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    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo abr./jun. 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200011 

    ARTIGOS
    BRUMADINHO

     

    Rompimento da barragem da Vale em Brumadinho: impactos socioambientais na Bacia do Rio Paraopeba

     

     

    Marcus Vinicius PolignanoI; Rodrigo Silva LemosII

    IMédico especialista em medicina preventiva e saúde ambiental, mestre em epidemiologia, doutor em pediatria social, professor associado do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenador geral do Projeto Manuelzão UFMG
    IIGeógrafo, especialista em direito ambiental (PUC Minas), mestre e doutor em geografia e análise ambiental (UFMG) e coordenador de análise ambiental do Instituto Guaicuy

     

     

    No dia 25 de janeiro de 2019, a barragem de minério da Vale localizada no ribeirão Ferro-Carvão (Córrego do Feijão), afluente do rio Paraopeba, se rompeu, ocasionando um dos maiores desastres socioambientais da história do Brasil. O rompimento da barragem configura-se como um dos maiores crimes ambientais e de acidente de trabalho do Brasil, uma vez que a maioria das 270 vítimas era de trabalhadores que atuavam na área da empresa. E tudo isso se deu por ação de negligência relacionada à operação de barragem de rejeitos operada e de responsabilidade da Vale.

    Os desastres são classificados quanto à sua intensidade, evolução e origem. O caso em análise, quanto à intensidade, classifica-se como nível IV, ou seja, "desastre de muito grande porte" [1]. Os desastres desse nível mais elevado são caracterizados quando os danos causados são muito importantes e os prejuízos muito vultosos e consideráveis.

    Nessas condições, esses desastres não são superáveis e suportáveis pelas comunidades, mesmo quando bem informadas, preparadas, participativas e mobilizadas. É necessário apoio e ajuda de estruturas externas à área afetada. Nessas condições, o restabelecimento da situação de normalidade depende da mobilização e da ação coordenada entre entidades de ensino e pesquisa, setores da sociedade civil e instituições dos três níveis de governo (municipal, estadual e federal) e, em alguns casos, até de ajuda internacional.

    Assim que tomamos conhecimento do rompimento da barragem Vale na região do Córrego do Feijão, compusemos uma equipe formada por professores e pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) de diferentes áreas do conhecimento, a saber: medicina, biologia, geografia, geologia e comunicação, para nos deslocarmos para a região e fazermos uma avalição in loco dos efeitos devastadores do crime socioambiental.

    Há muito o projeto Manuelzão UFMG vem defendendo a abordagem ecossistêmica baseada na regionalização por bacia hidrográfica como forma de planejamento e de gestão ambiental. A avaliação desse evento tem que necessariamente passar por uma abordagem ecossistêmica a fim de entender a dinâmica e a complexidade do processo.

    Para a realização dessa análise, é importante utilizar uma abordagem transdisciplinar e sistêmica incorporando o compartilhamento de diferentes áreas do conhecimento e diversas metodologias, com a incorporação da participação social dentro da concepção de complexidade em contraposição ao reducionismo, tendo as incertezas como inerentes aos sistemas complexos [2].

    É fundamental compreender que um desastre dessa dimensão não pode ser mensurado apenas pelos danos locais, dados pontuais e temáticos. O impacto gerado pelo rompimento da barragem da empresa Vale é complexo e dinâmico, pois interfere de forma sistêmica e sinérgica ao mesmo tempo em relações ambientais, sociais e econômicas ao longo de toda a bacia do rio Paraopeba. O impacto global é bem maior e mais complexo que a simples soma das partes.

     

    TERRITÓRIO IMPACTADO: BACIA DO RIO PARAOPEBA

    O uso e a ocupação desordenada da bacia do rio Paraopeba vêm historicamente provocando um processo contínuo de degradação, que tem comprometido a qualidade e a quantidade das águas. O desastre ambiental agravou e intensificou a degradação ambiental que já ocorria na bacia do rio Paraopeba.

    A bacia está inserida no contexto do alto rio São Francisco, com uma área aproximada de 13.600 km², correspondente a 2,5% da área total do estado de Minas Gerais. A bacia compreende 48 municípios, sendo que 14 fazem parte da região metropolitana de Belo Horizonte, com uma população total aproximada de 2,8 milhões de pessoas, das quais cerca de 2 milhões estão inseridas na bacia [3].

