SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.71 número4 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.71 no.4 São Paulo out./dez. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000400017 

    ARTIGOS
    ENSAIOS

     

    Possibilidades do uso da fotografia e da filmagem na pesquisa social qualitativa

     

     

    Francisco Mesquita de OliveiraI; Magno Vila Castro JúniorII

    IDoutor em sociologia e professor permanente no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e no Departamento de Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas e Letras da mesma instituição
    IISociólogo e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI)

     

     

    O século XIX se constitui sócio-historicamente com base em avanços tecnológicos e, nesse contexto, emerge o questionamento teórico-metodológico das ciências sociais sobre o sujeito no fazer ciência, exigindo novas perspectivas de prover o conhecimento a partir do relacionamento com o sujeito pesquisado, no caso, o humano. A invenção da fotografia e da filmagem representa, de certa forma, interface entre a tecnologia e o sujeito no cotidiano. Neste artigo, analisamos o uso de tais recursos na pesquisa social qualitativa, considerando-os como parte do polo morfológico desse tipo de estudo, a partir de resumida análise bibliográfica sobre o tema. Considerando que o processo investigativo envolve a "interseção de suposições filosóficas, de estratégias de investigação e de métodos específicos" [1], enfatizaremos o uso da fotografia e da filmagem como fontes de informação que possibilitam diferentes olhares sobre a realidade social, sobretudo na sociologia e antropologia.

    Para Martins [2], a imagem fotográfica não é um simples congelamento de um instante temporal, sua produção e interpretação inserem-se na polissemia atribuída pelo fotógrafo, pelos fotografados e pelos espectadores, e se expande no espaço-tempo. As imagens do cotidiano, por exemplo, decorrem da necessidade social e subjetiva conferida à fotografia em ordenar imaginariamente o irrelevante. A tensão dialética entre ocultamento e revelação imprime na fotografia as intencionalidades da ausência e da emergência no social [3]. O detalhe (do real social) e a memória são dependentes dessa tensão e, interpretados por algo (a foto) que não estava em cena, constroem os sentidos da realidade social. Depreendemos disso que a fotografia desempenha uma função socialmente estabelecida de formar processos intersubjetivos e linguagem que compõem uma peça relevante na interpretação da realidade social.

    Bittencourt [4], por sua vez, considera a imagem fotográfica uma narrativa visual capaz de ampliar a compreensão dos processos simbólicos no universo cultural. Torna-se inquestionável a importância da fotografia que ultrapassa a função, às vezes atribuída, de apêndice do texto escrito, do aspecto documental e comprobatório do objeto em análise. Para a autora, a imagem fotográfica permite retratar a história visual de uma sociedade, documenta dimensões imateriais, aprofunda a compreensão da cultura material e possibilita o entendimento de processos de mudança social [4].

    O processo imagético e interpretativo é gerado pelas experiências humanas. No caso da pesquisa social, a autenticidade da interpretação da imagem fotográfica assenta-se na relação de coautoria estabelecida entre pesquisador e sujeito pesquisado desde o momento do seu registro. No âmbito da pesquisa, tem a intencionalidade de restaurar o reconhecimento entre o sujeito da imagem e o contexto, fazendo do encontro etnográfico um momento de apropriação do sujeito cognoscível em sujeito cognoscente de significados. A interpretação fotográfica não se apoia unicamente na análise documental, mas exige análise reflexiva que coloca o fotógrafo e o protagonista da imagem em "negociação".

    Loizos [5] demonstra a relevância da apreensão da realidade social por meio da imagem - com ou sem som - sobre as ações humanas concretas no espaço-tempo, informação visual que dispensa texto escrito. Por meio da imagem fotográfica ou filmatográfica, podemos apreender as disposições psicológicas de uma nação ou compreender processos de mudança social no espaço-tempo. Chama a atenção do pesquisador o fato de as imagens serem produzidas, elaboradas e interpretadas dentro de um contexto sócio-cultural-histórico, possível de manipulação intencional e inserido em diversos motivos e tensões dualistas: ocultação/revelação, realismo/não-realismo, ausência/emergência. O autor não faz distinção entre vídeo e filmagem, apesar de considerar este último uma produção mais elaborada, destinada ao registro de dados de ações e fenômenos cuja complexidade seja de difícil compreensão para um único observador [5].

