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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo Apr./June 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200014 

    ARTIGOS
    BRUMADINHO

     

    Todo dia é vinte e cinco de janeiro

     

     

    André Luiz Freitas Dias; Fernando Antônio de Mélo

    ICoordenador do Programa Transdisciplinar Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor e pesquisador do Departamento de Psicologia, do Programa de Pós-Graduação em Direito (mestrado e doutorado), do Programa de Pós-Graduação em Promoção de Saúde e Prevenção da Violência (mestrado profissional), da Faculdade de Medicina da UFMG e professor colaborador do Grupo Girche, da Universidade de Barcelona, Espanha
    IICoordenador do Programa Transdisciplinar Polos de Cidadania da Faculdade de Direito da UFMG, professor e pesquisador do Teatro Universitário da Universidade e dramaturgo e diretor geral da trupe “A torto e a direito”

     

     

    Cordel é poesia do povo
    Que sabe captar sentimentos
    Sejam fatos da história
    Sejam amores, tormentos
    Nesse caso ele registra
    Com poesia os sofrimentos

    Mais aprendemos com o tempo
    Conhecer nosso lugar
    Quem sabe da dor do povo
    É quem por ela passar
    Queremos só com estes versos
    Tristeza compartilhar

    Nossa história em Brumadinho
    É anterior ao crime
    Foi na luta pela água
    Que a Coca-Cola suprime
    Lá da Serra da Moeda
    Que sem água, ao povo oprime

    Foram tantas violências
    Violações de direitos e danos
    Que o Polos foi convocado
    Para enfrentar os Tiranos
    A Vale e os governos
    Buscando lucros insanos

    E com a comunidade
    A verdade revelar
    Pois junto com o sofrimento
    Vem a força de lutar
    Lutar contra covardias
    E a frieza de matar

    Mas o povo é sempre esperto
    Com as mentiras amáveis
    Que tornam crimes graves
    Em fatos inevitáveis
    E a Jóia brasileira
    com desculpas inesgotáveis

    Do Espetáculo do Desastre
    Negamos participar
    Os protagonismos locais
    Queremos valorizar
    A voz do povo é quem manda
    Só vamos amplificar

    É outro nosso compromisso
    Universidade que mobiliza
    Fortalece políticas públicas
    Que o direito preconiza
    Junto à saúde local
    Que os cuidados realiza

    Com este cordel queremos
    Nosso respeito expressar
    Duzentas e setenta e duas vidas
    A ganância veio ceifar
    Que nunca serão esquecidas
    Nem a história vai apagar

    Por isso nos corações
    De Brumadinho inteiro
    Dilacerados com a dor
    Desse crime sorrateiro
    Todo dia que amanhece
    É Vinte e Cinco de Janeiro

     

    CORPOS DESCARTÁVEIS

    Um esquete do Programa Transdisciplinar
    Polos de Cidadania da UFMG
    Dramaturgia: Fernando Limoeiro e trupe
    “A torto e a direito”
    Direção: Fernando Limoeiro
    Trupe “A torto e a direito”: Sol Markes
    Santos, Jéssica Naiane Cordeiro Alcântara,
    Marco Antônio Rodrigues de
    Aguiar Júnior, Raquel de Faria Rodrigues,
    Alice de Oliveira Cabral e Silva,
    Lucas Raimundo
    Pesquisadores-extensionistas envolvidos:
    André Luiz Freitas Dias e Gabriel Augusto
    Vilaça da Silveira

     

    PRÓLOGO

    Num espaço público ou praça de uma comunidade, uma trupe de teatro se apresenta, abordando uma catástrofe criminosa que acabara de acontecer e atingiu a todos os moradores.

     

    PERSONAGENS

    (por ordem de entrada):
    Arauto – narrador
    Valéria Ganancia – Morte
    Conceição Brumadinho – defunta agricultora
    que ajudava o tio na lavoura às
    margens do Paraopeba
    Eustáquio Brumadinho – defunto motorista;
    funcionário terceirizado
    Alberto Brumadinho – defunto engenheiro
    da Cale

    Arauto: Vamos se aproximando, senhoras e senhores, que a trupe "A torto e a direito", do Programa Polos de Cidadania, junto com o Teatro Universitário da UFMG, preparou um espetáculo exclusivamente para vocês! Vocês que querem se divertir e, ao mesmo tempo, refletir, prestem atenção a esse emocionante, lacrimejante e estonteante esquete teatral. Vale ressaltar o quanto a arte é necessária ao homem e não adianta censurar ou cortar verba, porque teatro verdadeiro é aquele feito de sonho e de garra, que ensina divertindo e diverte educando! Alegra os justos e aos injustos vai incomodando. Com vocês: Corpos Descartáveis!

