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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo abr./jun. 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200010 

    ARTIGOS
    BRUMADINHO

     

    Desafios da participação na reparação de desastres - entre modelos, públicos e comunidades imaginadas

     

     

    Cristiana Losekann

    Professora associada do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e professora permanente do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFES. Coordena o Organon - Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Mobilizações Sociais DCSO/PGCS/UFES e é bolsista produtividade em pesquisa nível 2 do CNPq

     

     

    Desde o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, em novembro de 2015, e, posteriormente, do rompimento da barragem de Córrego do Feijão em Brumadinho, no mesmo estado, as pessoas afetadas pelos efeitos desses desastres passaram a denunciar a ineficiência das empresas em reparar os danos causados. Os governos e atores estatais diversos vêm sendo também objeto de crítica pela forma como, por incompetência ou má-vontade, não conseguiram em anos de desastres responsabilizar as empresas pelos crimes socioambientais causados, tampouco pressioná-las pela justa reparação para milhares de famílias de Minas Gerais e do Espírito Santo. Somado a isso, o desastre que ocorreu em Brumadinho evidencia como também não foram tomadas medidas de controle sobre a situação das barragens de mineração e que, portanto, novos rompimentos podem acontecer.

    Na avaliação das pessoas atingidas, comunidades e movimentos sociais, os acordos realizados entre governos e empresas que definiram formas de reparação não são adequados e vêm, na verdade, provocando mais danos. As formas de negociação dos instrumentos de reparação vêm sendo criticadas pelas decisões substantivas produzidas e, nesse contexto, uma compreensão geral foi pouco a pouco se consolidando no sentido de que a ausência do sujeito interessado nas negociações, aquele que sofreu o dano, estaria produzindo tais medidas equivocadas de reparação. Assim, no processo de mobilização dos atingidos foi sendo produzida uma ideia e discurso de que a participação do sujeito que sofreu os danos seria o requisito fundamental democrático para o processo de construção de respostas aos problemas decorrentes dos rompimentos. Além disso, o enquadramento da "participação" produziu uma ideia de que as decisões tomadas num modelo onde há ampla participação dos atores seriam também garantia de soluções mais justas. A consolidação do enquadramento da "participação" nos processos de reparação do desastre culmina com a adoção pelos atores do sistema de justiça (Ministério Público e Defensoria Pública) da ideia de participação como um princípio a ser respeitado.

    Sendo assim, em um contexto onde a ideia de participação passa a ser articulada por diversos atores, figurando como elemento central das expectativas de reparação, se faz necessário evidenciar como a participação está sendo acionada pelos diferentes atores e, sobretudo, as expectativas que os atores têm com a participação. Além disso, é necessário problematizar tais expectativas com aquilo que conhecemos sobre a realidade de conflitos ambientais que envolvem poderes assimétricos de empresas transnacionais e governos, em contraposição a comunidades locais e movimentos sociais enfraquecidos ainda mais nos contextos políticos recentes.

    Minha preocupação desde o início desse processo foi alertar que é preciso ter muita cautela quando se lida com o conceito de participação, tão debatido e tensionado na teoria política, justamente por ser controverso. O risco ao mobilizar tal conceito sem cuidados é que ele vem carregado de valores positivos que ecoam na opinião pública como sinônimo de democracia e justeza. Ou seja, quando se diz que um processo de decisão foi participativo, as pessoas em geral o associam a um valor positivo e o entendem como justo e inclusivo. Assim, um instrumento que se diz participativo pode legitimar as decisões através dele produzidas e também os atores envolvidos.

    Mas se no senso comum a participação é vista como algo bom, isso não significa que se saiba exatamente o seu significado e todas as suas implicações. Há muita controvérsia na formação do conceito de participação na ciência política. O conhecimento dessas controvérsias, fruto de décadas de pesquisas científicas, poderia ajudar a entender o que está em jogo quando se pensa em participação como algo que resolverá os problemas da reparação de desastres como os ocorridos com os rompimentos das barragens de Fundão e de Córrego do Feijão.

     

    O CONCEITO DE PARTICIPAÇÃO

    A primeira coisa que deve ser entendida na busca por uma definição do que é participação é que as teorias que o formulam são de natureza normativa. Isso significa que elas possuem um caráter prescritivo, ou seja, definem o conceito não apenas buscando as características elementares, descritivas e empíricas do fenômeno da participação, mas também buscam estabelecer parâmetros do que seria uma participação ideal que possa gerar democracia e justiça. Ou seja, é um conceito atrelado a ideais positivos de bem-comum, e a participação seria a forma através da qual o conquistaríamos. Seria então a participação mais ligada a um meio, método ou procedimento de alcançar esses ideais?