    O rio Paraopeba é um dos mais importantes tributários do rio São Francisco, percorrendo aproximadamente 510 quilômetros até a sua foz, no lago da represa de Três Marias. A sua bacia hidrográfica encontra-se na área de transição dos biomas Cerrado e Mata Atlântica, com predomínio do primeiro, que corresponde a 54% da superfície total da área. A bacia é bem dividida, sendo que, na parte alta da mesma, está presente o Cerrado e, na baixa, a Mata Atlântica [3].

    A Mata Atlântica se encontra hoje reduzida a 22% de sua superfície original no Brasil, com um grande desflorestamento causado pelas atividades humanas. Mesmo reduzida e muito fragmentada, estima-se que ela abrigue cerca de 20.000 espécies vegetais (cerca de 35% das espécies existentes no Brasil), incluindo diversas espécies endêmicas e ameaçadas de extinção. As principais características da Mata Atlântica são: árvores de médio e grande porte, formando uma floresta fechada e densa; a grande biodiversidade, com presença de diversas espécies animais e vegetais; árvores de grande porte responsáveis pela formação de um microclima na mata; e uma fauna rica, composta por diversas espécies de mamíferos, anfíbios, aves, insetos, peixes e répteis. De acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o rompimento da barragem provovou a destruição de 133,27 hectares de vegetação nativa de Mata Atlântica e 70,65 hectares de áreas de proteção permanente (APP).

    A região do Cerrado apresenta uma grande heterogeneidade de ambientes, compreendendo diversos tipos de comunidades bióticas, condicionadas pela origem geológica, composição e profundidade do solo, altura do lençol freático e outros fatores, e cujas fisionomias variam desde formas campestres até florestais.

    A bacia hidrográfica do rio Paraopeba é de extrema relevância no âmbito do abastecimento público de água, pois é responsável pelo fornecimento para aproximadamente 53% da população da região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), por meio dos sistemas Várzea das Flores, Serra Azul e Rio Manso. Nesse sentido, vale destacar que este é um dos maiores impactos ambientais cuasados pelo rompimento da barragem, uma vez que as águas ficaram contaminadas e impossibilitadas para o uso humano.

    Das atividades econômicas instaladas na bacia são destaque a exploração mineral, siderurgias, indústria petroquímica e automobilística, produção de bebidas, serviços, geração hidrelétrica, pecuária e agricultura. Notadamente, na região do Alto Paraopeba há um grande volume de investimentos nos setores minerário e siderúrgico, que nos últimos anos contribuíram fortemente para a economia da região. Por isso, é fundamental estabelecer medidas que equilibrem a atividade econômica, geradora de empregos e impostos, e o abastecimento humano e a preservação das águas. O atual evento demosntra claramente que esse equilíbrio está longe de ser alcançado.

    Até o ano de 2011, os principais responsáveis pela degradação das águas eram os lançamentos de esgotos domésticos e industriais, além do uso e ocupação inadequados do solo nas áreas urbana e rural, notadamente no que diz respeito à ausência ou insuficiência de cobertura vegetal. O somatório das cargas orgânicas e inorgânicas ultrapassa, em muito, a capacidade natural de assimilação e autodepuração do rio Paraopeba e de alguns de seus afluentes. Se os dados já demonstravam uma contaminação significativa pelos esgotos domésticos, a situação se agravou com a contaminação provocada pela pluma de minério após o rompimento.

    O rio Paraopeba possui expressiva riqueza e diversidade em sua ictiofauna (espécies de peixes). No Atlas da Biodiversidade de Minas Gerais consta que o rio Paraopeba é um dos prioritários para conservação dos peixes no estado de Minas Gerais, devido à sua grande importância biológica. Os peixes representam o grupo mais estudado e, consequentemente, os melhores indicadores de padrões zoogeográficos dentro do ecossistema aquático. Foi detectada a presença de 95 espécies de peixes na bacia do rio das Velhas. O rompimento da barragem não apresentou episódios significativos imediatos de mortandade de peixes, embora os efeitos sobre o ecossistema aquático, a médio e longo prazo, terão impactos na biota aquática [3].

