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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo abr./jun. 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200008 

    ARTIGOS
    BRUMADINHO

     

    Sobreposição de riscos e impactos no desastre da Vale em Brumadinho

     

     

    Mariano Andrade da SilvaI; Carlos Machado de FreitasII; Diego Ricardo XavierIII; Anselmo Rocha RomãoIV

    IDoutorando em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e pesquisador do Centro de Estudo e Pesquisa em Emergência e Desastres em Saúde (Cepedes/Fiocruz-RJ)
    IIPesquisador da Ensp/Fiocruz e atualmente coordena o Cepedes/Fiocruz-RJ. Integra o Comitê Técnico Assessor de Vigilância e Resposta às Emergências em Saúde Pública (CTA-ESP), da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SVS/MS) e o Grupo de Aconselhamento Técnico e Científico da Estratégia Internacional de Redução de Riscos de Desastres da ONU (STAG-UNISDR)
    IIIDoutorando em saúde pública pela Ensp/Fiocruz e atualmente pesquisador no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz-RJ
    IVMestre em saúde pública pela Ensp/Fiocruz e atualmente pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Lis/Icict)

     

     

    No município de Brumadinho, no dia 25 de janeiro de 2019, ocorreu o rompimento da barragem de contenção de rejeitos de minério de ferro BI da mina de Córrego do Feijão, de propriedade da empresa Vale S.A. Inicialmente, a enxurrada percorrera o leito do ribeirão Ferro-Carvão, atingiu as instalações da companhia Vale S.A. e prosseguira promovendo impacto e destruição ao longo da microbacia. A onda de rejeitos alcançou as localidades de Córrego do Feijão e Parque Cachoeira, pequenos vilarejos próximos à mina e, posteriormente, o rio Paraopeba, já na zona urbana da cidade de Brumadinho. Estima-se que ao menos 18 municípios tenham sido afetados ao longo da bacia do rio Paraopeba.

    Esse evento é considerado um dos maiores acidentes de trabalho ampliado da indústria minerária brasileira [1], uma vez que, embora originário do interior da empresa, acabou por atingir trabalhadores, além de extrapolar os limites físicos da planta produtiva e afetar populações, mesmo as mais distantes do empreendimento. Passados 12 meses da ocorrência totalizam-se 270 óbitos - desses, 127 (47%) eram trabalhadores diretos da Vale e os outros 118 terceirizados da empresa (44%) [2].

    Para se compreender o desastre e seu significado no âmbito da saúde pública, Freitas, Heller e Profeta [2], em 2019, salientaram que há de se considerar três aspectos: (i) interrupção do funcionamento normal do cotidiano local ou regional, envolvendo perdas e prejuízos (materiais e culturais, econômicos e ambientais), bem como ampliação dos riscos, doenças e óbitos; (ii) exceder a capacidade de uma comunidade ou sociedade afetada em lidar com a situação utilizando seus próprios recursos, o que pode resultar na ampliação das perdas e danos, bem como doenças e óbitos, levando à sobrecarga das capacidades institucionais locais ou estaduais, superior à sua capacidade de atuação com uso de seus próprios recursos; e (iii) alteração do contexto de produção de riscos e dos processos de saúde e doenças e condições de vida e saúde da população.

    Tendo como referência a necessidade de extrair lições para reduzir os riscos de novos desastres no futuro, este artigo objetiva a compreensão da dimensão dos impactos socioeconômicos, ambientais e sobre a saúde do desastre da Vale, em Brumadinho, MG.

     

    DESASTRES TECNOLÓGICOS E SEUS EFEITOS À SAÚDE

    Desastres como os rompimentos de barragem de mineração são responsáveis por produzir novos riscos ambientais e à saúde. Seus efeitos, apesar de serem percebidos com maior intensidade no curto prazo, evidenciam situações ou fatores de riscos com sérias, profundas e duradouras consequências para a saúde humana em médio e longo prazo [3].

    As consequências dos desastres na saúde e bem-estar são muitas. Além de causarem tragédias pessoais e sofrimentos coletivos, aumento nos níveis de mortalidade e morbidade, impactam de forma indireta no desenvolvimento político, social e econômico dos municípios, estados ou países atingidos. Favorecem condições para o risco de novas doenças e agravos em saúde que se sobrepõem às já existentes [4]. E, além disso, quando envolvem contaminantes ambientais, são responsáveis por danos que provocam transformações abruptas na organização social e nos modos de viver e trabalhar historicamente constituídos nos territórios atingidos, com efeitos sobre a saúde [5].

