeitada, de fato, em suas especificidades, e para isso as línguas maternas jogam um papel fundamental, como pontes de acesso ao outro mundo representado pela língua portuguesa. Respeitar e incluir as especificidades das comunidades indígenas, e como fazer isso, tem sido, de acordo com pesquisadores, professores e especialistas da área, a grande questão a ser respondida quando está em jogo a educação escolar indígena.

     

    PARA FINALIZAR, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

    Após a breve discussão desenvolvida neste artigo, podemos destacar que as leis brasileiras, em suas diferentes dimensões, asseguram hoje às comunidades indígenas direitos importantes, entre eles o da educação específica, diferenciada, intercultural e bilíngue. No entanto, como ressaltam muitos pesquisadores da área, entre eles Sobrinho [8], após mais de 20 anos da LDB, os avanços advindos das políticas públicas ainda são insuficientes para garantir a efetividade dos direitos indígenas na esfera educacional, sobretudo na implementação das escolas interculturais indígenas tal como asseguradas pela lei.

    Nesse sentido, as instituições governamentais nacionais, estaduais e municipais precisam encontrar uma sinergia, um caminho de cooperação conjunto, e por meio da avaliação constante, implementar políticas de educação indígena que enfoquem as especificidades das línguas e culturas de cada comunidade. Para fazer isso, elas devem enfrentar, em minha opinião, quatro grandes desafios:

    Desafio do conhecimento: educar indivíduos capazes de mobilizar, produzir e compartilhar conhecimento em contextos multiculturais e multilíngues, discutindo e avaliando que tipo de conhecimento é relevante e necessário para a comunidade indígena em foco;

    Desafio profissional: formar e capacitar professores de línguas de cada comunidade, com o objetivo de preparar agentes capazes de modificar a realidade que os cerca, produzindo seus próprios currículos, materiais e abordagens pedagógicas adequadas ao seu contexto pedagógico;

    Desafio social: promover o acesso à educação plurilíngue para estudantes com menos acesso à educação de qualidade e provenientes de comunidades com baixos níveis de desenvolvimento social, contribuindo para tornar o espaço escolar mais inclusivo e democrático;

    Desafio político: considerar a presença e a representatividade necessárias das diferentes línguas e culturas em interação no espaço comunitário, e não apenas aquelas que são línguas de instrução escolar, como o português.

    A diversidade humana e as diferenças entre nós representam o nosso maior potencial criativo. Nesse sentido, devemos fazer da educação linguística um caminho para a emancipação cidadã, um espaço para a construção de diálogos interculturais, capazes de contribuir para o combate à injustiça social e à discriminação.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Brasil. 1988. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Artigos 210 e 231. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: fev. 2019.

    2. Funai. Ensino Superior Indígena. Disponível em: https://ensinosuperiorindigena.wordpress.com/rede/. Acesso em set. 2019.

    3. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep. 2019. Sinopse Estatística da Educação Básica 2018. Brasília: Inep, 2019. Disponível em: http://inep.gov.br/web/guest/sinopses-estatisticas-da-educacao-basica. Acesso em: fev. 2019.

    4. Prolind. Ensino Superior Indígena. Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas. Disponível em: https://ensinosuperiorindigena.wordpress.com/atores/nao-humanos/prolind-2/. Acesso em: set. 2019.

    5. Secretaria de Estado da Educação. Governo do Amazonas - Seduc. Disponível em: http://www.educacao.am.gov.br/2019/09/professores-recebem-diploma-de-magisterio-indigena-no-municipio-de-japura/. Acesso em: set. 2019.

    6. Tokarnia, M. . "Quase metade das escolas indígenas não tem material didático específico". Agência Brasil, 2016. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-04/quase-metade-das-escolas-indigenas-nao-tem-material-didatico-especifico. Acesso em: fev. 2019.

    7. Schmelkes, S. . "Toward an intercultural approach to evaluation: a perspective from the National Institute for Educational Evaluation in Mexico (INEE)". Educations Policy Analysis Archives, vol. 26, n. 52. 2018.

    8. Sobrinho, R. S. M.; Souza, A. S.; Bettiol, C. A. . "A educação escolar indígena no Brasil: uma análise crítica a partir da conjuntura dos 20 anos de LDB". Poiésis, v.11, n. 19, p. 58 - 75. 2017.

    9. Mendes, E.; Castro, M. L. S.. "Língua, cultura e formação de professores: por uma abordagem de ensino intercultural". In: Saberes em português: ensino e formação docente. Campinas/SP: Pontes. p.57-77. 2008.

    10. Mendes, E.. "O português como língua de mediação cultural: por uma formação intercultural de professores e alunos de PLE". In: Mendes, E. (org.) Diálogos interculturais: ensino e formação em português língua estrangeira. Campinas/SP: Pontes, p.139-158. 2011.

    11. Mendes, E.. "Aprender a ser e a viver com o outro: materiais didáticos interculturais para o ensino de português LE/L2". In: Scheyerl, D.; Siqueira, S. Materiais didáticos para o ensino de línguas na contemporaneidade: Contestações e proposições. Salvador: EDUFBA, p.355-378. 2012 a.

    12. Mendes, E.. "O conceito de língua em perspectiva histórica: reflexos no ensino e na formação de professores de português: . In: Lobo, T. et al. Linguística histórica, história das línguas e outras histórias. Salvador/BA: EDUFBA. 2012 b.

    13. Mendes, E. 2015. "A ideia de cultura e sua atualidade para o ensino-aprendizagem de LE/L2". EntreLínguas, v.1, n.2, p.203-221, jul./dez. 2015. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/entrelinguas/article/view/8060.

    14. Faria, I. F.; Oliveira, G. M.. "O ensino superior multilíngue e pluricultural: Princípios para autonomia e valorização cultural na Amazônia". Revista Platô, v. 1, n. 1. 2012.

    15. Silva, P. T. B.. "A interculturalidade na educação escolar indígena brasileira". Anais VIII FIPED, v. 1. 2016.