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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo Apr./June 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200006 

    ARTIGOS
    BRUMADINHO

     

    Apresentação:

    Mais uma barragem se rompe: qual o papel da ciência?

     

     

    Claudia MayorgaI; Zélia ProfetaII

    IDoutora em psicologia social pela Universidade Complutense de Madrid e professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente é pró-reitora de extensão da UFMG (2018-2022)
    IIDoutora em parasitologia pela UFMG, professora do Programa de Pós- Graduação em Saúde Coletiva do Instituto René da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz Minas e diretora em segundo mandato da Fiocruz de Minas Gerais

     

     

    No 25 de janeiro de 2020 completou-se um ano do desastre da barragem I da mina Córrego do Feijão da empresa Vale em Brumadinho, Minas Gerais, que junto com o rompimento da barragem de Fundão da Samarco/BHP/Billiton em Mariana, em 5 de novembro de 2015, figura entre os maiores desastres em barragens de mineração do mundo em termos de extensão, danos socioambientais e mortes imediatas. Esses foram desastres anunciados e que geraram destruição e mortes de diferentes tipos causando muitas dores. Houve contaminação dos solos, dos rios e do ar, impactos na saúde e rupturas nas dimensões ecológica, social, cultural e econômica.

    Mas qual contribuição pode ter a ciência, diante de uma situação de tamanha complexidade? Não é possível responder a essa pergunta sem antes sublinhar que nenhuma solução poderá ser construída de forma isolada e por um único ator ou instituição na sociedade. Entendemos, é claro, que a reparação das perdas e danos provocados pelo rompimento da barragem I da mina Córrego do Feijão é de responsabilidade da Vale, embora planos, programas, projetos e ações voltados a promover reparações devam ser implementados por instituições idôneas e independentes, sob controle social, e não pela Vale ou por meio de empresas ou organizações por ela contratadas, já que é parte e ré em processos judiciais. Um grande desafio é que essas ações aconteçam de forma articulada, continuada, que assegurem justa e plena reparação das perdas e danos, materiais e imateriais, sofridos por indivíduos, famílias, comunidades, coletividades, instituições públicas e privadas e dos impactos no meio ambiente, dimensões que devem ser compreendidas em estreita relação. Vale ainda ressaltar o papel do poder judiciário e a importância dos meios de comunicação, juntamente com outros setores, na garantia dos direitos e do direito à informação.

    É necessário demarcar que esses desastres ocorrem em um contexto específico. O Brasil é um país marcado por um histórico colonial, patrimonialista, patriarcal e onde a exploração econômica extrativista se apresenta como catalisadora do "progresso" e é respaldada por discursos e práticas do Estado brasileiro que produzem, sistematicamente, as melhores condições em termos de flexibilização de impostos, legislações ambientais e trabalhistas para sua instalação e permanência. As noções de desenvolvimento econômico e cultural se arraigaram na sociedade brasileira em detrimento das populações locais consideradas incivilizadas e atrasadas, sendo sua resistência a esse modelo de desenvolvimento considerado "empecilho" ao progresso. Constata-se, dessa maneira, que os impactos da mineração são anteriores ao rompimento de barragens e se associam fortemente a um conjunto de violações de direitos.

    Compreendemos que a ciência deve responder às necessidades concretas da sociedade e aos grandes desafios globais; e, no caso do desastre da Vale em Brumadinho, não poderia ser diferente. De forma bem direta, a sua contribuição na produção de informações e conhecimentos sobre os impactos, os danos, as perdas materiais e imateriais decorrentes do rompimento da barragem, o monitoramento, sistematização e análises dos inúmeros dados e informações relacionadas às múltiplas alterações e rupturas vividas precisam ser realizadas para gerar conhecimento que oriente tomadas de decisão nas diversas dimensões da vida social. A ciência também pode contribuir para a elaboração de ações e políticas de reparação e todo esse processo deve se dar por meio de uma relação dialógica com outros setores da sociedade, o que inclui as populações atingidas. Se por um lado é importante que as políticas públicas, instituições sociais diversas e a população compreendam a importância da ciência, é fundamental que os e as cientistas entendam as necessidades desses outros atores e compartilhem os processos e resultados de suas pesquisas, já que consistem questões de interesse público. A compreensão e o envolvimento do público com a ciência e a participação do cidadão, inclusive através da popularização da ciência, são essenciais para que esta tenha uma contribuição efetiva que possa chegar também à vida cotidiana, indo além do diálogo entre pares (embora essa também seja uma dimensão relevante).

    Sendo assim, a ciência possui inegável aporte à situação do desastre de Brumadinho, e também para a construção de um projeto concreto de desenvolvimento sustentável que evite que situações como essas vividas em 2015 e em 2019 se repitam. Compreender as diversas dimensões que levaram ao desastre de Brumadinho e suas consequências deve nos permitir projetar e colaborar na construção de um país baseado em outros valores. Definir para onde queremos ir e o que queremos ser deve contar com a contribuição de muitos saberes e conhecimentos, o que inclui a ciência que se produz em diálogo com a sociedade. O papel das associações e sociedades científicas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ganha uma grande relevância nessa tarefa que temos diante de nós que, como foi dito acima, deve ser uma ação coletiva e articulada.

    Considerando o tamanho desses desafios e o momento atual pelo qual passa o país, de obscurantismo, negligência com o bem-estar social, de estado mínimo, de negação e de cortes financeiros à educação e à saúde, e de desmonte da ciência, tecnologia e inovação, entendemos que será longa e difícil a concretização dessas tarefas, nos seus diferentes níveis. Mas, apesar das adversidades, é preciso ter esperança e disposição para encontrar saídas.