    Os desastres colocam o desafio à saúde pública na compreensão dos mesmos, mas também na identificação e gestão de novos problemas e necessidades de saúde, pois nem sempre é possível estabelecer uma relação direta entre a exposição da população aos eventos e seus efeitos sobre a saúde, já que muitos dos efeitos não são imediatos [4]. A depender da magnitude, a exposição ocorre em um contexto espacial (país, estado, município, bairro, setor censitário, assentamento rural, distrito sanitário etc.) e os impactos sobre a saúde podem ocorrer em escalas temporal particular, caracterizando-se em períodos que variam entre dias, semanas, meses e anos [4].

     

    LIÇÕES DO RIO DOCE: O CASO DA SAMARCO

    No dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de rejeito de Fundão (BRF), controlada pela mineradora Samarco, uma joint-venture da companhia Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton, liberou ao ambiente um volume estimado de 34 milhões de metros cúbicos (m3) de lama [6]. Essa barragem, que se destinava a armazenar rejeitos da extração de minério de ferro, estava passando por obras de ampliação. Esse foi o maior registro de desastre envolvendo barragens de rejeito no mundo - quando considerado o volume de rejeito liberado, extensão geográfica atingida e custos econômicos associados [5, 7].

    O desastre foi responsável pelo óbito de 18 pessoas e um desaparecido [8]. No momento do acidente, a barragem possuía 106 metros de altura e volume estimado em 55 milhões de m3 de rejeito [9]. A enxurrada de lama e rejeitos foi carreada por mais de 660 km, atingindo toda a extensão do rio Doce e chegou, após 17 dias (em 22 novembro), ao litoral do Espírito Santo, contaminando a zona costeira do mar capixaba com uma pluma de dispersão de mais de 60 km (7.000 km2). Inicialmente, 39 municípios lindeiros foram atingidos [10] e a pluma de contaminação percorreu 250 km ao norte da foz do rio Doce até o arquipélago de Abrolhos.

    Seus efeitos, apesar de apresentarem maior intensidade no curto prazo, se prolongam no tempo e geram riscos adicionais à saúde da população, mesmo as mais distantes do empreendimento minerário. O monitoramento ambiental realizado ao longo da bacia do rio Doce, por exemplo, ainda apresenta concentrações muito elevadas de substâncias perigosas nos diversos compartimentos ambientais afetados (solo, água, ar) envolvendo, inclusive, a presença de contaminantes metálicos [11,12]. Há de se considerar que os elementos metálicos, ao contrário de muitos compostos orgânicos, não apresentam degradação ao longo do tempo para "espécies" menos tóxicas. Alguns tornam-se, inclusive, mais tóxicos com o passar do tempo [11].

    A complexidade da gestão da situação está na relação dos diversos níveis de indeterminância e nossa ínfima capacidade de controle e previsibilidade da situação ambiental. No médio e longo prazo, os impactos ambientais resultaram no comprometimento dos serviços de provisão de alimentos e água potável [5]; alteração dos ciclos hidrológicos (contribuindo para enchentes nos períodos chuvosos) [13]; e alteração nos ciclos de vetores e de hospedeiros de doenças meses após o desastre [9, 14]. Ao longo do curso do rio atingido, foram muitas as propriedades que apresentaram perda de produtividade, no acesso à renda e de bens de uso coletivo. Resultaram também em danos imateriais, como a perda de padrões de organização social e vínculos comunitários, assim como práticas culturais que configuram os modos de vida local [15]. Alguns desses grupos atingidos eram comunidades tradicionais e indígenas [16].

    A Fundação Renova, solução institucional adotada visando a necessária agilidade para receber recursos financeiros e efetuar despesas, levou com que os recursos ficassem "sob total controle" da empresa e com "deplorável falta de transparência" e participação das comunidades atingidas no processo de negociação [17]. Apesar de haver participação de componente governamental e das empresas responsáveis, estas últimas possuíam um poder desproporcional para influenciar as decisões [18]. Assim, a Renova se tornou responsável por gerir todas as informações e decisões do ponto de vista ambiental, social e econômico, conferindo à empresa autonomia na celebração de acordos extrajudiciais e na definição de quem é ou não "atingido" [19].