    Aí começam alguns debates, tendo em vista que há duas dimensões de análise nessa questão, uma relacionada ao que é substantivamente esse bem-comum, ou o justo, e outra referente aos caminhos para que essas ideias substantivas se concretizem nas práticas sociais. Resumindo muito os debates de teoria política contemporânea, os principais pontos de acordo sugerem que: i) dada a pluralidade de formas de existir, o sentido substantivo de bem-comum só é possível se construído e acordado permanentemente pelo público que o compõem; ii) já que o sentido é permanentemente construído pelo público, as formas de organização do pensamento produzem consequências sobre os ideais condensados em valores e ideias substantivas de bem-comum perseguidas pelo público. Assim, chegamos nas duas características centrais da participação bem desenvolvidas por Carole Pateman no trabalho que é referência sobre o assunto [1], qual sejam, a participação tem caráter educativo e construcionista (ou seja, ela forma o próprio bem comum), bem como apresenta um caráter procedimental, ligado ao processo de tomada de decisão.

    Esse último aspecto, ligado à tomada de decisão, foi o que se tornou mais difundido no senso comum. Muitas vezes ligado ao termo deliberação, esse sentido da participação seria um processo de tomada de decisões horizontal onde os envolvidos tomam parte ativamente do resultado final. Essa ideia simplificada traz muitos problemas quando operacionalizada em modelos práticos diversos.

    O próprio termo deliberação, que no cotidiano é usado como sinônimo de decisão e até mesmo para designar uma suposta dimensão efetiva da participação, ganhou um amplo debate e um capítulo próprio dentro das teorias da democracia e da justiça. Iniciada contemporaneamente por Habermas [2], e vinculada às noções de opinião pública e esfera pública, a ideia de deliberação foi progressivamente - muito em função das críticas - se afastando do compromisso com uma decisão final e colocando sua ênfase no processo comunicativo. Assim, seria essa prática dialógica, seja como for, que construiria o próprio público e formaria suas preferências e valores [3, 4].

    Feita essa apresentação inicial acerca do conceito de participação, posso agora lhes apresentar algumas das implicações mais fundamentais do uso do conceito de participação no nosso cotidiano de processos políticos.

    Como explicitado, a participação tem uma ligação com a noção de público. Isto porque, quando falamos em participação e bem comum, estamos lidando com sujeitos que compartilham questões, interesses ou que simplesmente estão implicados de diversas formas por objetos comuns. Isso é o que constitui de forma simplificada um público. É "quem participa" da questão. Ou seja, quando buscamos um processo participativo, teremos sempre que definir quem está incluído, quem deve participar.

    John Dewey, em sua célebre obra O público e seus problemas [5], argumentou que uma associação coletiva acontece quando as pessoas identificam problemas comuns e agem para atuar sobre ele. Nesse sentido podemos entender que os públicos são criados em grande parte na problematização dos assuntos comuns. Assim, uma das formas mais certas de identificar quem deve participar é observar quais são as pessoas que estão empenhadas em construir e discutir um determinado problema.

    Até aqui, tudo bem: sabemos que, quando um grupo de pessoas denuncia certas questões de interesse comum endereçando o debate ao exterior, isso cria um público. Contudo, uma questão apontada pelos teóricos chamados de deliberacionistas, interessados em debater esse assunto, é que em sociedades atravessadas por grandes desigualdades estruturais tais como a pobreza, o racismo, o sexismo etc., os grupos que estão subalternalizados tendem a ser excluídos da construção dos problemas públicos em geral. Além disso, como vários teóricos dos chamados estudos pós-coloniais observaram, alguns sujeitos têm mesmo dificuldade de se perceberem como parte de um problema público, ou parte da sociedade, tendo em vista suas condições precárias de vida, de saúde, de trabalho e de educação. Não seria razoável esperar que essas pessoas tivessem uma macro compreensão dos problemas sociais a ponto de conseguirem observar sua própria condição de precarização - ainda que isso possa ocorrer.

    A partir dessas observações críticas da autoconsciência como base de fundação do público, podemos compreender que o "quem participa" não é tão simples ou óbvio, já que em função do racismo, pobreza, machismo, homofobia etc., muitas pessoas podem ser excluídas do público que participa. Uma forma de tentar resolver esse problema seria garantir leis e instituições capazes de zelar pelos direitos dessas pessoas.

    Assim, "quem participa" é em geral a questão mais importante e desafiadora em um processo participativo e, sem dúvida, é o principal problema encontrado na construção da participação dos atingidos pelas barragens de Fundão e Córrego do Feijão em suas ações de reparação. Acontece que, para definir quem participa, nesse caso é fundamental a definição de quem foi/é atingido.

     

    AS ATINGIDAS E OS ATINGIDOS

    Marcar a distinção de gênero no subtítulo acima anuncia apenas uma das dimensões de especificidade que existem na definição de quem é atingido. Como acontece nos conflitos ambientais, são atingidos todas as comunidades e seres que existem na rota de um empreendimento. No caso de um desastre há ainda o fato contingencial, catastrófico, e a intensidade do acontecimento, que é grave. Assim, embora possamos conhecer por observação das territorialidades preexistentes quem é atingido, apenas o escrutínio rigoroso do caso pode identificar quem e o que foram atingidos.

