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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.72 no.1 São Paulo enero/mar 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000100010 

    ARTIGOS
    LITERATURA E CIÊNCIA

     

    Das ciências e da literatura: por uma aventura poética

     

     

    Ana Maria Haddad Baptista

    Mestra e doutora em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com pós-doutorado em história da ciência pela Universidade de Lisboa e PUC-SP. É autora de diversos livros publicados no Brasil e no exterior e, atualmente, é pesquisadora e professora da Universidade Nove de Julho (SP)

     

     

    PRELIMINARES

    Para a maioria dos olhares e dos multiplicadores de vozes pronunciadas sem a menor fundamentação, as ciências e a literatura trilham caminhos opostos que, talvez, jamais se encontrem na escala dos grandes saberes. Entretanto, aqueles que conseguem entender que o mundo é um todo e que, de alguma forma, todas as coisas estão interligadas, percebem que ciências e literatura possuem objetivos que se interseccionam na escala das belezas fundamentais, da verdade, do mistério e dos encontros, sobretudo, paradoxais. Encontros ansiosos pelo inesperado.

    Os escritores e cientistas comprometidos com a vida e que entendem, desde sempre, a importância desta passagem tão transitória, buscam, de forma incansável, extrair o máximo para compreendê-la em suas leis mais profundas. Leis estas que não se reduzem a um mero olhar contemplativo e muito menos a experiências que não tenham um sentido para melhorar e transformar a vida humana. Os verdadeiros escritores e cientistas percebem que o amor e a paixão possuem diversas expressões e dimensões. Ser um escritor ou um cientista comprometido e responsável requer, acima de qualquer coisa, nutrir uma grande paixão pela humanidade. Perceber, de maneira profunda, que existe algo a revelar que não pode ficar sob a capa da obscuridade. Entendem a necessidade vital que busca uma materialização essencial e deve ser partilhada. Borges [1] dizia que seus contos e poemas começavam por uma espécie de acontecimento, em seu íntimo, de que algo iria lhe acontecer. Muitas vezes, afirmou, no caso de um conto, que ele tinha o princípio e o fim. Mas precisava buscar o desenvolvimento. No caso de um poema lhe surgia uma ideia mais geral.

    Cientistas e escritores possuem convergências das mais variadas e inusitadas. Uma delas é se pensar, em grande parte com Bachelard (1884-1962), que uma alma sensível e culta deve lembrar de seus esforços, por meio de seu próprio destino intelectual, as linhas da razão, da sensibilidade, da intuição, que, no fundo, estão contidas numa memória que a todo momento lembra que existe uma espécie de ignorância essencial [2]. Em outras palavras: das certezas que guardamos em nosso íntimo, nada garante a atemporalidade e a petrificação de conceitos. O grande problema, pouco esclarecido, é se entender de que maneira tais convergências são concretas e existem em diversos sentidos e graus. Não são isoladas.

    Lembremos, por exemplo, que Goethe não foi somente o grande escritor conhecido mundialmente. Goethe foi um homem das ciências e, inclusive, fazia inúmeras experimentações, em especial, de botânica. Lembremos que Ernesto Sabato, grande romancista argentino e ensaísta, foi doutor em física e trabalhou em laboratório europeu. Bachelard transitou, com tranquilidade, pela física, matemática, química, filosofia e literatura. Guimarães Rosa, escritor bastante conhecido mundialmente, era médico. Enfim, são centenas e centenas de casos, que mostram o quanto cientistas e escritores caminham de mãos dadas e de maneira harmônica em relação a objetivos e valores. Por critérios diferentes, no entanto, que vão desembocar nos mesmos rios. Nas belas palavras de Einstein: "...foram ideais que suscitaram meus esforços e me permitiram viver. Chamam-se o bem, a beleza, a verdade. Se não me identifico com outras sensibilidades semelhantes à minha e se não me obstino incansavelmente em perseguir esse ideal eternamente inacessível na arte e na ciência, a vida perde todo o sentido para mim" [3, p. 10].

    Pode-se afirmar e não somente pelas palavras do grande físico, que grande parte dos verdadeiros cientistas e escritores possuem em comum: sonhos de um mundo menos desigual, inquietações profundas face aos mistérios da vida e uma vontade incontrolável de construir ou descobrir alguma coisa que transforme a vida da humanidade. Ainda nas palavras de Einstein: "Não me canso de contemplar o mistério da eternidade da vida. Tenho uma intuição da extraordinária construção do ser. Mesmo que o esforço para compreendê-lo fique sempre desproporcionado, vejo a razão se manifestar na vida" [3, p. 12]. O cientista, em muitos momentos, expressou sua imensa fascinação diante dos grandes mistérios que a vida possibilita. Jamais negou o papel das artes em geral (incluindo a literatura) ao se referir a processos de pensamento. E Guimarães Rosa: "...cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens. Conheço meu lugar e minha tarefa; muitos homens não conhecem, ou chegam a fazê-lo quando é demasiado tarde. Por isso, tudo é muito simples para mim, e só espero fazer justiça a esse lugar e a essa tarefa" [4].

