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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.72 no.2 São Paulo Apr./June 2020
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000200018
CULTURA
POESIA
Beatriz Azevedo
Doutora em artes da cena e mestre em literatura pela Universidade de São Paulo (USP). Estudou no Mannes College of Music em Nova York e na Sala Beckett em Barcelona. Pesquisadora de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
POESIA NÃO DÁ CAMISA A NINGUÉM
a vida inteira ouvi isso:
“poesia não dá camisa a ninguém”.
melhor,
vivo nua.
OS CUPINS COMERAM TODA A POESIA
os cupins me trouxeram de volta ao
Brasil
eu nem pensava em voltar
atravessava o Central Park de bicicleta
com a alma encharcada de jazz
um telefonema anunciava a tragédia
bibliográfica:
os cupins comeram Clarice Lispector
abocanharam infernalmente Gregório de
Matos
eles devoraram todo Guimarães Rosa
eles mastigaram meu Oswald de
Andrade, que maldade!
cupins gostam de comer obras completas
cupins destroçam palavras em banquetes
traças traçam todo tipo de prosa
essa praga me jogou dentro de um avião
e aqui estou eu
náufraga
sobrou uma beirada de DH Lawrence
ficou a lombada de Herberto Helder
restou uma página de Wislawa Szymborska
cupins da espécie dos isópteros xenófobos
tem predileção alimentar por autores
brasileiros agora eu sei
voltei voando
abrindo caixotes de tempo
como um dom quixote tentando salvar
sua biblioteca de vento
no mesmo dia Hilda Hilst se foi para
Marduk
um eclipse sequestrava a lua
a Casa do Sol anoitecia
os cupins famintos comeram toda a poesia
PARA PREENCHER O OCO
Para preencher o oco
Devolva o que restou, pouco a pouco
- Tapar o buraco com ouro
Socorro socorro
Você não pode colar o abismo
Com sopro
- Uma tradução livre de Emily Dickinson
No dia de hoje
Amanhã,
Será outro.
ÁTIMO
estou por um fio
por uma farpa
sou um fiapo
sou uma lasca
estou por um traço
por um átimo
sou uma flama
e uma lâmina
uma fagulha
uma faísca
sou este passo
que se arrisca
vou nesse passo
passo a pássaro
OBRA-PRIMA
quando
a vida
rima
amor
é
obra-prima
ABRACADABRA
abracadabra
cada traço da palavra
me dê seu abraço
abracadabra
cada cabra abra seu lastro
seu berro seu béééé errante
abracadabra
cada pétala se abra
de cada chacra
do corpo da palavra
abracadabra
cada passo faça
voo rasante
no rastro da asa
abracadabra
todo astro ilumine
a minha casa
toda poesia em brasa
me aqueça no seu aço
abracadabra
toda porta fechada se abra
todo cansaço passe
nenhuma dor nos alcance
até a via láctea dance
na mágica lábia
da sábia palavra
abracadabra
MINHA MEMÓRIA É UM TERRITÓRIO MINADO
Cresci ouvindo vó Nazita falar do Gualaxo,
da fazenda onde passou a infância
nas redondezas da cidade de Mariana.
Brinquei muitos carnavais
subindo ladeiras de paralelepípedos
na Ouro Preto de meus avós e bisavós
na Vila Rica de minha mãe.
Quando mais tarde quis conhecer o
Gualaxo,
o famoso afluente do Rio Doce,
e me banhar na doçura das lembranças
da minha avó
o rio de repente virou lama.
Um tsunami de rejeitos da civilização
que mata, explora, vende o invendável.
As Minas Geraes totalmente usurpadas
do ciclo do ouro ao ciclo da lama
a terra esburacada, perfurada, estuprada
em toneladas de ganância e brutalidade.
Transborda a lama tóxica
Derrama a lama trágica.
Minas é um território minado.
Minha memória é um território minado
Vó? Não há mais.
Mãe? Não há mais.
Minas não há.
Só há lama.
Beatriz Azevedo é doutora em artes da cena e mestre em literatura pela Universidade de São Paulo (USP). Estudou no Mannes College of Music em Nova York e na Sala Beckett em Barcelona. Pesquisadora de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Escreveu Antropofagia palimpsesto selvagem (Cosac Naify); Abracadabra (Demônio Negro), Idade da pedra e Peripatético (Iluminuras). Está nas antologias de poesia contemporânea Garganta e Ato poético, no Lula livro e em Acabou chorare, com Arnaldo Antunes e Caetano Veloso. Gravou os discos A.G.O.R.A., antroPOPhagia ao vivo em Nova York, no Lincoln Center em Nova York, e Alegria, com participação de Tom Zé (todos pela Biscoito Fino / Discmedi Europa); Mapa-Mundi e bum bum do poeta (Natasha Records Brasil / Nippon Crown Japão). Tem parcerias musicais com Augusto de Campos, Cristóvão Bastos, Moreno Veloso, Vinicius Cantuária. Suas composições foram gravadas por Adriana Calcanhotto, Matheus Nachtergaele, Tom Zé, Zé Celso Martinez Correa, Zélia Duncan e outros.