     

    TIPIFICAÇÃO DE IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS

    A partir de todos os dados obtidos é possível tipificar diferentes impactos gerados pelo rompimento da barragem. As alterações morfológicas no sistema fluvial são referentes aos impactos gerados pela retirada de vegetação, pela erosão nas margens dos cursos d'água, pelas alterações no traçado fluvial e ainda pela deposição de materiais sedimentares no leito fluvial.

    Os impactos sociais com o rompimento da barragem são muito complexos e passaram por diferentes linhas de discussão: destruição de estruturas públicas e privadas; alteração do modo de vida de comunidades tradicionais e perda de patrimônio imaterial; perda da capacidade produtiva de pequeno agricultor; saúde de comunidades ribeirinhas e atingidos (danos psicológicos, saúde mental, doenças de veiculação hídrica); proliferação de vetores (ratos, insetos); restrição de usos possíveis para as águas; impossibilidade/diminuição da oferta de pescado; limitação dos usos da água, inclusive para dessendentação animal. Os impactos ao meio biótico foram elencados considerando principalmente a retirada de vegetação ciliar, a mortandade da biota aquática e os impactos na biota terrestre.

    Para esboçar os impactos produzidos ao longo da bacia utilizamos de informações próprias produzidas por visitas de campo, análises de água e sedimentos elaboradas por diversas entidades e consolidadas pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) [4]. A primeira constatação é de que a maioria das mortes poderia ter sido evitada.

    A figura 1 apresenta um estudo de dambreak (rompimento da barragem) no qual fica evidenciado que as estruturas administrativas (restaurante e escritórios) estavam localizadas na área denominada de "auto-salvamento", de onde as pessoas dificilmente teriam tempo para escapar. A falta de uma ação preventiva provocou perdas de vidas humanas: 257 corpos foram identificados (121 empregados próprios, 114 funcionários terceirizados e 19 moradores da região), e 13 desaparecidos (7 empregados próprios, 5 terceirizados e uma pessoa da comunidade).

     

    IMPACTOS GERADOS POR REGIÕES

    A intensidade dos impactos gerados foi diversa em função da distância do epicentro do rompimento da barragem, como será abordado a seguir.

     

    REGIÃO DE IMPACTO DIRETO

    A região mais impactada foi do ribeirão Ferro-Carvão até o encontro com o rio Paraopeba. A quantidade de sedimentos depositada foi intensa, a destruição da vegetação foi completa e os impactos ecológicos e sociais foram extremos, incluindo a perda de vidas humanas.

    A qualidade das águas apresentou alterações exorbitantes com a presença de metais pesados encontrados nos sedimentos e em suspensão na água. As alterações na turbidez também foram intensas, além das dos demais parâmetros que medem a qualidade das águas.

    As alterações morfológicas no sistema fluvial foram extremas devido à deposição de sedimentos no leito fluvial, na planície de inundação e até mesmo transpondo tal área, prejudicando diretamente os pequenos produtores e alterando bruscamente seu modo de vida.

    Os impactos sociais consequentemente foram imensos, com destruição de diversas estruturas públicas e privadas; a perda de patrimônio imaterial e material; perda de vidas humanas, alterações nas condições de saúde física e mental da população. As doenças de veiculação hídrica, impossibilidade de pesca, diminuição da disponibilidade hídrica para abastecimento humano e dessedentação animal foram extremas, limitando as possibilidades de uso da água.

    A mortandade da biota aquática, envolvendo peixes, fauna bentônica e anfíbios foi excessiva. A retirada de grandes áreas de vegetação ciliar e impactos na mortandade da biota terrestre também são impactos extremos concernentes ao meio biótico.

     

    REGIÃO DE PROPAGAÇÃO DA PLUMA DE REJEITOS PARA O RIO PARAOPEBA

    O onda de sedimentos gradativamente atingiu toda a extensão do rio Paraopeba, mas mantendo-se nos limites do calha do rio, alterando num primeiro momento de forma significativa a turbidez por onde passou e carreando metais pesados ao longo de todo o rio até a barragem de Retiro Baixo, que atuou como uma barreira impedindo que a pluma se deslocasse para o encontro do Paraopeba com o rio São Francisco.

    Um dos mais importantes efeitos em toda e extensão do rio foi a restrição do uso da água em decorrência da constatação de metais pesados acima dos valores permitidos para um rio de classe II. Na figura 2 é possível verificar os valores extremos que foram alcançados nos primeiros dias logo após o rompimento.