    Por um outro lado, claro que existem escritores que escrevem, infelizmente, somente para conseguir fama. Destaques em academias. Ou para ganhar dinheiro. Ou, o que é mais grave, para projetar um eu egocêntrico e sem limites. Nas ciências, para nossa grande infelicidade, não é diferente. Muitos cientistas estão trancados em seus laboratórios em busca de um Nobel que os fará reconhecidos mundialmente. E, talvez, para ocupar um nome em alguma fórmula ou lei que deverá ficar para a posteridade. Há escritores e cientistas que ficam, muitas vezes, obcecados na busca de uma possível imortalidade para se integrar na memória coletiva. Na verdade, apenas engrossam a vertente das famosas misérias humanas. Desde que o mundo é mundo. Desde tempos imemoriais.

    Edward Wilson, grande cientista da área da biologia, destaca o valor da paixão pela pesquisa para quem busca uma carreira dentro das ciências. Ao falar de si mesmo mostra a importância do amor pelo tema escolhido para se pesquisar e descobrir alguma coisa que, realmente, se destaque e traga benefícios para a humanidade. O cientista ressalta também como percebe o processo criativo dentro da área científica:

    "O cientista ideal pensa como um poeta e só então trabalha como um contador. Tenha em mente que os inovadores, tanto na literatura quanto na ciência, são basicamente sonhadores e contadores de histórias. Nos primeiros passos da criação tanto da literatura quanto da ciência, tudo que há na mente é uma história. Há um final imaginado, normalmente um começo imaginado, e uma seleção de partes e de peças que podem se encaixar no meio. Em obras literárias e também na ciência, qualquer parte pode ser modificada, causando mudança nas ligações com as outras partes, algumas das quais são descartadas e outras adicionadas." [5, p. 59].

    Observe-se, no fragmento citado, o quanto Edward Wilson mostra as semelhanças entre a gestação de uma obra literária, em processo de criação, e o caminho para uma possível teoria científica. Em especial, os sonhos. Na verdade, tudo começa com uma certa fantasia. Imagina-se o início, o desenvolvimento e um fim possível. Ouçamos mais uma vez o cientista: "Os cenários, sejam literários ou de natureza científica, concorrem um com os outros. Alguns se sobrepõem. Palavras e frases (ou equações ou experimentos) são testados para dar sentido à coisa como um todo" [5, p. 60].

    Veja-se que a distância que muitos pretendem imprimir na tentativa de alargar o hiato entre ciências e literatura mostra-se falso e sem fundamentação consistente. São dezenas de cientistas e escritores que admitem que o processo de criação envolve um conceito universal de convergências entre as diferentes áreas. E, finalmente, não custar lembrar mais um ponto importante que aproxima as ciências e a literatura: a liberdade. Isso é fundamental. Essencial. Liberdade nas mais diferentes dimensões. Ou seja, o cientista consciente de nossa cosmologia sabe que existe, objetivamente, a liberdade da matéria, como tão brilhantemente, sabe-se, mostrou Ilya Prigogine. O universo, como tantas teorias comprovam, não é determinista. Portanto, não se pode prever o futuro e muito menos os caminhos que o universo poderá trilhar. Isso confere uma liberdade, sem precedentes, aos cientistas. Há muito a se descobrir, a sonhar, a inventar. Por um outro lado, os verdadeiros escritores, possuem a mesma liberdade. Principalmente, a de sonhar e possibilitar novas e inusitadas formas de existência e outras maneiras de exercitar o pensamento a partir, inclusive, de novos conceitos de amor e tantas outras paixões humanas.

