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    Ciência e Cultura

    versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.71 no.4 São Paulo oct./dic. 2019

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602019000400018 

    CULTURA
    ARTES VISUAIS

     

    Visões estranhas: artista norte-americana cria arte a partir de DNA

     

     

    Chris Bueno

     

     

    O DNA, presente no núcleo das células de todos os seres vivos, é uma molécula que carrega toda a informação genética de um ser vivo, sendo responsável por transmitir suas características hereditárias. O DNA pode ser também matéria-prima para fazer arte. Pelo menos foi isso o que pensou a artista e bio-hacker Heather Dewey-Hagborg. Na exposição Stranger visions, ela usou DNA coletado em locais públicos de Nova York para criar máscaras em 3D de seus possíveis "doadores". O projeto de Dewey-Hagborg chama a atenção não apenas por articular ciência e arte, utilizando o que há de mais moderno na tecnologia de informação para decodificar o DNA de desconhecidos, mas especialmente por levantar questões pertinentes e atuais sobre privacidade e determinismo genético. "Stranger visions é bastante impactante. Não temos como proteger nossa informação genética ou impedir que essas 'pegadas genéticas' sejam deixadas por aí, mas temos que compreender que seu papel em determinar quem somos não é absoluto", ressalta a bióloga Ursula da Silveira Matte, professora Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

     

     

    PEGADA GENÉTICA

    Para realizar o projeto, Dewey-Hagborg coletou fios de cabelo, chicletes mascados e bitucas de cigarro de ruas, banheiros públicos e salas de espera da cidade de Nova York. Depois, extraiu o DNA e os analisou para obter informações como sexo, etnia e cor dos olhos. Então, utilizou esses dados para alimentar um programa de computador que traduziu essas informações em modelos de rostos em 3D. Esses rostos foram, por fim, impressos em cores e em tamanho real utilizando uma impressora 3D. É importante ressaltar que o resultado final não é uma "cópia exata" da pessoa que deixou o DNA (o "doador"), mas sim uma aproximação baseada nas informações genéticas, ou como a própria Dewey-Hagborg descreve, uma "semelhança familiar". Ao mesmo tempo que tem um compromisso estético e artístico, ele suscita muitas questões ao chamar a atenção para a tecnologia da fenotipagem de DNA forense, o potencial para uma cultura de vigilância biológica e o impulso para o determinismo genético.

    A questão ética também fica evidente. Afinal, não é possível eliminar nossa pegada genética, deixamos nosso DNA por toda parte, em fios de cabelos, copos descartáveis etc. Como o DNA pode revelar muito sobre quem o deixou para trás, algumas pessoas levantam o questionamento sobre a segurança e a privacidade. A própria artista argumenta que essa informação genética precisa ser protegida. "Você não deixaria seus registros médicos no metrô para qualquer um ler". Se estamos entrando nesta era de vigilância biológica em massa, precisamos de instrumentos para proteger nossa privacidade", disse Dewey-Hagborg na abertura de sua exposição.

    Porém, é preciso cuidado para não cair nas armadilhas do determinismo genético - ou seja, a crença que de existe um gene que define uma determinada característica. A essência do indivíduo não pode ser determinada por sua constituição genética. "Para a maior parte das características o componente genético não atua de forma isolada - são vários genes atuando em conjunto e sendo modulados por influências ambientais. Portanto não temos, por exemplo, como determinar que uma pessoa será obesa porque possui uma variante específica no gene FTO sem conhecer outras variantes genéticas e, principalmente, o estilo de vida dessa pessoa", explica Matte. "Isso, no entanto, não deve isentar laboratórios e outros serviços que analisam sequências genéticas, especialmente em um contexto médico, de resguardarem o sigilo e limitarem o acesso a essas informações", aponta.

    Outro questionamento provocado pela exposição é se isso pode se tornar uma tendência, ou seja: que outras possibilidades poderiam ocorrer com o avanço da tecnologia e sua conexão com a arte? Elza Ajzenberg, professora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Centro Mario Schenberg, cita outros exemplos de exposições que uniram arte e tecnologia e tiveram um foco em comum: a corporeidade. "A curiosa cabeça de Marc Quinn, Self, de 1991, elaborada a partir do próprio sangue do artista, é desconcertante. A obra é mantida em refrigeração especial. O artista Duane Hanson possui diversos trabalhos apoiados em tecnologias a partir de moldagens sobre corpos reais, com efeitos hiper-realistas. Tais obras têm objetivos, técnicas e tecnologias diferentes da artista norte-americana. Entretanto, não deixam de ser impactantes. Provocam debates sobre o sentido da arte".

     

    CONEXÕES

    A união da ciência com a arte está longe de ser uma novidade. As duas linguagens estão intimamente conectadas na busca por desvelar mistérios. Essa conexão é tão antiga que um de seus expoentes mais célebres é ninguém menos que Leonardo da Vinci (1452-1519). Este cientista e artista abriu horizontes do conhecimento, valorizando investigações estéticas, experimentais e tecnológicas. "Da Vinci explorou as diversas possibilidades de aplicar as conquistas científicas e tecnológicas à arte. Passados quinhentos anos de seu falecimento, suas contribuições não cessam de atingir o homem contemporâneo", aponta Ajzenberg. Nos dias atuais, cada vez mais artistas buscam campos de fronteira, como biotecnologia e inteligência artificial, para explorar novas possibilidades estéticas. Desta forma, o horizonte se expande para novas experimentações, como a de Dewey-Hagborg. E os artistas não apenas se engajam nessas novas experimentações, como também nos debates acerca delas e de todo questionamento que levantam. "Arte e ciência possuem interfaces contínuas na trajetória da história da arte. Cientistas, pensadores e artistas constituem verdadeiros termômetros de seu próprio tempo", finaliza Ajzenberg.