    Em7 A7 B7 Em7

    Sob o sol quente do dia
    No roçado ou na caldeira
    Pro povo da nossa terra
    É sempre segunda-feira

    Uma empresa de renome
    Conhecida e respeitada
    Fazia do dia a dia
    Desse povo uma empreitada

    Refrão

    É garimpeiro, motorista, engenheiro
    Todo mundo contratado
    Trabalhando com minério

    Mas a empresa esqueceu de avisar
    Que dinheiro na verdade
    É o que era levado a sério

    Eustáquio:

    Trabalhava a qualquer hora
    Sem saber como voltar
    Duas horas da manhã
    Me faziam acordar

    Sem saber sequer meu nome
    O chefão mandou chamar
    Dirigir sei lá pra onde
    Só me resta trabalhar

    Refrão

    É garimpeiro, motorista, engenheiro
    Todo mundo contratado
    Trabalhando com minério

    Mas a empresa esqueceu de avisar
    Que dinheiro na verdade
    É o que era levado a sério

    Alberto:

    A camisa da empresa
    Eu vesti sem questionar
    Emprego de engenheiro
    Tenho que valorizar

    Bate ponto, faz visita
    Vivo no computador
    Toda hora é reunião
    Nunca desliga o motor

    Refrão

    É garimpeiro, motorista, engenheiro
    Todo mundo contratado
    Trabalhando com minério

    Mas a empresa esqueceu de avisar
    Que dinheiro na verdade
    É o que era levado a sério

    Conceição:

    “Isso é coisa do trem ruim”
    Foi meu tio que me disse
    As plantas quase morrendo
    Olha só que esquisitice

    O meu rio Paraopeba
    Já não dá mais alimento
    Essa empresa só enriquece
    E a gente sem sustento

    Arauto

    Essa gente na labuta
    Seguia seu dia a dia
    Trabalhando a mil por hora
    Mas mantendo a alegria

    Porque além de trabalho,
    Tinha família e escola,
    Tinha casa, tinha sonho
    Correndo cidade afora

    Tinha também uma barragem
    Construída na cidade
    A partir dela, sustento
    Pra essa gente sem maldade

    E foi justo essa barragem
    Por descaso da empresa
    Que provocou triste fim
    Chegado em tom de surpresa

    Surpresa nem sempre é boa
    E essa nos fez chorar
    Sem preparar as pessoas
    Pro alarme que ia tocar

    Não deu tempo de ir embora
    De largar sua cidade
    Que virou leito de lama
    Grande palco da maldade

    Foi-se embora muita gente
    Ficaram só na memória
    E a empresa imoral
    Marcou com lama a história

    Adeus povo bom, adeus
    Adeus aos que foram embora
    Adeus povo bom, adeus
    Adeus aos que foram embora!

    (Arauto, junto com a Morte, entra marcando com um tambor numa espécie de cortejo fúnebre, enquanto os atores defuntos respondem em coro)

    Primeira Incelênça (cantado):

    G C D

    Uma incelênça
    Pra quem está na lama
    Despertem, não se esqueçam
    Que os mortos reclamam

    (Eustáquio – falado)
    Despertem, nunca esqueçam
    Que os mortos também reclamam

    Duas incelenças
    Pra não ter confusão
    Esse mar é rejeito
    De contaminação (bis – Conceição)

    Três incelênças
    Dizendo que a hora é hora
    É a sina de Minas
    Destroem e vão embora

    (Alberto – falado)
    É a sina de Minas
    Destroem, faturam e vão embora

    Arauto (em tom de contador de história):

    Num espaço encantado
    Onde as palavras têm rimas
    Onde as coisas mais terríveis
    Se transformam em coisas lindas
    Acontecem mil histórias
    Que nos tocam, são bem vindas

    Bem vindas para esclarecer
    Os labirintos da história
    Dos crimes que muitas vezes
    São contados como glória
    Principalmente pra gente
    De alma boa e simplória

    Um poeta se rebelou
    E abandonou a cidade
    Pelos estragos que uma firma
    Causou na comunidade
    Destruindo um morro inteiro
    Por ganância e crueldade

