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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo Apr./June 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200002 

    TENDÊNCIA

     

    A mula e a roseta

     

     

    Paulo Markun

    Jornalista, documentarista e escritor

     

     

    "Esta é, no curso da minha vida, a hora mais sombria da humanidade - uma grande ameaça para o mundo inteiro - e exige que permaneçamos elevados, unidos e protegendo os mais vulneráveis de nossos companheiros cidadãos". Kristalina Georgieva, diretora-gerente do FMI. "Já enfrentamos desafios antes, mas este é diferente. Desta vez, nos unimos a todas as nações do mundo em um esforço comum. Usando os grandes avanços e ciência e nossa compaixão instintiva para curar. Teremos sucesso - e esse sucesso pertencerá a todos e cada um de nós. Devemos ter consolo de que, embora tenhamos mais ainda para aguentar, dias melhores voltarão". Rainha Elizabeth II. "Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: 'Acorda, Senhor!'" Papa Francisco. "Uma pandemia mostra a interconexão essencial da nossa família humana. "(...). Estamos todos juntos nesta situação - e juntos vamos superá-la". Antonio Guterrez, secretário-geral da ONU. "Não projeto o futuro. Não há futuro imaginável. E há um certo mistério nessa vida sem planos, nesses dias que não são mais do que dias". Fernanda Torres. "Se essa tragédia serve para alguma coisa é mostrar quem nós somos. É para nós refletirmos e prestar atenção ao sentido do que venha mesmo ser humano. E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. Tomara que não". Ailton Krenak, líder indígena e escritor.

    Apesar da metáfora, guerra e pandemia não são a mesma coisa e boa parte da humanidade não tinha vivido nenhuma das duas, até hoje. Ao contrário de outras pandemias, nesta os vírus circulam muito depressa, mas os dados andam ainda mais rápido. Resultado: enquanto os cientistas do mundo todo cooperam na tentativa de avaliar medidas de contenção e desenvolver remédios e vacinas, trancados em nossas casas, sem saber o que o amanhã nos reserva, somos incapazes de separar verdades de mentiras no oceano de notícias, rumores, suposições e delírios em que submergimos, por horas, dias a fio.

    Aplicada em registrar o aqui e agora, às voltas com estatísticas, máscaras, testes, respiradores e medidas de contenção, a mídia não tem nem ao menos condições de especular como será o mundo pós-pandemia.

    O presidente do Banco Mundial, David Malpass, admite: "Os países mais pobres e vulneráveis provavelmente serão os mais atingidos". O antropólogo francês Bruno Latour radicaliza e diz: "A última coisa a fazer seria voltar a fazer tudo o que fizemos antes". O filósofo esloveno Slavoj Zizek espera que outro vírus, ideológico, infecte a humanidade: "o vírus de pensar em uma sociedade alternativa, uma sociedade além do estado-nação, uma sociedade que se atualiza nas formas de solidariedade e cooperação global". Para Beata Javorcik, economista-chefe do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento, "o coronavírus não vai acabar com a globalização, mas vai mudar. As empresas terão que se adaptar para ter sucesso. É isso que os vírus nos forçam a fazer, inclusive economicamente".

    Há perguntas relevantes, ainda sem resposta. Mais que especulação estéril, é preciso projetar cenários e, a partir deles, imaginar providências que não podem esperar o dia em que tudo voltará a ser como era antes - pois tudo indica que isso não vai acontecer.

    O mercado financeiro seguirá funcionando quase sem vínculos com a realidade da economia? No mercado de ações, a recompra seguirá como a regra do jogo que sustentava ganhos aparentemente intermináveis? A cartilha do Estado Mínimo será retomada ao pé da letra?

    Robert J. Schiller, professor de economia na Universidade de Yale, laureado com o Nobel de Economia de 2013, admite que os efeitos psicológicos do que estamos vivendo serão semelhantes ao da quebra de 1929, que influenciaram o mercado por 90 anos.

    Estaremos vivendo algo tão dramático e radical quanto o fim do império romano? Recentemente, o historiador norte-americano, Kyle Harper, da Universidade de Oklahoma, publicou um livro (The fate of Rome: climate, disease & the end of an empire. Princeton Univesity, 2018) em que atribuiu o fim do império romano à soma de mudanças climáticas e de três pestes - a de Antonino, Cipriano e Justiniano. Kyle, que andou pelos TEDx da vida falando sobre o livro, define o processo como "o triunfo da natureza sobre as ambições humanas" e acha que os germes foram mais mortais que os bárbaros alemães. A obra, inédita em português, gerou reações contrárias, claro, mas já foi traduzida para o alemão e espanhol.

