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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.72 no.1 São Paulo jan./mar. 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000100019 

    CULTURA
    RESENHA

     

    Diálogos Makii de Francisco Alves de Souza: manuscrito de uma congregação católica de africanos Mina

     

     

    André Rosemberg

    Graduado em direito, doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP – 2008) e pós-doutor pelo Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Marília) e pela PUC-SP na área de história social

     

     

    Dois são os aspectos que fazem de Diálogos Makii, de Francisco Alves de Souza, com organização de Mariza de Carvalho Soares (Editora Chão, 2019), uma obra extraordinária. O livro publica de forma inédita a obra original, cujo manuscrito dormita desde o século XIX nos arquivos da Biblioteca Nacional. A edição crítica também colige notas, anexos e um posfácio de autoria da organizadora.

    O primeiro aspecto, e o mais evidente, é sua força como documento histórico. Escrito, conforme aponta a organizadora, provavelmente em 1785, Diálogos Makii são um registro raro, raríssimo, de um texto legado pelas mãos de um escravizado. A biografia do autor alinhavada pela organizadora, substanciada nos documentos disponíveis - registro de batismo e casamento e um testamento -, aponta que Francisco Alves de Souza foi escravizado na Costa da Mina e chegou menino em Salvador, tendo sido vendido para um comerciante carioca em 1748, provavelmente aos doze anos, quando foi levado ao Rio de Janeiro.

    O segundo aspecto que deve ser destacado é a força literária da obra. A leitura dos Diálogos Makii seduz as sensibilidades do leitor, que acompanha, em dois relatos distintos, 1) as peripécias de personagens "reais", incrustados numa trama de conflitos, dissimulações e luta pelo poder, mestramente entretecidas pelo autor, no molde formal dos diálogos; e 2) um relato histórico da origem do povo Makii, do qual Franciso Alves de Souza é originário, e que foi emprestado da obra de Pedro Mariz, Diálogos de varia historia em que sumariamente se referem muyta..., de 1597.

     

     

    No que toca ao seu caráter de documento histórico, os Diálogos Makii são a formalização por escrito das "regras e estatutos" que comandavam a Congregação Makii, irmandade instalada na igreja de Santo Elesbão e Santa Ifigênia, e que vigoravam - de forma tácita e oral - desde 1740 (em 1764, depois de um conflito pela liderança da congregação, a irmandade enviou para Lisboa um pedido de reforma do compromisso. O estatuto que acompanha os Diálogos é a formalização desse último pedido).

    Também cuidavam os Diálogos Makii do processo de entronização de Francisco Alves de Souza como regente da congregação em substituição ao rei anterior, Ignacio Gonçalves do Monte, morto em 1785. A Congregação Makii fazia parte do rol das associações de ajuda mútua e assistencial que reuniam os africanos escravizados e desterrados de África. Elas mimetizavam - com menor ou maior grau de aproximação - as sociedades religiosas leigas que compunham o cenário social do Rio de Janeiro do século XVIII, tendo como pano de fundo o regime de padroado que impingia o catolicismo como religião oficial do império português.

    Os Makii, por sua vez, eram um grupo étnico originário da África Ocidental, que ocupava um território adjacente ao dos Daomé, ainda que haja, conforme atesta Mariza de Carvalho Soares, várias lacunas na historiografia sobre esse povo, o que dificulta precisões. Num recorte didático, podemos enquadrar os Makii no grande grupo de cativos que foram embarcados para o Brasil a partir dos vários portos que polvilhavam o golfo da Guiné, denominado pelos traficantes como Costa da Mina, em referência ao forte São Jorge de Mina, construído no que hoje é o litoral de Gana.

    Os Diálogos Makii foram estruturados a partir da interlocução de duas figuras: o regente da congregação, Francisco Alves de Souza, e o secretário da entidade, o alferes Gonçalo Cordeiro. O relato têm como objetivo afirmar a necessidade de a congregação se manter alheia "de todo o abuso gentílico, e supersticioso" (práticas não-cristãs associadas à feitiçaria). Os estatutos, estabelecidos no fim do texto, regulavam principalmente a conduta esperada dos membros em relação às caridades praticadas no seio da comunidade Makii e o "sufrágio às almas", isto é, a elaboração e a organização dos rituais fúnebres que sucediam ao falecimento de algum dos membros da irmandade.

    Com relação ao aspecto literário da obra, os DiálogosMakii se vinculam a uma tradição que remonta à antiguidade clássica. Os diálogos são um recurso retórico, utilizado para expor controvérsias de ideias políticas, religiosas e econômicas, conforme relata Mariza de Carvalho Souza no posfácio. O mais interessante nos Diálogos Makii é perceber, nas brechas do formalismo que marca os requisitos do instrumento, o engenho de Francisco Alves de Souza no manejo de uma linguagem literária, de que ele lança mão com o fito de realizar sua missão persuasiva.

    Em muitas passagens, as metáforas, as peripécias dos personagens e as dissimulações e negaças em que se empenham os interlocutores aproximam o texto de uma estrutura narrativa de caráter ficcional, principalmente quando são relatados os empecilhos impostos pela viúva do rei morto (que não é nomeada, mas que o empenho historiográfico identificou como sendo Victoria Correa) em ceder a primazia do trono a Francisco, bem como a recusa de lhe entregar as "tralhas" deixadas pelo falecido e que pertenceriam à congregação. Se não, veja essa passagem da página 22, quando o alferes Cordeiro se esforça para convencer Francisco Alves de Souza a assumir a regência da congregação: "Não seja importuno, e veja que há de morrer, ouça-me glórias, que hão de ser de tão pouca dura, para que é possuí-las? Vida que tão brevemente se acaba, para que pressá-la? Finalmente para que é fazer tanto apreço e estimação de uma exalação que desaparece, de uma seta que rompe o ar, de uma ave que voa, que não tem jazigo? [...]".

    Como se vê, em qualquer dos dois aspectos citados, os Diálogos Makii são um documento essencial que ajuda na compreensão dos modos de sociabilidade dos escravizados no Rio de Janeiro do século XVIII, além de remarcar o protagonismo da população escrava na organização de seu cotidiano numa sociedade escravista do antigo regime e, para finalizar, demonstra como esses atores operavam e manejavam as instituições disponíveis, algumas delas imputadas pelo senso comum como sendo privativas do mundo dos brancos.