     

     

    A contaminação do rio provocou de forma imediata a restrição dos usos da água. A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), a Secretaria de Estado da Saúde (SES) e a Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa) recomendaram que a população não fizesse uso da água bruta do rio Paraopeba, no trecho que abrange os municípios de Brumadinho até Pompeu, para nenhuma finalidade; e determinaram, ainda, que a empresa responsável pela barragem suprisse a população com água em condições seguras para os mais diversos usos. Essa recomendação vigora até os dias atuais, e foi respaldada pelo monitoramento executado pelo Igam, Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) e Agência Nacional de Águas (ANA).

    O uso da água nos trechos localizados antes do município de Brumadinho e depois da usina hidroelétrica de Retiro Baixo estão liberados para os mais diversos fins e não existe nenhuma restrição por parte dos órgãos públicos.

    Destaca-se também que até a presente data, os resultados obtidos indicam que os rejeitos minerários oriundos do rompimento da barragem 1 não ultrapassaram os limites do reservatório de Retiro Baixo, não atingindo, dessa forma, o reservatório de Três Marias e o rio São Francisco.

     

    DINÂMICA DOS SEDIMENTOS E METAIS PESADOS

    É necessário diferenciar os processos de impactos ambientais decorrentes do rompimento da barragem de Fundão a partir das características morfológicas e hidrosedimentares dos corpos d'água, assim como perceber que diferentes variáveis têm comportamentos diferenciados ao longo do tempo e dos variados contextos ambientais.

    O material sedimentar transportado ao curso d'água é composto por três principais granulometrias: argila (<0,002 mm), silte (0,053mm a 0,002 mm) e areia (2mm a 0,53m). A areia e o silte são transportadas por arraste e saltação, com forte influência da turbulência do curso d'água e de aumentos de vazão, como nos períodos chuvosos. A argila, por sua vez, é transportada em falsa-solução, enquanto colóide, movimentando-se predominantemente em velocidade próxima a do escoamento do curso d'água. Dessa forma, as partículas de argila, que têm o potencial de adsorver metais pesados, com o rompimento, possuem uma mobilidade e velocidade de transporte superior à dos siltes e das areias.

    Inicialmente é necessário tipificar alguns grandes contextos de impacto ambiental: 1) área de intensa deposição de sedimentos na bacia do ribeirão Ferro-Carvão; 2) rio Paraopeba, até o encontro com o barramento inserido em Juatuba; 3) rio Paraopeba, até o reservatório de Retiro de Baixo; 4) reservatório de Retiro de Baixo.

    Na dinâmica fluvial e ecológica, a área 1 é uma fonte contínua de sedimentos a serem carreados para o rio Paraopeba, principalmente em períodos de chuvas. As obras de contenção e de tratamento das águas fluviais, em realização, contribuem para diminuir o impacto. Entretanto, considera-se que a estabilização de todos os materiais e a sua retirada para não gerar novas fontes de contaminação é essencial. O material depositado tem composição variada, contendo tanto areia, quanto silte e argila [6].

    De maneira geral, observa-se que na primeira semana de monitoramento após o rompimento da barragem os maiores impactos sobre o ribeirão Ferro-Carvão e sobre o rio Paraopeba ocorreram nos primeiros 40 km de extensão, atingindo os municípios de Brumadinho a São Joaquim de Bicas (trecho 1). Esse trecho ficou totalmente impactado, inviabilizando o uso da água para as mais diversas finalidades, pois encontrava-se com valores elevados de turbidez, ferro, manganês, alumínio e presença de metais pesados como chumbo e mercúrio (Figura 3).

     

     

    Com a chegada do material sedimentar ao rio Paraopeba, o sedimento desagregado pela ação das águas em suas diferentes granulometrias terá comportamento diferenciado de acordo com suas próprias características. Inicialmente, as areias e siltes foram transportados de forma mais lenta, principalmente considerado o barramento inserido no município de Juatuba. Esse material sedimentar acumulado no leito fluvial impacta a dinâmica ecológica e geomorfológica do curso d'água (Figura 4).