     

    GOETHE: O ESCRITOR, O CIENTISTA

    Goethe foi um dos maiores escritores da literatura universal. Em suas palavras: "Vim ao mundo na cidade de Frankfurt, às margens do rio Meno, aos vinte e oito dias de agosto do ano de 1749, quando os sinos dobravam a décima segunda badalada do meio-dia" [6]. Aqui cabe uma breve explicação que relaciona ciência e poesia. É de conhecimento geral que antes da invenção dos relógios mecânicos houve outras formas de se marcar o tempo de maneira objetiva. A divisão de um dia em 24 horas surge entre os babilônios por volta de cinco séculos a.C. Sabe-se que o ponto chave foi definir o meio-dia. Isto é, foi observado pelos babilônios que havia um instante em que o sol não projetava sombras que era justamente o meio-dia. E com isso foi criado o relógio do sol. Muitos poetas conotam o meio-dia como eternidade. Um instante que se quer eterno porque consegue, de certa maneira, fugir aos marcadores do tempo. Observe-se que Goethe, em sua autobiografia, declara "quando os sinos dobravam a décima segunda badalada do meio-dia".

    Ele foi um dos maiores representantes do denominado movimento literário e filosófico romântico. Seu conjunto de obras, muito vasto, teve um alcance muito grande. Influenciou, sob todos os níveis, outros escritores e poetas. Entretanto, o que a maioria desconhece, quer intencionalmente ou não, é que o grande escritor foi também um cientista. Goethe dedicou boa parte de sua vida a, de certa forma, unir literatura, ensaios científicos e experimentações. Em suas palavras: "Cada olhar envolve uma observação, cada observação uma reflexão, cada reflexão uma síntese: ao olharmos atentamente para o mundo já estamos teorizando. Devemos, porém, teorizar e proceder com consciência, autoconhecimento, liberdade" [7]. Veja-se que a postura citada por Goethe não foge aos propósitos de um verdadeiro escritor. O que faz um escritor quando, por exemplo, está construindo um personagem? Precisa, em princípio, observar, refletir e sintetizar. Sempre que olhamos para o mundo, já estamos, como diz o escritor, teorizando. Isso vale para qualquer coisa. Olhamos para o mundo buscando compreender o que nos cerca. Em todos os graus e dimensões. No caso mais específico de Goethe sabemos que ele se dedicou, com paixão, a duas áreas: a da literatura e a das ciências. Uma não excluiu a outra. De forma alguma. "Nunca admirei a natureza com fins poéticos" [8]. Continua Goethe: "Não obstante, como meus antigos desenhos de paisagem e mais tarde minhas pesquisas de naturalista me induziam a uma constante e precisa contemplação, pude assim aos poucos estudá-la até em suas íntimas minúcias, de modo que quando delas necessito, como poeta, tenho-as logo à minha disposição, e não falto facilmente à verdade" [8].

    Convém ressaltar que Goethe teve importantes contribuições para a área da óptica. Teorias de grande impacto, em especial estudos sobre as cores. Foi ele quem contestou Newton, um cientista consagrado, em relação às questões da luz. E foi somente no século XX, graças, inclusive, aos surrealistas que finalmente suas posições foram, definitivamente, reconhecidas e apontaram para alguns erros graves de Newton.

     

    ERNESTO SABATO: O CIENTISTA, O ESCRITOR

    Ernesto Sabato (1911-2011) é um outro caso, muito particular, que alia ciência e literatura. Muito conhecido como um dos melhores escritores da América Latina. Autor de romances e belos ensaios. E é justamente em tal tipologia que podemos, com segurança, usufruir de suas reflexões em interfaces com a educação, história, geografia, física, matemática. O escritor argentino, em 1929, ingressou na Faculdade de Ciências Físico-Matemáticas da Universidade de La Plata. Em 1938 obteve seu doutorado em física na mesma universidade. Ganhou, por ser o melhor candidato da época, uma bolsa de estudos para realizar pesquisas sobre radiações atômicas no famoso Laboratório Juliot-Curie de Paris. Retornou a Buenos Aires antes de estourar a Segunda Guerra Mundial e foi lecionar na mesma universidade onde obteve seu doutorado.

    Em uma entrevista Sabato relata que ao assistir, pela primeira vez, quando menino, a uma aula cuja demonstração era um teorema de geometria, sentiu uma espécie de êxtase por descobrir um mundo exato, charmoso e incorruptível. Mal sabia ele, afirma, que acabara de descobrir o universo imaginado por Platão. Tal fato foi decisivo em sua vida. Ao mesmo tempo ficava maravilhado com os livros que lia, como por exemplo Chateaubriand, Kleist e outros. Sentia-se diante de um mundo fascinante e ao mesmo tempo dramático. Ganhou, como vimos anteriormente, uma bolsa para trabalhar no Laboratório Juliet-Curie em Paris. Naquele momento pensou que estaria num universo sedutor, para uma nova vida, ou seja, o mundo da pintura e da literatura, as duas coisas que o atraiam de forma misteriosa. Ele já estava escrevendo um livro e passou a ter uma vida desdobrada entre a física e o surrealismo. Isto é, durante o dia trabalhava com os elétrons no laboratório e à noite se reunia com os surrealistas. Terminou o doutorado com uma profunda crise existencial. Por um lado, a consciência de que a ciência estava provocando uma crise profunda nos homens, por sua alienação tecnológica. Por outro, o contato com os surrealistas representavam um oposto à razão.

