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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.72 no.1 São Paulo jan./mar. 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000100020 

    CULTURA
    RESENHA

     

    A história e a ciência dos sonhos

     

     

    Ana Carolina Bezerra

     

     

     

    Ao longo da história, os sonhos serviram de guia para os homens nas mais variadas situações. Não são poucos os relatos de guerras e conflitos cujos rumos foram ditados pelas revelações que líderes e chefes militares recebiam durante o sono. Assim como os outros mamíferos, em determinado momento de sua evolução os seres humanos passaram a sonhar, um modo que o cérebro utiliza para organizar as memórias, sedimentando as mais importantes, eliminando o desnecessário e, com isso, liberando espaço para o novo. A função dos sonhos pode extrapolar isso, ganhando outras dimensões, como ser um combustível para a criatividade ou apontar caminhos, direções a seguir, como um oráculo que visitamos todas as noites, ao fechar os olhos e dormir. O sonho permite extrapolar os limites do real, do possível e da moral vigente.

     


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    Em O oráculo da noite - a história e a ciência do sonho (2019), Sidarta Ribeiro, neurologista do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), faz uma trajetória analítica do sonho, dissecando sua origem, função e implicações, ao longo da história. Para isso, se vale dos registros históricos mais antigos já feitos e das pesquisas mais recentes em áreas como a neurobiologia, psiquiatria e psicologia. Afinal, conforme escreve o autor, "uma teoria satisfatória do sono e dos sonhos deve primeiro considerar todos os fenômenos relevantes, e não apenas parte deles. Em segundo lugar, deve distinguir as várias funções dos diferentes estados de sono e sonho. Em terceiro, deve produzir uma narrativa plausível de como tais

    Nesse diálogo entre áreas aparentemente distintas alguns paradigmas são questionados. Primeiramente, há uma recuperação das ideias do médico e psicanalista Sigmund Freud cujos conceitos têm sido fortemente questionados nos últimos anos. No livro, os postulados freudianos ganham nova leitura e respaldo ao serem apoiados em novos estudos e evidências. Além disso, Sidarta descarta o caráter puramente lógico no estudo dos sonhos, que ignora qualquer subjetividade do indivíduo e da coletividade da qual ele participa. Segundo ele, essa visão criou a ideia que os sonhos, juntamente com o sono, têm a função apenas de organizar as memórias, sedimentando as mais importantes e eliminando as demais e liberando espaço para a aquisição de novas informações. Uma argumentação simples que Sidarta faz para contrapor essa ideia é: por que, então, temos sonhos recorrentes? Em um cérebro com um "número colossal de neurônios e conexões sinápticas [...] é impossível explicar a ocorrência [...] por meio da ativação cortical aleatória".

    A despeito do sólido embasamento científico, o autor estabelece um diálogo constante e fluído com seu leitor, o que torna o livro acessível a um público amplo. Sidarta reforça a importância dos sonhos para o indivíduo e para a sociedade: "Temos enorme capacidade de simular futuros possíveis com base nas memórias do passado", diz.

    Os sonhos são um misto de eventos passados e expectativas futuras onde o sonhador revive, a seu modo, na sua subjetividade, algumas situações ao mesmo tempo em que cria possibilidades de caminhos e resoluções. Por isso, ele convida o leitor a prestar atenção em seus sonhos, buscando "lembrar e registrar suas viagens ao interior profundo da mente".

     

    CRIATIVIDADE

    Para ele, esses "restos diurnos" que "preparam o sonhador para o dia seguinte" também contêm a chave da criatividade humana. Nesse sentido o autor traz um alerta, ao afirmar que o sentido de urgência e os imediatismos do nosso tempo estão cerceando o ânimo e a capacidade de criar meios para encarar os desafios atuais, tais como mudanças climáticas e conflitos pessoais e sociais. "Podemos dizer que nos últimos 300 mil anos o hardware biológico da humanidade mudou muito pouco, mas o software cultural evoluiu aceleradamente. É como se o acúmulo de ideias adaptativas fosse uma catraca, uma engrenagem que só gira para um lado", teoriza o neurocientista ao pensar o conceito de catraca cultural do psicólogo norte- americano, Michael Tomasello. Ou seja, o nosso acúmulo cultural nos trouxe a um ponto de inflexão que exige de nós decisões e atitudes para além de saudosismos ou ideias simples. Como um oráculo probabilístico, os sonhos, podem ser aliados para encontrar novos caminhos e soluções.

     

    TERAPIAS DO SONO

    Boa parte das pesquisas sobre o sono e o sonho se baseiam em mapear o cérebro em diversos estágios do sono e da vigília, analisar as regiões ativadas ou desligadas conforme o estímulo e identificar os hormônios envolvidos nesses processos. A ação de fármacos e de algumas drogas (lícitas ou não) se baseia exatamente nesse mecanismo de ligar e desligar. Ao discutir o papel do sonho na história humana, Sidarta não se furta a discutir temas delicados como as políticas sobre drogas, a indústria farmacêutica e como os médicos receitam esses fármacos. Ele argumenta que diversas culturas usavam - e ainda usam - substâncias psicotrópicas em rituais para que o usuário durma profunda e tranquilamente, dando fluidez e a possibilidade da lembrança dos sonhos. É importante ressaltar que essas práticas não acontecem de forma rotineira e sem supervisão. Celtas, aborígenes, ameríndios, por exemplo, permitiam e estimulavam a conversa, a partilha e a lembrança de sonhos, visões e revelações. Para o neurocientista, terapias que incentivam o paciente à autorreflexão podem ser mais eficientes em termos de efeitos colaterais para o tratamento de depressões, melancolias e ansiedades.