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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo abr./jun. 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200015 

    ARTIGOS
    ENSAIOS

     

    As várias faces das ameaças às áreas de conservação no Brasil

     

     

    Ricardo Bomfim MachadoI; Manuela Carneiro da CunhaII; Ludmilla Moura de Souza AguiarIII; Mercedes BustamanteIV

    IDoutor em ecologia pela Universidade de Brasília e professor do Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília. Atua nos programas de pós-graduação em ecologia e zoologia, ambos da UnB
    IIDoutora em ciências sociais pela Universidade de Campinas e atualmente é professora titular da Universidade de Chicago, Estados Unidos
    IIIDoutora em ecologia pela Universidade de Brasília e professora do Departamento de Zoologia da Universidade de Brasília. Atua nos programas de pós-graduação em ecologia e zoologia, ambos da UnB
    IVDoutora em geobotânica pela Universidade Trier, Alemanha e professora titular do Departamento de Ecologia da UnB. Atua nos programas de pós-graduação em ecologia e ciências ambientais, ambos da UnB

     

     

    Tentativas de reduzir a proteção ambiental não têm faltado no Brasil, mas elas se intensificaram muito nos anos recentes. Vários de nossos parques e reservas, conhecidos como unidades de conservação (UC), o maior patrimônio natural do país, encontram-se sob fogo cruzado (veja o infográfico) tanto de parlamentares de diferentes correntes partidárias como do próprio poder executivo. O Brasil tem um grande conjunto de parques e reservas mas, ainda assim, recentes projetos de lei nos diferentes níveis de gestão do país ameaçam tirar do sistema de unidades de conservação de proteção à natureza nada menos que 2,0 milhões de hectares ou o equivalente a 13,6 vezes o tamanho da cidade de São Paulo.

    Invariavelmente, as razões para tais alterações baseiam-se na visão equivocada que a conservação da biodiversidade e a manutenção de seus serviços ecossistêmicos impedem o desenvolvimento do país. Foi assim, por exemplo, com o antigo Parque Nacional (PN) do Tocantins, criado em 1961 com 620 mil hectares, mas que sofreu modificações em diversos momentos políticos, sendo reduzido a 60 mil hectares e cujo nome foi alterado para PN Chapada dos Veadeiros. Tal redução do PN Chapada dos Veadeiros perdurou até 2017, quando o parque foi ampliado para os seus atuais cerca de 240 mil hectares. No entanto, ele continua sendo duramente atacado pelos setores mais retrógrados do país, mesmo constituindo uma das mais importantes áreas de proteção do já tão ameaçado bioma Cerrado. Em 2011, tentativas de redução avançaram sobre o PN da Serra da Canastra (Emenda da Serra da Canastra). O governo e a Câmara Federal planejavam reduzir a área do parque de 200 mil para 120 mil hectares para liberar a exploração mineral, com a exclusão de áreas que seriam destinadas à extração de diamante e quartzito. Apesar do interesse de mineradoras, a forte reação popular contrária frustrou a iniciativa e a emenda foi retirada da Medida Provisória (MP) 542.

    Nossos parques e reservas têm uma legislação própria, a Lei 9985, promulgada em 2000, e que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC). Mesmo assim, parece que todo e qualquer instrumento legal é visto por representantes do executivo e do legislativo como oportunidade para a desproteção ambiental. Em 2016, o Congresso recebeu a MP 758 com a proposta de retirada de 862 hectares do PN do Jamanxim, mas com o acréscimo de outros 51 mil hectares. Os congressistas alteraram a proposta original para excluir do parque uma área de 344 mil hectares, que seria transformada em Área de Proteção Ambiental (APA), categoria com menor nível de proteção quando comparada aos parques nacionais. Além disso, propuseram a retirada de 169 mil hectares da Floresta Nacional (FN) de Jamanxim para comporem uma nova unidade denominada APA do Trairão. Todas essas alterações não foram levadas adiante, pois foram barradas por veto presidencial (Mensagem 199/2017). O veto presidencial foi o mesmo destino da MP 756/2016, que foi alterada no Congresso para tentar excluir cerca de 486 mil hectares da FN de Jamanxim e 186 mil hectares da Reserva Biológica (RB) Nascentes da Serra do Cachimbo. Em resumo, nos últimos anos, somente no estado do Pará houve a tentativa de desproteção de aproximadamente 1,1 milhão de hectares de unidades de conservação já delimitadas.