    No município de Mariana, o desastre não só resultou em danos humanos, ambientais e sobre a infraestrutura, mas também apresentou redução de arrecadação municipal, que se reflete na capacidade de oferta dos serviços essenciais como a saúde, educação, saneamento, entre outros. No período de 2014 a 2018, as receitas correntes foram reduzidas de R$ 445 milhões para R$ 264,6 milhões [20].

    Na figura 1, sistematizamos alguns dos efeitos registrados no caso do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana. Os efeitos dos desastres tecnológicos envolvem desde contaminantes ambientais, dispersos e acumulados em diferentes compartimentos (ar, água, solo, alimentos etc.); múltiplas formas de uso e ocupação humana que se utilizam desses serviços ecossistêmicos; até os efeitos sobre a saúde - efeitos subclínicos, desenvolvimento de doença e agravos ou mesmo a morte - a depender da nocividade do poluente, da intensidade e tempo da exposição e da suscetibilidade individual. Apresentamos algumas das situações de riscos que influenciaram na alteração do perfil de morbimortalidade, em função da modificação dos fatores socioeconômicos e ambientais, sobrepostos no tempo e no espaço.

    As lições aprendidas dos estudos já desenvolvidos no rio Doce podem beneficiar a predição sobre os efeitos da tragédia de Brumadinho. Entretanto, deve-se levar em conta suas especificidades, assim como salienta Heller [17], que chama atenção para as diferentes mobilidades dos rejeitos, a diferente capacidade de diluição do rio Paraopeba, o efeito da represa de Três Marias na atenuação da poluição e as incertezas do impacto no rio São Francisco - manancial extremamente relevante para a segurança hídrica para mais de um milhão de pessoas em 255 municípios da região nordeste do Brasil [21].

     

    IMPACTOS DO DESASTRE DA VALE S.A. EM 2019

    No dia 25 de janeiro de 2019 ocorreu o rompimento da barragem I, uma das 11 barragens do complexo minerário Córrego do Feijão. A barragem foi construída em 1976 pela Ferteco Mineração e adquirida em 2001 pela Vale. No momento do acidente, a estrutura possuía, entre barramento e rejeitos armazenados, aproximadamente 11.600.000 m³. Grande parte desse material foi lixiviado para o ribeirão Ferro-Carvão, formando ondas de rejeitos que avançaram sobre trabalhadores, equipamentos, locais de trabalho e um refeitório. Em seu caminho, encontrou as barragens de contenção de sedimentos B IV e B IV-A, que também se romperam [22].

    Os danos humanos e socioeconômicos ocorreram de forma degressiva à barragem. O rejeito atingiu de forma direta e imediata nove setores censitários com população municipal estimada em 3.485 pessoas e 1.090 domicílios. Os danos não se restringiram ao trecho mais próximo à barragem, sendo registrados impactos ao longo de toda a bacia do rio Paraopeba. São considerados atingidos 18 municípios, somando 1.165.667 pessoas expostas direta e indiretamente. Estima-se que há de 147 a 424 comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, silvicultores e pescadores artesanais) atingidas direta e indiretamente, quando considerados, respectivamente, raios de 500 e 1000 metros, numa extensão aproximada de 250 km [23].

     

    IMPACTOS AMBIENTAIS

    Conforme levantamentos preliminares realizados pelos órgãos competentes e setores técnicos do Ministério Público de Minas Gerais [24], o desastre causou severos danos ao longo de toda a bacia do rio Paraopeba. Houve impactos nos recursos hídricos, flora, fauna, ar, solo e patrimônio cultural (material e imaterial) da região, com prejuízos incalculáveis e de difícil reversão.

    Entre as alterações ambientais estão aquelas associadas à supressão de ambientes naturais florestais e à sobreposição das faixas marginais dos mananciais atingidos, fragmentando unidades de preservações e degradando a qualidade atmosférica - envolvendo, inclusive a perda de habitat terrestre e aquático, influenciando negativamente a flora e a fauna. Segundo o órgão ambiental, a passagem da lama causou a destruição de 269,8 ha. Estima-se que foram subtraídos 133,27 ha de vegetação nativa de Mata Atlântica e 70,65 hectares de áreas de preservação permanente (APP). Dos 269,8 ha de área atingida diretamente pelos rejeitos, aproximadamente 218,1 ha estão situados dentro da zona de amortecimento (ZA) do Parque Estadual Serra do Rola Moça [25].