    Outro historiador, o inglês Bryan Ward-Perkins, em A queda de Roma e o fim da civilização (Alêtheia Editores, 2006) afirma que o fim do mundo romano não foi caracterizado por uma recessão ou redução, mas por "uma notável mudança qualitativa, com o desaparecimento de indústrias inteiras e redes comerciais. A economia do oeste pós-romano não é a do século IV reduzida em escala, mas uma instituição muito diferente e muito menos sofisticada".

    Diversas habilidades e competências só foram reintroduzidas séculos depois, como a cerâmica. Pela simples razão de que não havia mais a quantidade de consumidores com riqueza suficiente para sustentar qualquer especialista em olaria.

    Ward-Perkins reconhece a contribuição negativa da peste bubônica no ocaso do império romano, mas reafirma que as maiores dificuldades foram causadas pelas chamadas invasões bárbaras do século V: "Os invasores entraram no império com um desejo de compartilhar seu alto padrão de vida, não de destruí-lo; (havia) ostrogodos vivendo em palácios de mármore, cunhando moedas de estilo imperial e sendo servidos por ministros romanos altamente educados. Mas, embora não fosse a intenção dos povos germânicos, suas invasões, a disrupção que causaram e o consequente desmembramento do estado romano foram, sem dúvida, a principal causa de morte da economia romana. Os invasores não eram culpados de assassinato, mas eles cometeram homicídio culposo".

    Perkins reconhece que hoje, para suprir nossas necessidades, somos totalmente dependentes de milhares, na verdade centenas de milhares de outras pessoas espalhadas pelo mundo, cada uma fazendo suas próprias coisas e que é complicado imaginar uma simplificação da sociedade semelhante à que aconteceu, quando o poder de Roma foi afinal liquidado.

    Mas estamos, portanto, em meio a uma freada de arrumação? Haverá em algum ano no futuro, para ficar em exemplos menos importantes, mas icônicos, cinco milhões de turistas em Veneza, como em 2017? Ou 30 mil visitantes por dia em busca da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, no Museu do Louvre? Quem terá serenidade suficiente para destinar 10% de seu orçamento anual para as férias? Quantos serão capazes de gastar um salário mínimo numa refeição? Iremos trocar de carro, comprar sapatos ou bolsas que não necessitamos, consumir mais que o necessário, jamais limpar o banheiro ou arrumar a cama... ou são apenas sonhos de quem não pode rosetar?

    Para os mais novos, o verbo popularizou-se no carnaval de 1947, com a marchinha de Haroldo Lobo e Milton Oliveira, na voz de Jorge Veiga. Ouvi muito meu pai cantando. A letra me parecia ingênua: Por um carinho seu, minha cabrocha/ Eu vou a pé ao Irajá/Que me importa que a mula manque/Eu quero é rosetar/ Faço qualquer negócio/ Com você cabrocha/ Tanto faz ser lá no Rocha ou Jacarepaguá/ Pode até a mula mancar que eu vou a pé pra lá/ Que me importa que a mula manque/Eu quero é rosetar.

    Roseta é uma espécie de espora. A música, censurada, fez enorme sucesso. O duplo sentido, que garoto, jamais percebi, teria levado o prefeito de uma cidade do interior a proibir a circulação de um caminhão cujo para-choque exibia a disposição subversiva. O caminhoneiro não se rendeu: trocou os dizeres por "Continuo querendo..."

    Voltando aos dias de hoje, impensáveis, surreais, com os recursos tecnológicos disponíveis, é possível reunir cabeças pensantes do Rocha, do Irajá ou de Jacarepaguá (e de outros tantos lugares), mesmo ou justamente em razão de nossas atuais dificuldades e limitações, sem que a mula manque ou que tenhamos de ir a pé até Campinas.

    Por isso, vale reforçar a disposição do Idea, Instituto de Estudos Avançados, da Unicamp, de promover um seminário para pensar “Depois do futuro”. Há muito a especular, se quisermos um mundo melhor.