     


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    Em 2018, deputados e senadores tentaram aproveitar a MP 852, que tratava da transferência de imóveis da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA) para a União, para inserir artigos que alteravam os limites de três unidades de conservação: o PN de Brasília, o PN de São Joaquim e a FN de Brasília. A sorrateira investida foi imediatamente rechaçada pela sociedade tão logo foi denunciada pela imprensa. O PN de Brasília, protetor de mananciais que abastecem 1/3 dos habitantes da capital federal, continua a salvo dos especuladores imobiliários, mas as outras unidades não. Não satisfeitos com a frustração dos malfadados "jabutis" da MP, termo que denomina artigos desvinculados do tema central de uma proposta de legislação, alguns senadores propuseram projetos de lei para alterar o PN de São Joaquim e a FN de Brasília.

    O Projeto de Lei do Senado nº. 208/2018 propõe a alteração do traçado do PN de São Joaquim, além de indicar a mudança do seu nome para Parque Nacional da Serra Catarinense. Pelo PL, o parque que foi criado em 1961 passaria de pouco mais de 49 mil hectares para cerca de 39 mil hectares (cerca 79% da área original). Como justificativa, menciona-se que parte do parque compromete a atividade turística na região, além de haver também uma sobreposição da unidade com um ecomuseu municipal criado em 2013, ou seja, 52 anos após a criação do parque. Essa alegação de que o parque compromete a atividade turística é absolutamente infundada: o número anual de visitantes no Morro da Igreja, principal atividade turística da PN de São Joaquim, passou de 100 mil entre os anos de 2012 a 2017, de acordo com dados do painel dinâmico do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). No ano de 2018, foi batido o recorde de visitação por turistas nos parques brasileiros: 12,4 milhões de pessoas estiveram em nossas unidades de conservação.

    Por sua vez, a FN de Brasília poderá ser alterada pelo projeto de Lei do Senado nº. 407/2018, que propõe a desafetação de parte de sua área. A FN de Brasília, criada em 1999 com pouco mais de 9 mil hectares, passaria a ter aproximadamente 5 mil hectares (43,5% de redução). A justificativa apresentada foi a resolução de um suposto problema fundiário de ocupações preexistentes à sua criação, embora os terrenos que foram doados pela Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap, empresa pública do Distrito Federal) para o governo federal se encontravam à época "desembaraçados de ônus e encargos de qualquer natureza", como consta no decreto de criação da unidade.

    Um dos casos mais preocupantes é o do PN da Serra da Bodoquena, no Mato Grosso do Sul, que teoricamente poderá perder aproximadamente 80% dos seus cerca de 76 mil hectares. Parte desse parque encontra-se no município de Bonito, apontado unanimemente como um dos melhores destinos de ecoturismo do mundo. Uma liminar concedida por um juiz da 4ª vara federal em Campo Grande tentou sustentar que, uma vez que a situação fundiária da unidade não foi resolvida dentro de um prazo de cinco anos decorrentes de sua criação, o decreto original perderia a validade. A regularização fundiária de uma área transformada em unidade de conservação requer, de fato, que os reais proprietários da terra sejam devidamente indenizados. Só que a legislação que trata do assunto, a Lei 3.365 de 1941, indica que o prazo de cinco anos refere-se ao decreto de desapropriação por interesse público que eventualmente for criado. É de conhecimento de todos que lidam nessa área que um decreto de criação de uma unidade de conservação só pode ser anulado por meio de uma lei específica. Por ora, a liminar está sem efeito pois foi cassada pelo Tribunal Regional da 3ª Região. Mas o tipo de instrumento usado na tentativa de redução do PN Serra da Bodoquena deixa claro que os setores contrários aos nossos parques e reservas frequentemente apoiam-se em justificativas desprovidas de fundamentos e não se sabe quais serão os próximos embates dessa batalha.

