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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo abr./jun. 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200003 

    BRASIL
    ENTREVISTA MARIANA TAVARES

     

    Desastre de Brumadinho e os impactos na saúde mental

     

     

    Claudia Mayorga

     

     

    O desastre de Brumadinho possui consequências em todas as dimensões da vida das populações atingidas, incluindo a saúde mental. Conhecer os impactos nesse sentido e propor políticas de reparação associadas aos direitos humanos é uma posição apresentada pelo Fórum Mineiro de Saúde Mental (FMSM), que reúne diferentes entidades que atuam de forma articulada em defesa da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica. Mariana Tavares, participante do FMSM e coordenadora da Comissão de Psicologia das Emergências e Desastres do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais entre os anos de 2018 e 2019, falou com a Ciência&Cultura sobre formas de mitigação dos impactos do desastre na saúde mental da população atingida. Para ela, trata-se de um desastre ainda em curso no que diz respeito ao sofrimento enfrentado pelas vítimas.

     


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    Em janeiro de 2018, Minas Gerais foi mais uma vez surpreendida por um desastre da mineração, dessa vez pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, com impactos socioambientais de grande magnitude. Quais as consequências desse desastre para a saúde mental da população atingida?

    Existem indicadores das equipes de saúde mental dos municípios impactados pelo desastre de que houve aumento do alcoolismo e uso de drogas, de todos os tipos de violência (em especial a doméstica), depressão, suicídios e tentativas, alguns surtos psicóticos, bem como efeitos psicossomáticos, tais como pressão alta, crises alérgicas, problemas respiratórios, de pele e outros, relacionados ou não à contaminação. Ao longo da calha do rio Paraopeba, de Brumadinho a Três Marias, percebem-se efeitos do desastre em gradações distintas. Tais efeitos são descritos pelos protocolos conhecidos no campo da psicologia das emergências e desastres e dizem respeito a eventos de certa forma previsíveis a médio prazo. Não se pode esquecer, no entanto, que se trata de um desastre/crime ainda em curso e que a população se encontra em estado de desolação ou em sofrimento ético-político. Interessa cuidar do sofrimento de cada um, mas não de patologizar ou estigmatizar com CIDs [códigos internacionais de doenças, elaborados pela Organização Mundial de Saúde], dos quais, sabemos, dificilmente um sujeito se liberta. Assim, penso ser mais importante apontar que há sofrimento, mais do que doença.

    O Fórum Mineiro de Saúde Mental (FMSM) tem uma participação muito atuante na construção das políticas de saúde mental do estado de Minas Gerais. A pedido do Ministério Público Federal, a entidade elaborou um relatório técnico sobre os impactos do rompimento da barragem da mina de Córrego do Feijão na saúde mental das populações dos municípios atingidos. Como se deu isso?

    Em agosto do ano passado, Edmundo Antônio Dias, procurador regional substituto dos direitos do cidadão em Minas Gerais, do Ministério Público Federal, solicitou ao FMSM um estudo técnico junto aos municípios atingidos pelo rompimento da barragem da mina de Córrego do Feijão, para elaboração de propostas de composição de equipes multiprofissionais e serviços de saúde mental e demais necessidades referentes ao assunto, que foram apresentadas em audiência na 6ª Vara da Fazenda Pública Estadual e Autarquias, em outubro de 2019. O relatório trouxe recomendações bem concretas e detalhadas, elaboradas a partir de uma pesquisa junto à população, que avaliamos que devem ser consideradas nas políticas que serão desenvolvidas junto aos atingidos e atingidas. Também foi sistematizado um quadro de demandas de cada município para serviços, equipamentos e profissionais de saúde mental.

    Diferentes perspectivas em saúde mental revelam posições e interpretações distintas sobre saúde e tratamento. Qual perspectiva orienta a leitura do FMSM sobre o desastre de Brumadinho e também sua atuação de uma forma mais geral?

    Em sua origem e trajetória, o FMSM está intimamente ligado à luta antimanicomial e à reforma psiquiátrica brasileira. E, portanto, traz para o cenário dos desastres da mineração sua perspectiva de enfrentamento das questões de saúde mental pelo viés da afirmação dos direitos de cidadania das pessoas em sofrimento mental. Em seu entender, essa é uma abordagem que permite aos usuários dos serviços de saúde mental a manutenção e recuperação de seus laços territoriais, sociais e afetivos, o exercício de suas potencialidades e a busca da consolidação de seu livre circular na cidade como pessoas capazes, criativas e produtivas.