     

     

    Nas semanas seguintes foram detectadas oscilações para os parâmetros turbidez, ferro total, manganês total, chumbo total e mercúrio total também nos arredores dos municípios de Esmeraldas, São José da Varginha, Papagaios, Paraopeba, Curvelo e Pompéu (trechos 2 e 3). Essas oscilações ocorreram sobretudo devido ao período de chuvas que contribuíram com a remobilização do material depositado no leito do rio ou novos aportes de rejeitos no rio Paraopeba de trechos a montante

    As partículas de argila, por sua vez, com velocidade de deslocamento maior e suspensas na água em falsa solução, transpõem barreiras físicas com bastante facilidade e foram transportadas com possibilidades de deposição de pequenas quantidades até o reservatório de Retiro de Baixo (Figura 5).

     

     

    O reservatório de Retiro de Baixo, ao que tudo indica e até o momento, tem contido o material sedimentar mais fino, uma vez que, como ambiente lêntico (de água parada), a tendência de deposição aumenta, assim como se diminui a velocidade de transporte. Esse material sedimentar é associado principalmente à argila. Com os diferentes níveis de impacto, é importante destacar que:

    o aumento de sedimentos nos cursos d'água geram fortes impactos para o sistema ecológico fluvial;

    os materiais mais finos, principalmente argila, podem entupir sistemas filtrantes (de plâncton, a peixes) e causar morte - situação a ser estudada e detalhada;

    os materiais mais grosseiros (areia e silte) estão continuamente se movimentando ao longo do leito fluvial e impactam toda a dinâmica ecológica das comunidades bentônicas;

    esses materiais estão em movimento e seu impacto tem ainda de ser dimensionado, principalmente no que se refere à capacidade de adsorção e transporte de metais pesados.

    Na medição de novembro de 2019 (entre os dias 02 e 28), já refletindo o período chuvoso, foi verificado que os valores de turbidez estiveram acima do limite da legislação (até três vezes) nos trechos 1 a 3, entre os municípios de Brumadinho e Curvelo. Assim como a turbidez, os resultados de manganês total também estiveram acima do limite legal nos mesmos trechos. Os resultados de manganês total variaram de 1,5 a aproximadamente 14 vezes o limite estabelecido na legislação, sendo o maior valor registrado no dia 18 de novembro.

    Os resultados de ferro dissolvido apresentaram valores até três vezes acima do limite legal, sendo o maior valor registrado no dia 05. Os resultados de alumínio dissolvido também estiveram acima do limite legal (até 10 vezes) nos trechos 1 a 4 (Brumadinho até Pompéu). O maior valor de alumínio dissolvido foi registrado no dia 05, no município de Brumadinho. Houve aumento das concentrações de manganês, ferro, alumínio e da turbidez no rio Paraopeba relacionado com a intensificação das chuvas no mês de novembro.

    A presença de sedimentos depositados ao longo do leito do rio provocou mudanças significativas no habitat de bentos e peixes, o que pode comprometer aspectos fundamentais para a vida e a reprodução da biota aquática. Os metais pesados identificados e presentes no rio podem se incorporar à cadeia alimentar e, consequentemente, produzir a contaminação de espécies de peixes.

    Na figura 6 é apresentado modelo de matriz de danos socioambientais como consequência do crime ambiental do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, demonstrando que os danos são sistêmicos, sinérgicos e dinâmicos.

     

    CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Diante da complexidade e da gravidade do crime socioambiental, resta a indagação: o que pode ser reparado e como fazê-lo? Vidas perdidas não são passíveis de reparação.

    O dano ambiental pode ser classificado quanto à sua extensão, como material ou patrimonial, ou imaterial, extrapatrimonial ou moral. O dano ambiental, como o de qualquer outra espécie, enseja a responsabilidade do causador - no caso a Vale -, ficando este obrigado a repará-lo.

    A reparação é a materialização do princípio do poluidor-pagador e do princípio da reparação integral, dois dos três princípios básicos da responsabilidade civil ambiental. Os agentes devem assumir (internalizar) totalmente os custos sociais externos (externalidades) da degradação ambiental, que devem ser levados em conta no processo produtivo, bem como reparar na totalidade o dano, independentemente do seu custo. Se o lucro por eles almejado não é limitado, a responsabilidade pela reparação também não deve ser [7].

    O § 3º do art. 225 da Constituição Federal dispõe que a responsabilização, tanto da pessoa física como da jurídica, pelas condutas e atividades consideradas nocivas ao meio ambiente poderá se dar nas esferas administrativa, penal e cível, de forma independente e cumulativa.