    Situação preocupante também é a do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, que protege um conjunto surpreendente de paisagens dominadas por dunas, rios, lagos e a costa marinha do Maranhão. É uma região internacionalmente reconhecida por sua beleza e apelo ecoturístico. Encontra-se em tramitação no Senado o Projeto de Lei nº. 465/2018 de autoria do senador Roberto Rocha (PSDB/MA) que propõe "transladar" o parque: porções terrestres da parte sul seriam desafetadas e uma faixa marinha aumentada na porção norte da unidade! Apregoa-se que a área do parque seria assim acrescida, passando de 156.608 hectares para 161.409 hectares. Mas o que realmente aconteceria seria a diminuição da proteção efetiva dos lençóis maranhenses e a expulsão de população tradicional do parque em benefício de prováveis empreendimentos hoteleiros.

    Mesmo unidades que existem há décadas enfrentam lá suas ameaças. É o caso do PN do Iguaçu, criado em 1939 com 169 mil hectares, um dos mais importantes parques da Mata Atlântica e o segundo parque mais visitado em todo o Brasil, mas que possui um fantasma que o ronda desde 1954. Naquela época foi aberta a chamada Estrada do Colono, uma via que corta 17,5 km do parque e tinha o objetivo de criar um atalho entre duas cidades do entorno. Por decisão judicial, a estrada foi fechada em 2001 e desde então a recuperação da área impactada vem seguindo o seu caminho natural. Em 2013, foi proposto o PL 61 na Câmara dos Deputados com dois objetivos: alterar a Lei do SNUC para incluir uma nova categoria de unidade de conservação (a "estrada-parque") e transformar o trecho da Estrada do Colono em uma nova unidade incrustada no PN do Iguaçu. A categoria em si já é altamente questionável, pois imaginem uma unidade de conservação onde as chances de atropelamento da fauna são maximizadas. O PL não indica qual seria a faixa lateral a ser considerada, mas caso seja de 500 metros, o PN do Iguaçu poderia ser diminuído em até 875 hectares. Em 2019, o PL recebeu um parecer favorável da Comissão de Serviços de Infraestrutura do Senado e segue em tramitação. 

    As propostas de alterações nas unidades de conservação não envolvem somente mudanças em seus limites, mas também na sua categorização perante o SNUC. O PL 3068/2015, que tramitou na Câmara dos Deputados e felizmente foi arquivado, propunha a transformação da Reserva Extrativista de Canavieiras na Bahia, criada em 2006 com quase 101 mil hectares, em uma APA. Como consta no decreto de criação da unidade, a área tem como objetivo "proteger os meios de vida e a cultura da população extrativista residente", o que seria perdido com uma eventual transformação da área em APA. Outra unidade sob ameaça de alteração é o Parque Nacional da Serra do Divisor, conforme proposição incluída no PL 6024/2019 de autoria da deputada Mara Rocha (PSDB/AC). O parque, que possui uma área de aproximadamente 838 mil hectares, poderá ser transformado em uma APA retirando os obstáculos para uma rodovia que conectaria o estado do Acre ao Peru e ao Pacífico. No mesmo projeto de lei, a deputada federal autora do texto indica a retirada de cerca de 22 mil hectares da Reserva Extrativista Chico Mendes para excluir as propriedades rurais existentes na área.

