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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo Apr./June 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200016 

    CULTURA
    FOTOGRAFIA

     

    Peter Scheier: a modernidade incomodada

     

     

    Mariana Garcia de Castro Alves

     

     


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    A organização e a apresentação de um arquivo constituem-se sempre como um corte de interpretação. O modo de apresentar o extenso acervo do fotógrafo Peter Scheier pelo Instituto Moreira Sales (IMS) em São Paulo, na exposição Arquivo Peter Scheier propicia outras leituras. Se diferentes compreensões se ampliam conforme as ambiguidades da obra, tal retrospectiva - que apresenta diferentes facetas do fotógrafo em 300 documentos - é uma janela para novos e instigantes questionamentos.

    Refugiado do nazismo, Peter Scheier (1908-1979) chega ao Brasil em 1937 com uma carta, que conseguira de um tio, para trabalhar em um frigorífico em São Paulo. Sua família judaica é da pequena Glogau, na Alemanha. No entanto, quando de sua vinda para o Brasil, eles já haviam trocado a pequena cidade por Hohenau, na Áustria, devido a crescentes restrições antissemitas. Ali ele trabalhava em uma indústria de açúcar de propriedade de parentes maternos. Com a iminente anexação da Áustria, que se dá em 1938, Scheier, graduado em comércio e fotógrafo amador, não viu melhor opção senão fugir.

    Em São Paulo, para complementar a renda do frigorífico Armour, empresa americana que tinha como política contratar empregados da Europa Central e Oriental, Scheier passa a vender cúpulas de abajur. Para não ter que carregar o incômodo mostruário de um lado a outro, resolve fazer um catálogo com as fotos. Não demoraria a ser solicitado para produzir fotos de outros produtos que viriam a ilustrar a industrialização brasileira em expansão.

    Já em 1939, torna-se tipógrafo em O Estado de S. Paulo, contribuindo com fotos para o suplemento de artes do jornal. De 1945 a 1951, como fotojornalista na revista O Cruzeiro, uma das mais lidas do país, consolida-se como profissional de referência. No início dos anos 1940 abre seu próprio estúdio, que funciona até 1975. De 1947 a 1955, é fotógrafo oficial do Museu de Arte de São Paulo (Masp), entrando em contato com artistas de vanguarda. Como fotógrafo de arquitetura, colabora com Gregori Warchavchik, Rino Levi, Carlos Bratke e Lina Bo Bardi. Scheier ainda retrata Brasília, em 1958 e 1960, e produz fotorreportagem em Israel, em 1959.

    Como um dos principais nomes da fotografia brasileira no século XX, Scheier ganha a retrospectiva que é fruto de dois anos de pesquisa no acervo de 35 mil negativos sob a guarda do IMS e em outras coleções como as do Instituto Peter Scheier, Casa de Vidro, Masp e FAU-USP. A exposição Arquivo Peter Scheier traz uma amplitude de registros que apontam contradições de difícil solução. Aberta em 25 de janeiro, a mostra foi fechada para visitação do público por tempo indeterminado por conta da pandemia do covid-19, mas é possível visitá-la no site do IMS (https://ims.com.br/exposicao/arquivo-peter-scheier-ims-paulista/).

     

    MODERNIDADE EM QUESTÃO

    De acordo com a curadora Heloisa Espada, sua modernidade, do ponto de vista formal, reside na sua síntese de várias linhagens do fotojornalismo e das vanguardas. "Ele lida tanto com o fotojornalismo mais sensacionalista, da revista francesa Paris Match e da americana Life, quanto com outro paradigma como o de Cartier-Bresson e da agência Magnum", diz ela, ao explicar que enquanto as fotos de O Cruzeiro são feitas com flashes carregados e poses, em câmeras de médio formato, Scheier destila uma "fotografia humanista", mais "natural", em fotos posteriores: "As fotos passam a captar momentos de naturalidade das pessoas, do lirismo do dia a dia", conta.

    Presente no pós Segunda Guerra e na produção da agência Magnum, a fotografia humanista representa uma volta ao homem depois das experiências das vanguardas modernas que exaltavam a tecnologia e a máquina, bem como da própria tragédia da guerra. Se, para a curadora, a modernidade de Scheier seria uma síntese afinada e particular dos diversos momentos da cultura visual do século XX, para a arquiteta Sonia Gouveia são as características estéticas próprias das vanguardas do início do século que definem a modernidade do fotógrafo: "Com seus ângulos acentuadamente inclinados, de baixo para cima, é possível notá-las tanto nos registros de arquitetura, como o Hotel Excelsior, de Rino Levi, quanto naqueles feitos para as reportagens da revista O Cruzeiro, ou até mesmo nas fotos de eventos sociais", destaca.

     

    O CRUZEIRO

    Os anos 1950 e 1960, com o quarto centenário de São Paulo (1954) e a inauguração de Brasília (1960) por ele retratados, traziam um ar de otimismo. Porém, como testemunho de grandes transformações, o trabalho de Scheier não comportaria apenas a visão idealizada de progresso, mas certo incômodo. "Como transita por lugares diversos, em O Cruzeiro ele mostra o lado sombrio, de miséria, tentando retratar outra face do Brasil", diz a curadora Heloisa Espada. Para ela, essa experiência no fotojornalismo mostrava que o desenvolvimento brasileiro não era linear nem desprovido de contradições: "O Brasil estava se modernizando, tinha uma arquitetura moderna importante, grandes artistas, tinha a Bienal... Mas as reportagens mostravam, por exemplo, uma deputada na Assembleia Legislativa de São de Paulo que apanhou de um colega, crianças com barriga d'água, fome no Nordeste, imagens do cotidiano que eram usadas para chocar, causar estranhamento", conta.

     

    ISRAEL/BRASÍLIA

    O estranhamento em Scheier também é destacado por Anat Falbel, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para Falbel, ao analisar seu ensaio realizado em Israel, as fotos de Scheier não escondem "um reconhecimento sutil do colapso". No artigo "O espaço do estranhamento: Peter Scheier no crisol das diásporas" (2016), Falbel mostra haver um contraste criado entre a paisagem construída sob o espírito da criação de um Estado Nacional, a pátria moderna de uma nova vida judaica - um estado de justiça social e igualdade de povos e raças, distinto da velha diáspora europeia na qual o judeu ocupava o espaço do outro, do estrangeiro perseguido - frente à paisagem original, construída ao longo dos séculos e, entretanto, preservada da modernidade ocidental, representada pelo deserto, pela arquitetura árabe secular e pelos antigos habitantes da região. "Ou seja, a lente do fotógrafo capta o possível embate cultural no seu sentido mais amplo", explica. Esse choque entre o oriental atávico e ocidental atual seria percebido pelo estrangeiro sem pátria e sem língua: "O estrangeiro é capaz de observar uma realidade a partir de uma perspectiva outra, que, no caso de Brasília, seria para além do ufanismo nacionalista tão marcante naquele momento", aponta a professora. Sua modernidade estaria no modo contraditório de expressão entre paisagem, arquitetura e homens.

    Em 1975, Scheier, mesmo com filhos e netos no Brasil, decide retornar à Europa, onde vive até 1979. O retorno, pouco documentado, teria causado surpresa à própria família, segundo depoimentos. Cheio de estranhamentos, esse arquivo se constitui, como bem define Anat Falbel, um "crisol" de onde podem sair diversas leituras.