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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo abr./jun. 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200005 

    MUNDO
    ENTREVISTA FABIANO LEMES DE OLIVEIRA

     

    A necessária integração entre a natureza e a cidade em projetos urbanísticos

     

     

    Chris Bueno

     

     


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    Onde fica o verde? Ao redor das cidades, em um grande cinturão? Do outro lado do país, numa distante floresta tropical? Ou integrado aos centros urbanos, dividindo igualmente o espaço? Em um mundo cada vez mais urbanizado, a natureza está perdendo seu lugar. E as consequências disso já podem ser sentidas de diversas formas: aumento da temperatura nos centros urbanos, maior poluição nas cidades, chuvas mais intensas. Mas existem soluções. Fabiano Lemes de Oliveira, arquiteto e professor associado de urbanismo do Politecnico di Milano, estuda modelos que buscam equilibrar a urbanização com a presença de espaços verdes. Autor do livro Green wedge urbanism: history, theory and contemporary practice (Bloomsbury, 2017), ele defende uma maior integração da natureza à cidade para solucionar problemas ambientais. Em março deste ano ele esteve na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para ministrar o workshop "Nature-based solutions and green urbanism", na Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC), quando concedeu esta entrevista para a Ciência & Cultura.

    Os efeitos das mudanças climáticas são apenas alguns dos desafios enfrentados pelas cidades atualmente. Como os níveis de urbanização ao redor do mundo e a falta de planejamento afetam e/ou agravam essa situação?

    Nós temos uma previsão de crescimento populacional para 2050 de sete bilhões para 10 bilhões de pessoas no planeta. Acabamos de ultrapassar a barreira de 50% de população urbana no mundo. No Brasil já temos cerca de 85% das pessoas vivendo em cidades. A questão é que a população vem crescendo consideravelmente, principalmente nas áreas urbanas, sem um processo de planejamento estruturado. O que tende a acontecer são espraiamentos urbanos, ou crescimentos desarticulados ou fragmentados, para além da massa consolidada das cidades. Isso a custo da perda da presença da natureza. Pois quanto mais urbanização, maior é o impacto em relação ao meio ambiente. Ou seja, temos mais emissão de dióxido de carbono, consumimos mais energia etc. De forma geral, tendemos a utilizar cada vez mais os recursos naturais e, hoje, já estamos demandando do planeta muito mais do que a capacidade de provisão desses recursos e de sua regeneração.

    Como o mundo vem lidando com essas questões de planejamento urbano para conseguir conciliar a população crescente e a natureza?

    Uma das mudanças paradigmáticas que vemos atualmente, sobretudo na Europa, é o abandono de soluções pontuais, que tradicionalmente têm função única: como instalar uma tubulação que capta água em um lugar e leva para outro. Hoje, buscam-se soluções multifuncionais. Por exemplo, se pensamos em uma solução baseada na natureza, como as cunhas verdes (espaços verdes em forma de cunha que penetram a área urbana), então conseguimos absorver a água da chuva, temos a possibilidade de filtrar essa água, criar ecossistemas e diminuir a temperatura das cidades. As soluções multifuncionais trazem uma série de benefícios diretos e indiretos. Além disso, esse tipo de solução é flexível, bem mais fácil de manejar e transformar do que as estruturas tradicionais. Isso representa uma vantagem importante porque, com as mudanças climáticas, os cálculos para implantar as estruturas anteriores, mais rígidas, se tornaram em grande medida ultrapassados.

    E como é possível mudar esse paradigma das soluções únicas para o de uma visão mais holística?

    É frequente ter uma visão simplificada e reducionista da natureza. Geralmente as pessoas tendem a ver aquilo que traz um benefício direto para elas, por exemplo, um parque onde jogar futebol ou passear com as crianças. É preciso difundir outros valores da natureza, os diferentes benefícios que derivam dela. Muito da pesquisa realizada hoje sobre os serviços ecossistêmicos é justamente para compreender melhor esses benefícios e, assim, conseguir dar valor a eles e ajudar os gestores públicos na tomada de decisão. Porque os gestores públicos não são, em grande medida, ambientalistas ou ecologistas urbanos. Então essa interação entre o poder público, a academia e os escritórios de planejamento de paisagem precisa acontecer. Por exemplo, existem estudos que apontam que caminhadas diárias em meio à natureza proporcionam uma série de benefícios para a saúde física e mental como menos problemas cardiorrespiratórios, menor índice de depressão e ansiedade. E isso pode reduzir os gastos na saúde pública. E, se a população também tem consciência desses benefícios e tem um entendimento maior dos serviços ecossistêmicos, existe a possibilidade de uma maior demanda por esses espaços.

    As cunhas verdes se encaixam nesse aspecto? Quais são seus benefícios?