    Outra área ameaçada é a Estação Ecológica (EE) de Tamoios, uma unidade de pouco mais de 9 mil hectares situada na baía da Ilha Grande, estado do Rio de Janeiro. O PL 6479/2019, proposto pelo senador Flávio Bolsonaro, propõe a criação de uma área especial de interesse turístico na região de Angra dos Reis, estado do Rio de Janeiro. No Artigo 5º do PL consta a revogação do Decreto 98.864 de 23 de janeiro de 1990, que é o instrumento que criou a EE de Tamoios. O nome da unidade, que representa apenas 4% da área abrangida, foi propositalmente omitido no projeto de lei, talvez para não causar muito alarde. Somente para reavivar a memória, foi nessa unidade que o então deputado Jair Bolsonaro foi multado por pescar dentro de uma unidade de conservação federal sem a devida autorização.

    As propostas para a Reserva Extrativista Chico Mendes, para o Parque Nacional da Serra do Divisor e para a Estação Ecológica de Tamoios podem ser consideradas ilegais, pois os projetos de lei propostos desrespeitam o Parágrafo 7º do Artigo 22 da Lei do SNUC. A Lei determina que qualquer "desafetação ou redução dos limites de uma unidade de conservação só pode ser feita mediante lei específica". Em ambos os casos, as alterações nas unidades não são o objeto principal dos projetos de lei propostos. O PL 6024/2019 envolve mudanças em duas unidades de conservação e o PL 6479/2019 objetiva criar uma zona de turismo e, sorrateiramente, indica a extinção de uma unidade de conservação.

    Todos os exemplos mencionados ilustram as várias ameaças às unidades de conservação no Brasil impetradas por parte de agentes públicos e alguns setores privados. As unidades de conservação ainda são vistas como entraves ao desenvolvimento e o próprio presidente da República tem feito manifestações nesse sentido. O ministro do Meio Ambiente já declarou, mas sem esclarecer os procedimentos, que faria uma ampla revisão das áreas protegidas para recategorizar, alterar traçados e até extinguir unidades que tenham sido criadas sem critério técnico (veja o texto "O sistema de conservação brasileiro é um tesouro verde-amarelo", da Coalizão Ciência e Sociedade). O curioso é notar que, até o momento, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) não fez nenhuma ação em prol da consolidação das unidades existentes, nem propôs formas de fortalecer a gestão e o monitoramento das áreas existentes e dos órgãos responsáveis pela gestão das áreas, ou tampouco indicou se os compromissos assumidos pelo país perante a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) serão cumpridos. O mesmo MMA não indicou até agora nenhuma intenção de criação de novas unidades de conservação, mesmo sabendo que biomas como o Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa continuam com déficit de proteção em relação às Metas de Aichi da CDB.

    Embora seja uma rede de proteção de qualidade, sabe-se que o sistema de unidades de conservação existente no Brasil ainda não é suficiente para a proteção da elevada biodiversidade brasileira. Um estudo publicado em 2017 na conceituada revista Scientific Reports indicou que quase 55% das espécies brasileiras e 40% das linhagens evolutivas estão fora da proteção do conjunto de unidades de conservação existentes. Como visto, caminhamos na direção contrária daquela desejada e acordada tanto por meio de políticas públicas oficialmente reconhecidas na história recente pelo governo brasileiro, como por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

    Há uma visão errônea de que é possível buscar o desenvolvimento sem a conservação das áreas naturais, das espécies e dos serviços ecossistêmicos que elas proveem. Pode-se até ter uma momentânea sensação de desenvolvimento com a redução das áreas protegidas que eventualmente demandam o redesenho de estradas, barragens, exploração mineral ou a agropecuária, mas em um prazo muito curto esse "desenvolvimento" mostra-se insustentável. Nossos parques e reservas naturais são garantia de bem-estar para a sociedade brasileira e imprescindíveis para todos que virão depois de nós. São também importantes instrumentos que ajudam a economia do país. Rifá-los agora, da forma como alguns - e apenas alguns - propõem, é abrir mão de um enorme patrimônio público que dificilmente será recuperado e sobre o qual se apoiam nossas opções de desenvolvimento com sustentabilidade.

     

     

    O artigo é subscrito também pela Coalizão Ciência e Sociedade, que reúne 72 cientistas de instituições de pesquisa de todas as regiões brasileiras.