    E deixou esse cordel
    Contando revolta e sina
    Dos sonhos que destruíram
    Atacando na surdina
    E o poeta, junto ao povo
    Protesta com duras rimas

    Morte:

    Eu sou Valéria Ganância
    Permitam me apresentar!
    Já que ele falou meu nome
    É hora de eu me expressar
    Essa história mal contada
    Tenho que recontar

    Uma empresa chamada Cale
    Que trouxe emprego e progresso
    Arriscou muito dinheiro
    Construindo seu sucesso
    Sofreu acidente grave
    Destruindo seu processo

    Processo que sempre trouxe
    Ao povo benfeitorias

    Mudando toda a cidade
    Ampliando a economia
    A cultura e a educação
    Numa total melhoria

    Porque na verdade a Cale
    É uma joia brasileira
    E não pode ser culpada
    Por uma simples besteira
    Que faz esse povo ingrato
    Esquecer a história inteira

    Conceição: (levanta-se) Epa! Agora foi demais! Era só o que faltava, aparecer essa figura, manequim de cemitério, pra defender um crime! E mesmo depois de mortos somos chamados de ingratos. Imaginem quem tá vivo, o que não tem que aguentar... Fico pensando nas comunidades ribeirinhas, que, como meu tio, a vida inteira dependeram da água pra plantar, pra comer, pra viver. Eles acham que o dinheiro compra tudo!

    Eustáquio: (levanta-se) E compra mesmo! Epa digo eu! Pois, na verdade, Conceição, até pra ser defunto carece de ter sorte. Eu já soube que um morto como eu, terceirizado, vale bem menos do que um defunto contratado pela Cale. Minha família vai se lascar!

    Alberto: (levanta-se) Eustáquio, inveja depois de morto não vale nada. De que adianta se o dinheiro que eu vou receber como funcionário da Cale não poderei desfrutar?

    Eustáquio: Mas já desfrutou. E muito! Além da estabilidade de emprego, que eu nem cheguei perto, Alberto. E depois, tudo que acontece de errado, a culpa é do terceirizado!

    Alberto: Ah, mas tem coisas que dinheiro não paga. Ou você acha que a nossa vida tem preço?

    Eustáquio: É claro que para a Cale a nossa vida vale muito pouco! Agora, quanto ao dinheiro, Alberto, sua família vai estar muito mais bem assistida, é ou não é? Só o seu plano de saúde é maior que meu salário!

    Conceição: Eustáquio Brumadinho e Alberto Brumadinho! Vocês parem com essa discussão que a Cale adora jogar uns contra os outros e ficar assistindo. Quanto mais intriga houver, menos articulação vai ter.

    Eustáquio: É isso mesmo, Conceição! Nós não podemos mais cair nessa armadilha. Principalmente depois de morto. Se a gente nunca brigou em vida nem por causa de dinheiro, porque vai brigar agora na morte?

    C#m F#m Gm

    Olha só, veja só
    Não precisa de mais conflito
    Só vai deixar mais aflito

    Olha só, vamos ver
    Se a gente trabalhar juntos
    É mais fácil resolver

    É... tanta coisa
    Que eu perdi minha razão
    Não adianta brigar
    Pra encontrar solução (bis)

    (todos concordam)

    Alberto: É isso mesmo! Para a Cale, é fácil resolver tudo com dinheiro. Mas a dor que a minha família está sentindo não tem preço. Eles nunca vão nos esquecer! Os mortos costumam ficar mais vivos na memória dos que ficam.

    Conceição: Acredita que eu não tinha pensado nisso, Alberto? Às vezes, os vivos estão mais mortos do que nós. E todo lugar que tinha cheiro de lembrança agora tem cor de saudade, de lama, de perda. Eu fico pensando na agonia de minha família quando chegou a notícia do rompimento. Já são 8 dias de espera e ninguém encontra nossos corpos.

    Eustáquio: E minha mãe, então? Ser filho único é dor dobrada. Parece que eu estou vendo ela ajoelhada nos pés de Nossa Senhora Aparecida, rezando dia e noite.