    As cunhas verdes têm a grande vantagem de trazer os serviços ecossistêmicos próximos ao lugar onde as pessoas vivem. Se imaginarmos uma cidade consolidada com pouca área verde e planejarmos uma área verde ao redor, como um "cinturão", ela também tem o seu valor, mas os seus serviços ecossistêmicos, por exemplo, de diminuição da temperatura urbana ou de prevenção de enchentes, acabam se concentrando nas áreas mais próximas de onde essa natureza se encontra. Se, por outro lado, essa área verde for colocada perto de onde as pessoas vivem, dentro das cidades, o impacto positivo será mais facilmente percebido. Além disso, as cunhas verdes têm uma importância ambiental e ecológica muito grande. O crescimento não planejado - ou não tão bem planejado - das cidades também leva à fragmentação das paisagens. E para uma série de espécies a conexão das unidades da paisagem é fundamental porque isso facilita sua movimentação. Essas espécies, terrestres e aquáticas, precisam de áreas que favoreçam o crescimento populacional e o enriquecimento do "genetic pool". A criação de corredores ecológicos facilita a locomoção de espécies e a sua diversidade genética local. Por outro lado, quanto menos variedade genética, menos resiliência essas espécies terão, tornando mais fácil que se percam por conta de mudanças nas condições em que vivem. E uma das questões fundamentais por conta das mudanças climáticas é essa necessidade de nos tornarmos cada vez mais resilientes.

    O tema das cidades resilientes tem bastante destaque no seu livro. Por que temos que nos preocupar com isso?

    É porque existe uma série de desafios associados às mudanças climáticas que ainda não entendemos direito. Nós prevemos algumas consequências, mas elas ainda vão se manifestar. Portanto, ainda não temos como saber sua intensidade ou seu verdadeiro impacto. Desta forma, é fundamental pensarmos em cidades resilientes, espécies resilientes etc., para podermos nos adaptar ou resistir a essas mudanças.

    Com a penetração do verde nos centros urbanos, como evitar que haja uma "competição pelo espaço" entre a natureza e a cidade?

    Esse é um ponto muito importante, que é preciso ressaltar. A questão da penetração da natureza nas cidades não precisa necessariamente vir acompanhada de perda de espaço para as pessoas. Existem processos de adensamento controlado, de média densidade, que podem ser implementados para que haja ganho de qualidade sem perda da urbanidade. Existem autores que defendem que quanto mais verde melhor. Mas a questão da urbanidade é importante e deve ser considerada. Eu procuro trabalhar com a ideia de equilíbrio entre a urbanidade e a questão da natureza.

    Pode dar exemplos de modelos bem-sucedidos que visam equilibrar a urbanização com a natureza?

    Copenhagen (Dinamarca) talvez seja o modelo mais emblemático, pois foi planejada para crescer envolvendo as cunhas verdes. Estocolmo (Suécia) e Helsinque (Finlândia) também são bons exemplos. Nessas cidades, existiam movimentações topográficas que favoreciam ocupações urbanas em determinadas áreas, mas não em outras. Assim, as cunhas verdes acabaram surgindo "naturalmente". Porém, a partir dos anos 1980, essas cidades "abraçaram a causa". Hoje, Estocolmo tem 10 cunhas verdes com escala regional. Além disso, existem muitos outros projetos em andamento hoje em dia. Alemanha e China vêm trabalhando para a implementação desse modelo. No Brasil, Goiânia tem um projeto interessante chamado Macambira Anicuns, um parque linear que terá 24 km de extensão e será um dos maiores do mundo.

    No seu ponto de vista, quais são os maiores desafios da urbanização brasileira hoje?

    O Brasil tem um potencial de biodiversidade enorme. Se compararmos com outras áreas do planeta onde a diversidade é menor, conseguimos compreender que temos muito valor e que precisamos potencializar mais e entender melhor. A questão de descontinuidade de programas ou de visões políticas acaba sendo um problema, porque essas propostas precisam de continuidade que vai além dos mandatos dos gestores. Uma árvore demora para crescer. Pensar mecanismos para que esses processos possam sobreviver aos ciclos políticos é importante. Outra questão é como fazer para que as interlocuções entre os diferentes níveis e escalas políticas aconteçam. Uma cunha verde não conhece limite de propriedade ou de município. Como posso fazer uma cunha verde em uma cidade, mas impedir que ela entre na cidade vizinha? Por isso, é fundamental ter diálogos intersetoriais com diferentes atores, em diferentes níveis. No caso do Brasil, também acredito que considerar o potencial de desserviço é importante. Precisamos de fato ter estudos para entender exatamente o que está sendo feito para que esses desserviços sejam minimizados ou compensados, e para que os serviços sejam maximizados. Outra questão é a parceria entre o poder público, a academia e a iniciativa privada. Temos que desenvolver modelos de negócios baseados em evidências científicas, que mostrem que os benefícios e valores desses tipos de solução são melhores do que os de estrutura cinza, e que justificam economicamente um investimento.