    No quadro 1, reproduzimos a caracterização química do rejeito da barragem realizada pelo Ministério da Saúde [26]. Os resultados apontam elevados teores de ferro e manganês em 100% das amostras. O parâmetro manganês chegou a ser registrado com valores até 27 vezes maiores que o teor médio encontrado na região. Os parâmetros cobre e bário foram encontrados acima do preconizado pela legislação vigente em 60% e 10%, respectivamente, das amostras.

    O rio Paraopeba também foi intensamente atingido. O Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), agência estadual ambiental, destacou as concentrações de ferro total (3095,5 mg/L) que superaram em até 2.200 vezes o valor máximo permitido para mananciais classe II. O manganês total (736,500 mg/L) foi encontrado em valores de 7.365 vezes maiores que o máximo permitido. Dentre os metais pesados, os parâmetros chumbo total e mercúrio total apresentaram valores de até 21 vezes acima do limite preconizado [27].

    Thompson e colaboradores [28] realizaram monitoramento da qualidade de água em sete locais ao longo do manancial afetado, em dois períodos distintos: fevereiro e maio de 2019. Imediatamente após o desastre, o ponto de coleta a seis quilômetros da barragem registrou elevação de turbidez (3000 NTU) 30 vezes maior que o valor recomendado pela legislação. Ainda, os teores de ferro, alumínio, cádmio e cobre apresentaram registro, respectivamente, de 2,8, 1,9, 6 e 7.7 pontos acima dos valores preconizados. Em relação às amostras realizadas no mês de maio, os teores de ferro apresentaram alteração em relação à legislação em cinco pontos, alumínio em sete pontos, cobre em cinco pontos e cádmio em um ponto.

    Em outro estudo, o Instituto SOS Mata Atlântica apresentou os índices de qualidade da água aferidos nos trechos de rio impactados. Dos 12 pontos analisados, nove estavam com o índice de qualidade da água ruim e três regular. O parâmetro cobre chegou a ser registrado com valores de até 600 vezes maiores que o permitido. Outros elementos como ferro, manganês e cromo, encontrados em nível elevados, também são de interesse à saúde pública. No caso do cromo, aferido em níveis 42 vezes acima da legislação, pode causar efeitos mutagênicos, morbidades e mortalidade, a depender da dose e tempo de exposição [29].

    Um estudo realizado pelo Instituto Butantã destacou que o rejeito pode causar morte e anomalias em embriões de peixes. Os pesquisadores alertam para os possíveis desfechos negativos decorrentes da exposição de longo prazo, inclusive relacionados ao consumo da água contaminada. A lama do rejeito, mesmo após ser diluída 6.250 vezes, foi capaz de matar e provocar defeitos mutagênicos nos peixes. O estudo argumenta que a principal causa dessa modificação pode estar ligada ao conjunto de elementos químicos identificados, destacando-se, entre outros, a concentração de mercúrio 720 vezes acima do permitido [30].

    Em relação às soluções de abastecimento humano, o Ministério da Saúde coletou 1.847 amostras em 16 municípios afetados. Foram utilizados 104 pontos de coleta, a uma distância de até 100 metros das margens do rio Paraopeba. Os resultados indicam valores insatisfatórios para os parâmetros: ferro, em 336 amostras; alumínio, em 117 amostras; e manganês, em 207 amostras; sendo que em 38 amostras todos esses contaminantes estiveram acima do valor permitido. Os parâmetros microbiológicos e organolépticos estavam insatisfatórios, embora tenham sido identificados, pontualmente, valores insatisfatórios para os parâmetros antimônio, arsênio, bário, chumbo, cromo, mercúrio, níquel e selênio [26]. As concentrações detectadas para algumas dessas substâncias superam os valores de risco à saúde sugeridos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e estão em inconformidade com a norma de potabilidade brasileira.

     

    IMPACTOS SOCIOECONÔMICOS

    O rompimento da barragem I ocasionou inúmeros impactos negativos para a economia local: na arrecadação, geração de renda e aos postos de trabalho - no campo e na cidade de Brumadinho. De forma semelhante ao município de Mariana, em Brumadinho também é esperado o declínio das receitas correntes municipais, havendo, no período, elevação das despesas do município por conta dos problemas decorrentes do rompimento, não apenas no atendimento pelo sistema público de saúde, mas também pela destruição da infraestrutura municipal [19].