    Depois de muitos anos trabalhando como cientista, Sabato enfrentou outra crise existencial. Nessa medida, resolveu abandonar a carreira, para espanto geral de seus colegas pesquisadores, e assumir, definitivamente, a carreira de escritor. Nas palavras de Sabato: "Acho que existem duas linguagens: uma, expressiva, fundamentalmente poética, feita de metáforas, e que seria a linguagem primeira, a da vida e da emoção. E outra estritamente intelectual, direta, abstrata, que é a linguagem das ciências: uma hipotenusa é uma hipotenusa. Essa linguagem vem depois, com o pensamento" [9]. Declara, inclusive, que os personagens de uma grande ficção, são emanações do que há de mais profundo de um escritor e por isso mesmo tomam, muitas vezes, um caminho inesperado pelo próprio autor. Pontos que aterram o próprio escritor.

    A busca essencial de Sabato [10, p. 632], ao lermos seus diversos romances e ensaios, é por possíveis respostas para algumas contradições que, segundo ele, todo homem possui, ou seja, compreender a síntese entre existir historicamente e a atemporalidade. O ser humano, declara ele, é social e histórico e, ao mesmo tempo, consciente de sua mortalidade, possui o desejo de ser absoluto e busca a eternidade.

    Quando indagado sobre ensino e educação, Sabato não poupa críticas aos sistemas educacionais (incluindo o argentino) que promovem a distância absurda entre as disciplinas [10, p. 162]. Crê que um sistema escolar deveria ser integrador, ou seja, promover um diálogo, interdisciplinar, entre professores e alunos. Acredita que somente a formação sólida de um professor poderá materializar um sistema de ensino distante de classificações inúteis e decorebas de nomes de rios, oceanos e outras coisas. Para ele uma boa educação deve estar preocupada, sobretudo, com valores que podemos transferir, de fato, para a vida.

     

    BREVES PONDERAÇÕES

    Ao longo deste texto buscamos evidenciar, sobretudo, o quanto escritores e cientistas, especialmente aqueles comprometidos com a humanidade, possuem ideais e sonhos que os irmanam e que há explicitamente uma preocupação, comum, mais profunda que ultrapassa os limites de uma projeção individual, pessoal e egocêntrica. Vimos também que o processo criativo, tanto de cientistas como de escritores, partem de conceitos mais universais no que se referem aos mecanismos mais ligados ao cérebro humano. Acrescente-se a isso uma abertura cosmológica quase inexplicável. Além disso, predisposição para admirar a vida, os rios, os mares, as estrelas e tudo aquilo que exala beleza. Nas palavras de Einstein: "Além de mim, fora de mim, estava o mundo imenso, que existe independente dos seres humanos e que se nos apresenta como um enorme e eterno enigma, em parte acessível à nossa observação e ao nosso pensamento. A contemplação deste mundo acenava-me como uma força libertadora, e percebi que muitos daqueles a quem aprendera a respeitar e admirar haviam encontrado, por esse meio, a liberdade interior e a segurança" [11].

    Buscamos, inclusive, mostrar que vários cientistas comparam o processo criativo de uma pesquisa ao mesmo de um escritor. Diga-se, mesmo que brevemente, que os bons romancistas e poetas estudam muito as mais variadas ciências para criar ambientes de época, personagens e outros elementos presentes na literatura. Um caso exemplar e conhecido é o da famosa escritora Marguerite Yourcenar. Em especial, Memórias de Adriano foi uma obra que exigiu da escritora muitos e muitos anos de pesquisa, não somente históricas, mas muitas outras para que realmente se sentisse segura para tomar a voz do famoso imperador romano Adriano.

    Graciliano Ramos, por exemplo, confessa, em diversos momentos, que estudou muitos tratados de psicologia para que pudesse compor suas personagens. Fernando Pessoa estudava filosofia, psicologia, matemática e outras áreas para alcançar seus objetivos de escritor.