    (Arauto entra)

    Arauto:

    Entre os crimes mais terríveis
    Mais cortantes e medonhos
    O pior deles, acredite
    É poder matar os sonhos

    Porém os sonhos resistem
    Com a força da esperança
    Em cada flor que renasce
    Em cada nova criança

    (Arauto canta junto aos mortos e a plateia: Amo-te muito - Nara Leão)

    Amo-te muito
    Como as flores amam
    O frio orvalho que, infinito, chora
    Amo-te como o sabiá da praia
    Ama a sanguínea
    E deslumbrante aurora
    Ó não te esqueças
    Que eu te amo assim
    Ó não te esqueças
    Nunca mais de mim

    Eustáquio: É... E o pior: a Cale calou-se diante da nossa dor. Trata todo esse sofrimento como se fosse um dado estatístico, um acidente de percurso... Até as noites mudaram. Papo de boteco agora sempre termina em papo de morte. Ninguém faz mais seresta, ninguém conta mais piada... no meio da conversa sobre futebol, entra o rompimento da barragem.

    Alberto: Todos só querem falar da dor da perda e dessa melancolia que tomou conta de tudo, mas apesar disso, a cidade resiste!

    Conceição: Verdade, Alberto! E eu tenho certeza que nosso povo está lutando e vai continuar nessa batalha até que toda a cidade se regenere. Eu sempre acredito numa nova primavera.

    Eustáquio: Eu sou otimista até depois de morto.

    Conceição/Alberto (rindo): Otimista? Você?

    Alberto: Tudo que você fez desde que a gente chegou aqui foi reclamar!

    Eustáquio: Que isso, também não é assim não! Tô falando sério! Eu acho que eles estão muito perto de nos encontrar.

    Alberto: Olha, otimista eu também sou, mas em tempos de meias verdades, é bom lembrar que esse país tem memória curta.

    Eustáquio: Já estão quase esquecendo da catástrofe de Mariana que não faz nem cinco anos! Porque aqui nesse país um escândalo cobre o outro, uma dor sufoca a outra, essa é que é a verdade!

    Morte: (voltando, junto ao Arauto, que acompanha os versos, marcando com o bumbo) Falou em verdade, é comigo mesmo! Olha aqui, se dependesse de mim, já tinha encontrado vocês todos e eu já estaria longe daqui.

    Em A9

    Eu sou a rainha do nada
    Dama do absoluto
    Seja dono ou empregado
    Seja dia ou no escuro
    Quando beijo meus amados
    Claro que eu faço carícias de luto

    Defuntos:

    Em A9

    Não queremos carícias
    Nem seus beijos de morte
    Você se exaltando
    Por ceifar nossa sorte
    Todo esse sofrimento
    Pra você não passa de esporte

    Morte: O quê? Se vocês pensam que eu gosto desse tipo de morte, estão muito enganados. Não tem grife, nem exclusividade.

    Eustáquio: Grife? Um horror desses e você pensando em exclusividade? Você não faz ideia do tamanho da dor que essas mortes causaram!

    Alberto: Não sabe! Não tem ideia da dor que eu tive por não poder entregar o primeiro presente para o meu filho que ia nascer.

    Morte: Eu não tenho nada a ver com nascimento! Isso é uma falta de respeito com meu ofício eterno!

    D#m7 A#7 | A#7 G#m D#m7

    Eu detesto batizados
    Gosto de velórios grandes
    Crematórios com direito
    A buffet e espumantes

    E também com vinhos raros
    Coroas com orquídeas grandes
    Ou as mortes nordestinas
    Com canções emocionantes

    Carpideiras com inselências
    Lágrimas cristalizantes

    Conceição: Você gosta e acha bonito porque não sabe de nada! O meu tio foi achado e foi velado num caixão trocado. A mulher dele já tinha derramado um riacho de lágrimas quando chegou a funerária e falou: "Ó, eu sinto muito, mas o seu defunto é outro, viu?". Já pensou? Chorar pelo defunto errado?!

    Eustáquio: Misericórdia! Se fosse comigo eu gritava com todo tudo mundo até abrirem o caixão pra eu ter certeza de quem tava lá!

    Conceição: E ela gritou! A Cale não deixou: "caixão aqui é lacrado!" Ela fez um escândalo de dor. Adiantou? Como os velórios só podiam durar de 5 a 15 minutos, a Cale mandou vir um enfermeiro e aplicou um sossega-leão nela.

    Morte: Estratégia, meu bem. Estratégia! Todo velório se presta à comoção e pobre adora um escândalo! Já imaginaram aquele povo todo revoltado contra a Cale e berrando em todos os caixões? Ia ser uma loucura! Nenhuma empresa suporta tanta propaganda negativa, mesmo sendo uma joia para a economia. Mas vamos mudar de assunto...

    Alberto: Mudar nada, eu tô reconhecendo essa sua voz venenosa...

    Conceição: Eu também!