    A agricultura local se mostrou como atividade particularmente impactada: a passagem do rejeito causou graves danos aos agricultores da região, principalmente aos pequenos proprietários. Anteriormente ao desastre, a região atingida possuía vocação para produção de alimentos orgânicos e agroecológicos, uma vez que 71% dos 443 estabelecimentos agropecuários cadastrados não utilizavam agrotóxicos. Não obstante, muitos prejuízos foram contabilizados devido à perda de maquinário e depreciação do valor imobiliário [20].

    A Agência Nacional de Águas (ANA) disponibiliza informações sobre utilização de pivôs centrais de irrigação que são obtidos com base em imagens de satélite de alta e média resolução espacial [31]. Esses dados foram utilizados para estimar a área de plantação potencialmente atingida pelo desastre. Segundo as informações disponíveis, a área atingida possui 7.861 hectares irrigados por pivôs centrais, sendo que 8% se encontram a um quilômetro da margem e 57% a 10 km da margem. Os municípios com as maiores área plantadas e utilizando dessa técnica são: Pompéu (26%), Paraopeba e Curvelo (16%) e Felixlândia, que responde por 9% do total (Figura 2). Cabe salientar que esses dados apontam para grandes e médios produtores da região, e que os números tendem a ser bem mais elevados quando considerados pequenos produtores que podem utilizar de meio de irrigação de menor porte.

    Associado à dimensão de análise, ainda que preliminar, o impacto socioambiental só não foi maior devido ao pagamento do auxílio financeiro emergencial aos atingidos. Os valores pagos pela empresa constituem parte das indenizações acordadas em fevereiro de 2019, previsto, inicialmente para serem pagos em 12 parcelas. Ainda em novembro de 2019, o fomento teve seu pagamento prorrogado por mais 10 meses. Entretanto, a indenização será integral apenas aos moradores das áreas mais próximas à barragem, contemplando de 10 a 15 mil atingidos [32]. Contudo, com o fim das parcelas e somada a diminuição da renda vinda da exploração de minério da cidade, configura-se um quadro preocupante para as contas do município.

     

    PROBLEMAS DE SAÚDE, DOENÇAS E AGRAVOS

    As lições adquiridas no desastre da Samarco favoreceram uma atuação envolvendo articulação multiagência para redução dos riscos à saúde da população atingida. Dentre as ações imediatas do Sistema Único de Saúde (SUS), a implementação de um conjunto integrado de ações de prevenção (ações de comunicação de risco), imunização, vigilância em saúde (epidemiológica e sanitária) e atenção em saúde (Unidade de Pronto Atendimento/UPA, hospital, laboratórios, centros de atenção psicossocial/CAPS, Núcleo de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde/Nupic, unidades básicas de saúde/UBS, estratégia saúde da família/ESF e núcleos de apoio à saúde da família/NASF) permitiu ofertar à população serviços de saúde estratégicos para reduzir os danos do evento [33]. Esse conjunto de ações envolvendo os três níveis de gestão permitiu ofertar serviços à saúde articulados ao longo do rio Paraopeba, mesmo após o encerramento das iniciativas de curto prazo [26].

    O boletim epidemiológico do Ministério da Saúde apontou um aumento significativo de manifestações clínicas ao longo do primeiro ano pós desastre. Em 2019, o município de Brumadinho apresentou elevação de cerca de 31,22% nos registros de doenças diarreicas agudas quando comparadas ao ano de 2018. De acordo com o órgão, o aumento dos casos pode estar relacionado à inconformidade da qualidade das águas analisadas. Uma possível alteração nos ciclos de vetores e de hospedeiros de doenças também é destacado no boletim. Os registros de dengue em 2019, em relação ao mesmo período do ano anterior, apresentaram incremento de 4.028% [26].

    Já em relação aos transtornos psicossociais, dados da Secretaria Municipal de Saúde de Brumadinho mostraram um aumento de 80% no consumo de ansiolíticos e de 60% no uso de antidepressivos [24]. Os dados de registro das ações ambulatoriais de saúde (RAAS) demonstram aumento de episódios depressivos em 151%, de 352 casos registrados em 2018, para 883 registros em 2019. Reações ao estresse grave apresentaram aumento de 1.272% em 2019 em comparação com o ano anterior. Foram registradas 52 tentativas de suicídios em 2019, sendo que 75% utilizaram medicamentos como agente tóxico [26].