    Além disso, conforme já foi apresentado acerca da problematização da participação na teoria política contemporânea, há quem mesmo sendo atingido não se reconheça assim, em função de constrangimentos culturais, sociais e econômicos, bem como pela existência de variáveis sobre as quais não temos controle e acesso. Por exemplo, no caso de uma pequena vila de ribeirinhos que usam, sem saber, água contaminada por decorrência dos rejeitos de mineração. Eles são atingidos pelas consequências do desastre mesmo que não saibam disso. Ou seja, são necessários mecanismos complementares à autoidentificação para que possamos garantir reparação a todos.

    Mesmo entre aqueles que se veem como atingidos pelo desastre, muitos são os obstáculos para acessar o reconhecimento como partes legítimas desse problema. Os obstáculos decorrem das desigualdades estruturais da sociedade na qual estão inseridos (econômicos, culturais, de gênero etc.) e das especificidades de processos participativos em conflitos ambientais. Assim, como argumentou Zhouri, muitas são as "violências das afetações", produzidas por múltiplas cargas colocadas sobre as pessoas atingidas. Uma delas que merece destaque é a necessidade de entrar em um processo comunicativo em que a linguagem exigida é técnica ambiental e jurídica [6].

    Em nossos anos de pesquisa de campo sobre o desastre na bacia do rio Doce e na costa do Espírito Santo ouvimos com frequência a reivindicação sobre reparação de "danos morais" - o que na verdade expressa a forma com que as pessoas adaptam seus males e sofrimentos à linguagem jurídica, que é muito limitada. Uma gama enorme de queixas que vão do lazer no rio interrompido à perda de referenciais culturais de memória, como as espécies de peixes conhecidas e que acabaram, só encontram forma comunicativa de serem ouvidas quando tratadas como danos morais.

    Dessa forma, se queremos a constituição de um público inclusivo para um processo participativo de reparação dos desastres é preciso admitir que as desigualdades e diferenças sociais irão aparecer nesse público e que, portanto, é preciso encontrar formas de garantir a expressão do dissenso e as variadas formas de comunicação e linguagem.

    Indo além, é necessário compreender que a formação de um público nesse caso depende da construção de uma noção compartilhada do problema, o que não é óbvio uma vez que, com diferentes posições sociais, as pessoas são atingidas de formas diferentes e percebem esses efeitos heterogeneamente. A formação de um público para o desastre ou, como diria Dewey, a formação do desastre como um problema público é uma das questões que precisam ser enfrentadas. Isso precisa ser construído.

     

    A CONSTRUÇÃO DE COMUNIDADES IMAGINADAS

    A noção de comunidade como um coletivo que compartilha valores, contextos, história etc. é importante. Como Benedict Anderson [7] argumentou, as sociedades organizadas politicamente só fazem sentido enquanto nações, ou delimitações coerentes e soberanas, porque se constroem enquanto comunidades imaginadas.

    Um público que imagina é um coletivo que propõe dinâmicas para seus problemas, que constrói um lugar muito além do físico e possível. Imaginar uma comunidade é criar uma territorialidade que envolve espacialidade e temporalidade, memórias e projeções de futuro. A reconstrução e retomada dos rumos dos lugares afetados pelos desastres de barragens de mineração passa pela recuperação do poder de condução do processo, do poder de imaginação capaz de reagregar comunidades, e mesmo fundar novas.

    Sendo assim, a construção de um processo participativo de reparação não se trata simplesmente da implementação de métodos e modelos prontos, muito menos do tratamento personalista e individualista que vem sendo aplicado no modelo de reparação atual. É a dimensão coletiva que precisa ser construída ou não haverá nada mais do que um simulacro de participação.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Pateman, C. Participation and democratic theory. Cambridge University Press, 1970.

    2. Habermas, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

    3. Bohman, J. O que é a deliberação pública? Uma abordagem dialógica. A deliberação pública e suas dimensões sociais políticas e comunicativas: textos fundamentais. Belo Horizonte: Autêntica, p. 31-84, 2009.

    4. Dryzek, J. S. Discursive democracy: Politics, policy, and political science. Cambridge University Press, 1994.

    5. Dewey, J.; Rogers, M. L. The public and its problems: An essay in political inquiry. Penn State Press, 2012.

    6. Zhouri, A. "Violência, memória e novas gramáticas da resistência: o desastre da Samarco no Rio Doce". Revista Pós-Ciências Sociais, v. 16, p. 51-68, 2019.

    7. Anderson, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, v. 8, 2008.

    8. Pesquisa financiada pelo edital 1/2016 Universal, processo 426974/2016-6.