    Alan Lightman, físico e escritor de romances e ensaios, atualmente professor de física no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, também transita com serenidade entre a ciência e a literatura. Diz que opera nas duas áreas com grandes expectativas. Em suas palavras: "Parece-me que tanto a ciência como a arte tentam desesperadamente estabelecer uma conexão com algo – pois é assim que atingimos a universalidade. Na arte, esse algo são as pessoas, suas expectativas, sua sensibilidade. Na ciência, é a natureza, o mundo físico, as leis físicas. Às vezes discamos o número errado e acabamos sendo desmascarados. A teoria do sistema solar de Ptolomeu, segundo a qual o Sol e os planetas revolvem em torno da Terra em ciclos e em ciclos dentro de ciclos, é imaginativa, engenhosa e até mesmo bela – mas incorreta em termos físicos. Quase incontestada durante séculos, foi implacavelmente detonada como um edifício condenado, depois que Copérnico entrou em cena" [12, p. 90]. Declara, sobretudo, que os cientistas convivem com o fato de seu produto ser de caráter impessoal. Mas isso não exclui a verdade de que todo cientista gostaria de ser compreendido como uma pessoa singular. Ouçamos, uma vez mais, Lightman: "A ciência oferece pouco conforto para alguém que anseie por deixar em seu trabalho uma mensagem pessoal – seu singelo poema ou sua comovente sonata. Atribui-se a Einstein a afirmação de que mesmo que Newton ou Leibniz não tivessem existido o mundo teria o cálculo, mas que sem Beethoven jamais teríamos a Sinfonia em dó menor" [12, p. 88].

    A verdade é que tanto o pensamento de um cientista, quanto a de um escritor, realmente comprometidos com a responsabilidade de promover um mundo menos miserável e mais humano, possui espreitas em todas as direções. Sem pretensões de porcentagens quantitativas, o movimento do pensamento de um escritor e de um cientista, assim como daqueles que caminham pelas duas áreas, é solicitado, em maior ou em menor grau, pela imaginação, razão, intuição, projeção, devaneio, digressão e fantasia.

    Primo Levi (1919-1987) transitou, como se sabe, especialmente pela química e pela literatura. Autor de inúmeras obras literárias, declarou, em um famoso diálogo com Tullio Regge (físico teórico), que a tabela periódica possui rimas. "Na forma mais comum da tabela periódica, cada linha termina com a mesma 'sílaba' que é sempre composta por um halogênio mais um gás raro: flúor + néon, cloro + árgon, etc. Há o eco da grande descoberta, aquela que te tira a respiração; da emoção (também estética, também poética) que Mandeleev deve ter sentido quando intuiu que, ordenando os elementos então conhecidos, naquela maneira particular, o caos dava lugar à ordem, o indistinto ao compreensível (...) Discernir ou criar uma simetria, 'pôr alguma coisa no seu devido lugar', é uma aventura mental comum ao poeta e ao cientista" [13].

    Diante do exposto, podemos imaginar que, muitas vezes, sem saber ou, talvez, em sonhos que tangenciem teorias gerais do esquecimento, cientistas e poetas potencializam uma estética labiríntica do maravilhamento. Um diálogo musical possível entre uma flauta e a lua.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Borges, J. L. Sobre os sonhos e outros diálogos. Tradução de John Lionel O. Rodríguez. Prólogo de Oswaldo Ferrari. São Paulo: Hedra, 2009.

    2. Bachelard, G. A intuição do instante. Tradução de Antonio de Padua Danesi. Campinas, SP: Verus Editora, 2007.

    3. Einstein, A. Como vejo o mundo. Tradução de H.P. de Almeida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 10.

    4. Rosa, G. Ficção completa volume I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 30.

    5. Wilson, E. O. Cartas a um jovem cientista. Tradução de Rogério Galindo. São Paulo: Cia das Letras, 2015. p. 59.

    6. Goethe, J. W. De minha vida: poesia e verdade. Tradução, apresentação e notas de Mauricio Mendonça Cardoso. São Paulo: Editora Unesp, 2017.

    7. Goethe, J. W. Doutrina das cores. Tradução de Marco Giannotti. São Paulo: Nova Alexandria, 2011. p. 37.

    8. Eckermann, J. P. Conversações com Goethe. Tradução de Marina Leivas Bastian Pinto. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2004. p. 170.

    9. Sabato, E. Borges Sabato: Diálogos. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Editora Globo, 2005. p. 80.

    10. Sabato, E. Obra completa: ensayos. Buenos Aires: Emecé Editores S.A./ Seix Barral, 2007. p. 632.

    11. Einstein, A. Notas autobiográficas. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 15.

    12. Lightman, A. Viagens no tempo e o cachimbo do vovô Joe e outros ensaios. Tradução de Carlos Afonso Malferrari. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

    13. Levi, P.; Regge, T. Diálogo: sobre a ciência e o homem. Tradução de Eduardo Lage. Lisboa: Gradiva, 2012. p. 38-39.