    A partir das consequências do rompimento criminoso da barragem as possibilidades são: recuperação, reabilitação e restauração. Por vezes tratadas como sinônimos, é importante distinguir os diferentes conceitos.

    a) recuperação: a legislação federal brasileira menciona que o objetivo da recuperação é o "retorno do sítio degradado a uma forma de utilização, de acordo com um plano pré-estabelecido para o uso do solo, visando à obtenção de uma estabilidade do meio ambiente" (Decreto Federal 97.632/89). Esse decreto vai de encontro ao estabelecido pelo Ibama, que indica que a recuperação significa que o sítio degradado será retornado a uma forma e utilização de acordo com o plano pré-estabelecido para o uso do solo. Significa também que o sítio degradado terá condições mínimas de estabelecer um novo equilíbrio dinâmico, desenvolvendo um novo solo e uma nova paisagem. A recuperação é a reparação dos recursos ao ponto que seja suficiente para restabelecer a composição e a frequência das espécies encontradas originalmente no local.

    b) reabilitação: trata-se do retorno da área degradada a um estado biológico apropriado. Esse retorno pode não significar o uso produtivo da área a longo prazo, como a implantação de uma atividade que renderá lucro, ou atividades menos tangíveis em termos monetários, visando, por exemplo, a recreação ou a valorização estético-ecológica.

    c) restauração: refere-se à obrigatoriedade do retorno ao estado original da área, antes da degradação. Esse termo é o mais impróprio a ser utilizado para os processos que normalmente são executados. Por retorno ao estado original entende-se que todos os aspectos relacionados com topografia, vegetação, fauna, solo, hidrologia etc. apresentem as mesmas características anteriores à degradação. Trata-se, portanto, de um objetivo praticamente inatingível. Fazer a restauração de um ecossistema para consequentemente recuperar sua função é algo técnica e economicamente questionável, embora alguns profissionais que atuam na área ambiental tenham equivocadamente essa meta, o que torna necessária uma nova conscientização dos mesmos sobre a inviabilidade desse processo.

    Finalmente, esse evento leva à reflexão sobre o modelo de mineração que impera no país desde o período colonial e que reproduz formas de exploração econômica e social que se perpetuam com processos obsoletos, comprometendo a segurança dos trabalhadores e do meio ambiente. Para além de reparar é preciso definitivamente mudar a lógica desse modelo.

     

    REFERÊNCIAS

    1. Castro, A. L. C. Glossário de defesa civil: estudos de riscos e medicina de desastres. Ministério do Planejamento e Orçamento - Secretaria Especial de Políticas Regionais - Departamento de Defesa Civil. 2ª edição revista e ampliada, 1998.

    2. Polignano, M. V.; Goulart, E. M. A.; Machado, A. T. G. D. M.; Lisboa, A. H. Abordagem ecossistêmica da saúde. Belo Horizonte: Instituto Guaçu, 2012. 200 p.

    3. Cobrape. Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia do Rio Paraopeba. Disponível em https://www.pdrhparaopeba.com. Acesso em: 19 de dezembro de 2019

    4. Minas Gerais, Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam). Informativo mensal da qualidade das águas do rio Paraopeba após o desastre na barragem B1 - Informativo mensal da qualidade das águas do rio Paraopeba, após o desastre na barragem B1 no complexo da Mina Córrego Feijão da Mineradora Vale/SA no município de Brumadinho - Minas Gerais. IGAM, números de 1-55, 2020. Disponível em <http://portalinfohidro.igam.mg.gov.br/noticias/362-informativo-mensal-da-qualidade-das-aguas-do-rio-paraopeba-apos-o-desastre-na-barragem-b1-no-complexo-da-mina-corrego-feijao-da-mineradora-vale-sa-no-municipio-de-brumadinho-minas-gerais>. Acesso em: 20 de janeiro de 2020.

    5. Vale. Plano de ação de emergência barragem 1 (PAEBM), 2016. Digitado

    6. Lemos, R. S. Perspectivas ambientais e ecológicas do rompimento da barragem do Córrego do Feijão. Disponível em: <http://www.gabientedecrise.org.br>. Acesso em: 10 de dezembro de 2019.

    7. Cardin, V. S. G.; Barbosa, A. H. C. "7 formas de reparação do dano ambiental". Disponível <http://www.galdino.adv.br/artigos/download/page>. Acesso em: 10 de dezembro de 2019.