    Eustáquio: Eu mais ainda!

    Alberto: Eu lembro de ter lhe visto num escritório da Cale recebendo um malote. Era o preço pago por nós, não era? Não é a toa que você se chama Valéria Ganância.

    Morte: É que pra mim só há um poder que pode enfrentar a morte. Só há uma força para a qual eu me rendo. Nada é mais forte pra mim do que o dinheiro.

    G C D G

    Dinheiro não perde guerra
    Para tudo é solução
    Manda em tudo nessa terra
    Paga até minha missão

    E pra quem aí disser
    Que eu não tenho razão
    Procure se informar
    Mude sua opinião

    Dinheiro não perde guerra
    Para tudo é solução
    Manda em tudo nessa terra
    Paga até minha missão

    Pode até calar o povo
    E mudar opinião
    Dinheiro é coisa boa
    (Apenas a morte) Aquece meu coração

    Morte: Tenha dinheiro e tudo o mais lhe virá como acréscimo!

    Eustáquio: Eu fico pensando na hora em que começarem esses pagamentos.

    Morte: Vocês ainda irão ver o jogo virar. E essa mala vai provar (abre a mala com dinheiro). Às vezes, o dinheiro faz até a lágrima secar.

    Alberto: E a ganância faz ela desaparecer. Eu aposto que essa é a famosa mala dos 700 mil.

    Morte: E se for? Não é da sua conta!

    Conceição: Mas é da minha! Garanto que minha família nunca vai esquecer da dor dessa tragédia. Gente como eu nasceu e criou-se na terra, o adubo do coração é outro. Suborno é erva daninha, é carrapixo que garra na alma!

    Morte: Fofa, você esquece que meu ofício merece ser bem remunerado, porque sou a única que pode exercê-lo. E toda exclusividade tem seu preço. (em tom de provocação) Eu só não entendo por que vocês facilitaram tanto o meu serviço...

    Eustáquio: Ah, mas é agora que eu mato essa Morte! A culpa é nossa? A responsável por isso tudo é a Cale! Inclusive, pelo restaurante para os funcionários, que estava cheio de gente almoçando na hora que a lama chegou.

    Conceição: E quer saber mais? Muita coisa já estava aqui antes da Cale chegar. Por isso, os velhos moradores, como meu tio, ficaram arrasados, indignados, e com toda razão! A lama enterrou nossa história.

    Todos (exceto Conceição): É o preço pago pela minerodependência.

    Conceição: Minero o quê?

    Eustáquio: Mi-ne-ro-de-pen-dên-ci-a! As mineradoras chegam com seu poder financeiro e dominam a comunidade. Tem gente que é até contra a gente ser contra.

    Alberto: Emprego pra uns...

    Conceição: Indenização pra outros...

    Alberto: Lazer para todos! Basta ver os bailes, as festas... Chamaram até Simone & Simária para cantar aqui... Até um boulevard eles fizeram em Barra Longa, querendo provar o “desejo de restauração da natureza”.

    Morte:

    DAEAD

    Todo mundo saiu ganhando
    tudo novo e brilhante
    onde tem festa pro povo
    tem sorriso estonteante

    A natureza restaurada
    agora tá tudo bem
    a cidade tá alegre
    reunida em paz e bem

    Alberto: O famoso pão e circo né! Ah, por favor!

    Eustáquio: Mais essa pra gente engolir, eu hein!

    Arauto:

    Mas essa restauração
    Não deu grande resultado
    O boulevard na verdade
    Era todo maquiado
    A intenção verdadeira
    Era cobrir o estrago

    Pintaram a grama seca
    Com o verde mais destacado
    E de branco os coqueiros
    Em que a lama tinha grudado
    E o povo olhando de longe
    Até que achou ajeitado

    Mas não contavam com os cães
    Rolando em grama pintada
    Ficando assim todos verdes
    A farsa desmascarada
    Provando que a cidade
    Em nada foi restaurada

    Eustáquio: Enquanto isso, a terra vai sendo corroída e arrasada. E o minério extraído vai sendo beneficiado e reaproveitado para enriquecer o bolso deles. Isso sem falar que as águas de minas estão todas comprometidas com a mineração.

    Conceição: Pelo que eu tô vendo, os nossos lençóis d'água tão servindo é para cobrir as falcatruas da Cale.

    Alberto: Eu não acredito que eles ainda conseguem lucrar com essa tragédia em forma de lama.