    Cardarello e colaboradores [6] oferecem um relato de experiência acerca da utilização do vídeo para traduzir o texto resultante de uma pesquisa anterior. Não se trata de uma pesquisa com uso de filmagem, mas da condensação visual do texto escrito. A expressão latina in principio erat verbum, neste contexto, surge para indicar não somente a gênese do trabalho antropológico, mas as situações contingentes como tal trabalho fora desempenhado, com relação pesquisado/pesquisador que, por vezes, transformou-se em parceria, autoria fragmentada e impasses éticos.

    Os diversos autores demonstram concepções diversificadas a respeito do uso da fotografia e da filmagem na investigação social. É oportuno explicitar, no entanto, que tais imagens podem ser produzidas ou selecionadas de arquivos, antes ou após a elaboração do texto escrito, o que condiciona perspectivas epistemológicas também diversificadas, que partem da confluência de que a expressão visual é uma das formas de se criar e reproduzir a sociabilidade humana.

    Schütz [7] propõe que o mundo da vida (ou seja, o cotidiano) é permeado de experiências vividas e em curso, possibilitando interações e relações intersubjetivas significantes e acessíveis aos outros. A perspectiva de Goffman, segundo Martins [2], fundamenta a compreensão da vida social como uma dramaturgia na qual indivíduos e grupos atuam considerando seus papéis na sociedade. Nesse sentido, Schütz e Goffman somam-se na explicação sociológica da realidade social pela interação simbólica construída entre os indivíduos. Embora não se tratando especificamente de fotografia, a interação simbólica analisada por esses autores remete à discussão da imagem como técnica de leitura do social. Assim, Blumer, segundo Joas [8], apresenta o cotidiano como resultado da interação simbólica entre os sujeitos em relação aos objetos por eles significados, estabelecendo uma comunicação de consenso e significado socialmente estabelecido.

    É importante ressaltar que a prática investigativa coloca questões éticas. Os códigos de ética do antropólogo e do sociólogo, divulgados respectivamente pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e pela Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), estabelecem princípios na realização da pesquisa com o devido respeito aos sujeitos pesquisados. Destacamos que o código de ética da ABA defende a autoria e a coautoria das populações pesquisadas sobre sua própria produção cultural, enquanto o código de ética da SBS sugere que o sociólogo pode suplementar com outros princípios a partir de sua experiência profissional.

    O uso da fotografia e da filmagem, portanto, são técnicas igualmente acuradas e embasadas epistemologicamente, no âmbito da coleta de informação na pesquisa social qualitativa. É primordial, no entanto, ter em vista a reflexividade teórico-metodológica da pesquisa e que a escolha metodológica pressupõe a ideia de que imagem não fala por si, ela é tão real quanto artificial. Ao pesquisador caberá, sobretudo, compreender que a imagem e a tecnologia são uma contribuição e não um fim em si mesmo.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Creswell, J. W. "Considerações preliminares". In: Projeto de pesquisa; métodos qualitativos, quantitativos e misto. 3a ed. Porto Alegre: Artmed. 2010. p. 23-47.

    2. Martins, J. S. "A fotografia e a vida cotidiana: ocultações e revelações". In: Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo: Contexto. 2008. p. 33-62.

    3. Santos, B. S. "Para uma sociologia das ausências e das emergências". Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 63, 2002. p. 237-280.

    4. Bittencourt, L. A. "Algumas considerações sobre o uso da imagem fotográfica na pesquisa antropológica". In: Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas: Papirus. 1998. p. 197-211.

    5. Loizos, P. "Vídeo, filme e fotografias como documentos de pesquisa". In: Bauer, M. W.; Gaskell, G. (org.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes. 2003. p. 137-155.

    6. Cardarello, A. et all. "Nos bastidores de um vídeo etnográfico". In: Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais. Campinas: Papirus. 1998. p. 269-286.

    7. Schutz, A. "Fundamento da fenomenologia". In: Wagner, H. (org). Fenomenologia e relações sociais: textos escolhidos de Alfred Schütz. Rio de Janeiro, 1979. p. 51-76.

    8. Joas, H. "Interacionismo simbólico". In: Giddens, A.; Turner, J. Teoria social hoje. São Paulo: Unesp. 1999. p. 127-174.