    Para além dos necessários e imprescindíveis profissionais do ramo, conhecidos como profissionais psi, as equipes de saúde mental se compõem de um leque amplo de trabalhadores. O mesmo raciocínio ampliado se aplica aos diferentes serviços de saúde mental, ou seja, são pontos de cuidado diversos para atender às diferentes necessidades dos usuários. Os indivíduos que estão a adoecer cotidianamente - uma vez que os efeitos do desastre insistem sobre suas vidas - precisam de uma abordagem no campo da saúde mental que não seja reduzida à medicação para o sono, ao psiquiatra, ao psicólogo ou mesmo aos equipamentos tradicionais. O artesanato, oficinas culturais, de dança, teatro, capoeira, tecnologias, bordados, arpilleras etc. são dispositivos eficazes para a reconstituição de laços afetivos e de vínculos comunitários, na perspectiva de retomada do fio da própria história.

    As universidades e a ciência também podem ter um papel importante no enfrentamento às consequências do rompimento. Como você analisa essa colaboração?

    Os projetos de pesquisa de vários campos de saber são fundamentais e têm sido relevantes para conhecimento da realidade. Observa-se, no entanto, uma certa fragmentação de iniciativas, tornando-se a bacia do Paraopeba um grande campo de pesquisa, que nem sempre, infelizmente, produz o necessário retorno à população. Na minha opinião, a produção de conhecimentos deve ser feita de modo que os atingidos sejam sujeitos do conhecimento. Nesse contexto, a pesquisa no campo psi parece ainda ser incipiente. Esse tipo de produção ganha urgência frente à necessidade de compreensão dos modos de se fazer lutos coletivos e que busquem o entendimento do papel dos vínculos comunitários, bem como dos modos de produção de subjetividades que façam enfrentamento às estratégias de despolitização e de rebaixamento de cidadania, postas em curso cotidianamente pela Vale. Pesquisas e estudos que desvelem formas de sociabilidade fora dos padrões de competividade e isolamento seriam muito bem-vindos.

     

     

    Qual o papel das políticas públicas no enfrentamento dos impactos do desastre na saúde mental da população?

    Na perspectiva do FMSM, as especificidades do desastre/crime e suas implicações sobre as populações e sobre cada sobrevivente culminam na necessidade de cada um dos municípios atingidos serem providos, em quantidade e qualidade, de equipamentos, pessoal e serviços capazes de oferecer à população a escuta necessária e as abordagens que permitam requalificar as vidas afetadas, reconstruindo laços e projetos capazes de dar-lhes um novo sentido. A empresa Vale, nesse contexto, deve figurar como a provedora dos recursos necessários a suprir as demandas municipais.

    Quais cuidados você considera necessários na implementação de políticas de reparação às vítimas da tragédia de Brumadinho?

    Em primeiro lugar é importante retirar a Vale da mesa de negociação. As políticas de reparação deverão ser propostas pelas assessorias técnicas, pelas comissões de atingidos, pelos poderes públicos em suas instâncias locais, regionais e estaduais, pelo judiciário e pelos trabalhadores das políticas públicas dos municípios, que vêm tomando a seu cargo o cuidado com essas populações. Tais políticas não podem estabelecer prazos curtos. É preciso criar mecanismos legais para que nunca mais aconteçam tragédias como essa, e para que nunca se esqueça o ocorrido. É preciso nomear e punir os culpados. A impunidade aumenta ainda mais o esgarçamento de sentido que as populações vivem.

    Qual relação se pode estabelecer entre as consequências das tragédias de Mariana, em novembro de 2015, e de Brumadinho, em 2018, e os desafios para a política nacional de saúde mental hoje?

    Esse cenário de enorme gravidade decorrente dos desastres nas duas bacias apenas evidencia a lógica que vivenciamos hoje no país. A impunidade aos responsáveis é da mesma ordem da naturalização da violência que extingue direitos. O retorno do discurso segregacionista, medicalizante e excludente presentes na cena nacional, ao propor internações compulsórias, comunidades terapêuticas de cunho moral-religioso altamente patologizante, lançam luz e nos alertam para os perigos da lógica manicomial, que fareja possibilidades. Para tanto, a construção de uma narrativa segundo a qual os atingidos são doentes, frágeis, drogados, suicidas, deprimidos parece ser bem apropriada para a argumentação manicomial. Se os desastres/crimes de Brumadinho e Mariana mostram a face do horror, é preciso investir toda a inteligência e afeto na defesa da rede de atenção psicossocial, em toda sua radicalidade. Não se deve colocar em questão os princípios de rede, de serviços substitutivos, da territorialidade e vínculo. Penso que um dos maiores desafios é manter a defesa intransigente deste entendimento, mesmo frente aos discursos tecnicistas e pragmáticos.