    Eustáquio: Pois lucram! Eles estão garimpando e faturando com o minério que retiram do rejeito! E pra gente, o que é que sobra?

    Morte: Sobra o bem-estar e o progresso, seus ingratos! O que era essa cidade antes da Cale chegar? Uma cidadezinha qualquer do interior de Minas...

    Conceição: Nada disso! Era um povo sossegado, vivendo na sua terra, do que plantavam, do que colhiam. Todo mundo em paz.

    Arauto: Me lembrei do poeta, que disse: “cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”. Agora, essa cidade é só uma fotografia na parede.

    Todos os defuntos: Mas como dói...

    Morte: Pera aí... eu acho que eu tô ficando doida. O que que eu tô fazendo aqui? Conversando com defuntos, casos já resolvidos... Isso só pode ser teatro!

    Em A9 B7

    Ô povinho enxerido
    Esquisito e danado
    Está sempre do contra
    Nunca fica calado
    E cutuca a história inteira até encontrar
    O que é falso e errado!

    Mortos:

    Só você não enxerga
    Que o jogo virou
    Você não acredita
    A história acabou
    Tira essa máscara que por tanto tempo
    Lhe cegou

    Morte: Cheeeeega! Tá bom, eu já entendi! (pausa. Atriz percebe que está fazendo teatro)

    Tuuuuuum! (os mortos congelam)

    Arauto:

    Acontece, meu grande povo
    Que isso tudo é teatro
    A gente faz fantasia
    Pra olhar melhor o fato

    Essa morte que vos fala
    Desde o início tão cruel
    Sem limites, nem rigor
    É atriz no seu papel

    Mas ninguém quer terminar
    A peça com tanta dor
    Então minha querida morte
    Se despeça, por favor

    Morte: (tirando o chapéu)

    Um espetáculo pra ser justo
    Também pode utilizar
    Uma personagem cruel
    Servindo pra reforçar

    Que a verdade disso tudo
    É que nada foi acidente
    Porque tem nome o culpado
    E também tem precedente

    Mas a morte já fez sua parte
    Veio pra representar
    Os verdadeiros criminosos
    Que ainda tentam se ausentar

    Me despeço da personagem
    E me mostro como artista
    Eu, através do teatro
    Espero que você reflita

    Peço perdão a todos
    E agradeço pela acolhida
    Não vamos deixar
    Mais essa história esquecida

    Arauto:

    História que muitas vezes
    O próprio povo não vê
    O próprio povo não crê
    Que ele poderia mudar
    Mesmo que os poetas
    Agindo como profetas
    Em versos venham alertar

    Poetas são visionários
    Sabem dominar o tempo
    E sempre previnem os homens
    Mudando seu pensamento
    Como o cordel que assistimos
    Para vencer o tormento

    E quando os poetas falam
    Incomodam muita gente
    Vereador, deputado
    Homem de toda patente
    Por isso são detestados
    Pois a poesia não mente

    (defuntos, com os instrumentos, se reúnem em fila, junto com Morte e Arauto)

    Todos:

    Uma incelença
    Cantamos em respeito
    A todos que se foram
    E perderam seus direitos

    Duas incelenças
    Do fundo do peito
    Nós pedimos paz
    pelo mal que já foi feito

    Três incelenças
    Cantamos com amor
    Adeus irmãos, adeus,
    estamos a seu favor

    (bumbo)

    Alberto: No dia 2 de fevereiro, foi encontrado, próximo ao restaurante, o corpo do engenheiro Alberto Brumadinho.

    Conceição: Conceição Brumadinho foi encontrada próximo ao corpo de Alberto.

    Eustáquio: Os bombeiros encontraram também junto a eles o corpo de Eustáquio Brumadinho.

    Arauto: Um fato, porém, surpreendeu a todos.

    Defuntos: Os três corpos estavam de mãos dadas.

    Arauto:

    E assim os sonhos resistem
    Com a força da esperança
    Em cada flor que renasce
    Em cada nova criança

    Morte:

    Em cada povo guerreiro
    Que não se deixa abater
    Lutando por seus direitos
    E mostrando seu poder

    Ciranda final:

    C D G

    Eu só espero que não se repita
    Outra tragédia igual
    Não dá pra suportar

    Eles vão ver que a força de um povo
    Quando junta e vibra
    Ninguém vai parar

    E Brumadinho não se entrega nunca
    Não vai ter empresa
    Que possa barrar

    Aguardaremos nova primavera
    Uma nova era
    Pra nos libertar!