    A estratificação das categorias do CID-10 apontou elevação no volume de internações por outras afecções da pele e do tecido subcutâneo (L98). Esses resultados são de extrema importância dado que essa classificação do CID aponta relação com contaminação por cromo ou seus compostos tóxicos [34]. Os casos de hemorragia subaracnoide (I60) também podem apresentar relação com acidentes vasculares cerebrais e ter relação com a ocorrência do desastre [35] (Tabela 1).

     

     

    Os desafios não são menores para a organização do setor saúde no médio e longo prazo. O desastre provocou uma sobrecarga no sistema de saúde; os atendimentos na atenção básica apresentaram aumento de 63% no primeiro quadrimestre de 2019. Tal alteração da rotina exigiu a contratação de mais de 80 profissionais, além dos que já existiam, com um custo de mais de 1,5 milhão de reais por mês. Com isso, os gastos da prefeitura com saúde chegaram a R$ 70 milhões no ano de 2019, contra R$ 55 milhões em 2018 [24].

    Como ocorreu no desastre da Samarco, tal situação pode se agravar nos próximos meses e anos, devendo-se considerar que, para além das situações já definidas e contabilizadas, há diversas populações a jusante da barragem que estão expostas a diferentes impactos sobre suas condições de vida e saúde. Realidade essa que exige a continuidade do monitoramento e a garantia da prestação dos serviços estratégicos, uma vez que muitos efeitos podem se manifestar de forma tardia, exigindo sensibilidade dos serviços públicos, inclusive os de saúde, no médio e longo prazo [26].

     

    DESAFIOS PARA A GESTÃO DOS RISCOS PARA A SAÚDE PRESENTE E FUTURA

    As consequências para a saúde das populações expostas e o setor de saúde, além de outros, são duradouras em situações de desastres. Representam inúmeros desafios para os municípios atingidos em diversos setores. Os problemas que surgem são complexos e diversos, sendo de difícil gestão, pois envolvem uma multiplicidade e sobreposição de situações de exposições, riscos e efeitos, que se estendem no espaço e no tempo. Tais características exigem o monitoramento e acompanhamento das populações afetadas para além dos impactos imediatos (óbitos, lesões, perda de infraestrutura e equipamentos públicos etc.), envolvendo efeitos no médio (semanas e meses) e longo (anos e décadas) prazos decorrentes dos diferentes modos de exposições e impactos que esses eventos podem causar em toda extensão territorial e suas populações atingidas - que vão para muito além do município de Brumadinho.

    Esses processos afetam populações e territórios de modo mais amplo e sistêmico, gerando impactos sobre as condições de vida e situações de saúde (tensões, depressões, inseguranças, ampliação e agravamento de doenças crônicas) com aumento dos problemas e necessidades de saúde. Esse cenário exige maiores investimentos financeiros para a ampliação dos serviços, exatamente quando as receitas dos municípios afetados pelo desastre tendem a diminuir.

    A procrastinação na reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem da Samarco ampliou os efeitos sobre a saúde da população, incluindo o aumento expressivo de doenças respiratórias geradas pela poeira da lama contaminada em Barra Longa. A demora na reconstrução não só prolonga o sofrimento, mas também estigmatiza essas populações. Algumas comunidades ainda estão à espera do assentamento, mesmo após quatro anos do desastre. O acordo judicial firmado entre as empresas, a União e os governos estaduais capixaba e mineiro elaborou 42 programas de reparação estabelecidos no Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), em março de 2016. Porém, apenas um deles foi efetivamente implementado e concluído [15].

    A experiência acumulada com os desastres da Samarco, em Mariana, e da Vale, em Brumadinho, nos apontam que se por um lado esses desastres envolvem inúmeras incertezas para a ciência e para a gestão pública, exigindo políticas e ações que sejam baseadas no princípio da precaução e que protejam as populações de risco, há também uma multiplicidade de atores sociais e interesses diversos. As empresas, em contextos de precarização e/ou fragilização das instituições públicas, muitas vezes sobrepõem seus interesses, em uma relação assimétrica, aos das populações atingidas de diferentes modos ao longo dos espaços e territórios, bem como ao longo do tempo.

    A partir da ocorrência dos desastres, as vulnerabilidades preexistentes da população são somadas aos novos cenários de riscos, produzindo contextos extremamente complexos em relação às consequências ambientais e sobre a saúde, combinadas com diferentes níveis de incertezas. Nesses contextos, as empresas buscam não só diminuir suas responsabilidades, mas também transferir o ônus da prova dos efeitos negativos à saúde da população aos atingidos, contando, para isso, com uma estrutura legal que as favorece, a ponto de produzirem seguidos desastres sem nenhuma alteração radical no marco legal e no fortalecimento das instituições públicas que devem proteger a população dos riscos e cuidar de sua saúde. O risco e os efeitos adicionais decorrentes desse tipo de evento atingem os mais diversos setores, como apontado neste trabalho. Alterações no marco legal são necessárias, mas pouco avançarão sem que sejam seguidas do fortalecimento dos órgãos públicos responsáveis pelo gestão dos riscos de desastres. Uma maior transparência e participação da sociedade, desde os processos de licenciamento até os de preparação para desastres e recuperação das condições de vida, são passos fundamentais para a definição de responsabilidades e o restabelecimento da normalidade para a população das regiões atingidas.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Freitas, C. M.; Silva, M. A. D. "Acidentes de trabalho que se tornam desastres: os casos dos rompimentos em barragens de mineração no Brasil". RevBrasMedTrab, n. 17, 2019.

    2. Freitas, C. M. D.; Heller, L.; Profeta, Z. M. D. L. "Desastres em barragens de mineração: lições do passado para reduzir riscos atuais e futuros". Epidemiologia e Serviços de Saúde, v. 28, n. 1, 2019.

    3. Lucchini, R. G. et al. "A comparative assessment of major international disasters: the need for exposure assessment, systematic emergency preparedness, and lifetime health care". BMC publichealth, v. 17, n. 1, p. 46, 2017.

    4. OPAS. Desastres Naturais e Saúde no Brasil (Série Desenvolvimento Sustentável e Saúde 2). 1ª. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.

    5. Freitas, C. M. D.; Silva, M. A. D.; Menezes, F. C. D. "O desastre na barragem de mineração da Samarco: fratura exposta dos limites do Brasil na redução de risco de desastres". Cienc. Cult, v. 68, n.3, p. 25-30, 2016.

    6. Ibama. Laudo Técnico Preliminar: Impactos ambientais decorrentes do desastre envolvendo o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais. Ibama/MMA: Brasília, p. 38, 2015.

    7. Pimentel, T. "MPF pede R$ 155 bilhões em ação civil contra Samarco, Vale e BHP". Desastre Ambiental em Mariana, Belo Horizonte, 3 de maio 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/minas-gerais/desastre-ambiental-em-mariana/noticia/2016/05/mpf-pede-r-155-bilhoes-em-acao-civil-contra-samarco-vale-e-bhp.html>. Acesso em: 2019.

    8. MPF. Força-tarefa, Avaliação dos efeitos e desdobramentos do rompimento da barragem de Fundão em Mariana-MG. Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional, Política Urbana e Gestão Metropolitana-Governo de Minas Gerais. Belo Horizonte, p. 273, 2016.

    9. Brasil. Ministério do Trabalho e Previdência Social. Relatório de análise de acidente rompimento da barragem de rejeitos Fundão em Mariana - MG. Brasília, p. 138, 2016.

    10. Freitas, C. M.; Silva, M. A. D. "Acidentes de trabalho que se tornam desastres: os casos dos rompimentos em barragens de mineração no Brasil". Revista Brasileira de Medicina do Trabalho, v. 17, n. 1, p. 21-29, 2019.

    11. Silva, A. P. D. S. et al. Estudo de avaliação de risco à saúde humana em localidades atingidas pelo rompimento da barragem do Fundão - MG. Ambios Engenharia e Processo: São Paulo, p. 369, 2019.

    12. Igam. Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Encarte especial sobre a qualidade das águas do rio Doce após 3 anos do rompimento da barragem de Fundão 2015-2018. Semad: Belo Horizonte, p. 65, 2018.

    13. Rodrigues, L. "Enchentes em rios afetados por lama da Samarco e da Vale preocupam MP". Agência Brasil, 2020. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-02/enchentes-em-rios-afetados-por-lama-da-samarco-e-da>. Acesso em: 8 fevereiro 2020.

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