SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.73 número1 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.73 no.1 São Paulo jan./mar. 2021

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602021000100003 

    ARTIGOS
    AGRICULTURA

     

    Apresentação: agricultura como alternativa para crises brasileiras

     

     

    Maria Leonor Lopes Assad

    Professora titular aposentada da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde atuou nos Programas de Pós-Graduação em Agricultura e Ambiente (PPGAA) e em Agroecologia e Desenvolvimento Rural (PPGADR); e editora assistente da Revista Brasileira de Ciência do Solo

     

     

    "É hora de lavar os olhos para ver a nossa realidade. É hora de passar o Brasil a limpo, para que o povão tenha vez. No dia em que todo brasileiro comer todo dia, quando toda criança tiver um primeiro grau completo, quando cada homem e mulher encontrar um emprego estável em que possa progredir, se edificará aqui a civilização mais bela desse mundo." [1]

    A matéria de capa do jornal Folha de S. Paulo de 31 de janeiro de 2021 estampou "Brasil começa 2021 com mais miseráveis que há uma década" [1]. Infelizmente, em janeiro de 2021, com o fim do auxílio emergencial, 27 milhões de brasileiros (quase 13% da população e maior porcentual desde dezembro de 2014) passaram a viver com menos de R$ 246 por mês (R$ 8,20 ao dia) [2].

    A escandalosa desigualdade socioeconômica no Brasil é causa e consequência de muitas crises brasileiras atuais. Na segunda década do século XXI estamos enfrentando crise econômica, particularmente para os pobres; crise ambiental, com crescimento das taxas de desmatamento; crise climática, com aumento de temperaturas e alteração em ciclos de chuva e de seca; crise social que se desenha na população brasileira dividida grosseiramente entre os que usam máscara para se proteger do coronavírus e os que acham que temer a covid-19 é "mimimi"; e crise política, a qual nem vale a pena comentar.

    Políticas públicas justas são fundamentais para se enfrentar crises. E todas precisam ser de longo prazo; as muito graves, como a crise sanitária causada pela covid-19, exigem políticas emergenciais. No Brasil, o auxílio emergencial concedido em 2020 pelo governo federal trouxe um alento na renda familiar dos que se inserem na categoria de miseráveis e derrubou por pelo menos cinco meses a porcentagem da população em pobreza extrema [2].

    De acordo com dados da Pnad 2015, última publicada com identificação de porcentuais de população rural e urbana [3], 85% da população brasileira vivia em áreas urbanas e a região Nordeste era a que contava com o maior porcentual de população rural (27%). A Pnad Contínua 2019 mostra que o rendimento médio mensal real do trabalho do 1% da população com os rendimentos mais elevados era de R$ 28.659, ou seja, quase 34 vezes o rendimento dos 50% da população com os menores rendimentos mensais (R$ 850) [4].

    O setor agrícola brasileiro é uma das causas das crises brasileiras porque também apresenta as discrepâncias de renda observadas no cenário nacional. O acesso à terra está cada vez mais limitado. Dados do Censo Agropecuário de 2017 apontam que 0,6% dos mais de cinco milhões de estabelecimentos (ocupando cerca de 41% da área total do país) foram responsáveis por 53% do valor bruto da produção agrícola, enquanto os agricultores que se encontravam em situação de extrema pobreza (renda de zero a dois salários-mínimos) e ocupavam 69% dos estabelecimentos (dos quais três quartos são de agricultura familiar) foram responsáveis por apenas 4% do valor bruto da produção agrícola nacional [5].

    Ainda assim, o setor agrícola brasileiro pode ser solução para crises e contribuir para reduzir a desigualdade [6]. E são muitas as alternativas. Mas para tanto é necessário redefinir nossas prioridades e compreender que não basta aumentar a produção e a produtividade da agropecuária. É preciso focar em sustentabilidade ambiental, social e econômica. E é isto que este Núcleo Temático discute por meio de oito artigos redigidos por pesquisadores de mais de 13 instituições brasileiras e por uma integrante do povo Piratapuya, que vive em Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas.

    O artigo que abre esta coletânea, elaborado por José Maurício Quintão, Roberta Cantinho, Eliza Rosário Gomes Marinho de Albuquerque, Leandro Maracahipes e Mercedes Bustamante, mostra que no Brasil as emissões de gases de efeito estufa, principalmente o dióxido de carbono (CO2), estão intimamente relacionadas ao papel da vegetação nativa e sua conversão para usos antrópicos, como agricultura e pecuária. Avanços foram feitos mas, infelizmente, o quadro atual revela um recrudescimento das taxas de desmatamento na Amazônia e na degradação de biomas como o Pantanal, em função de incêndios em proporções históricas.

    No segundo artigo, Agostinho Alves de Lima e Silva aborda de forma clara as relações da saúde humana com uso intensivo de fertilizantes e agrotóxicos e com mudanças de uso da terra. Ele mostra como o desmatamento e a intensificação agrícola promovem destruição ou modificação drástica de habitats naturais e de áreas de vida de diferentes espécies, alterando o comportamento de muitos hospedeiros de patógenos, forçando-os a viverem mais próximos do homem e provocando doenças zoonóticas, das quais a covid-19 talvez seja o exemplo mais grave até o momento.

    E para mostrar que é possível fazer diferente, este Núcleo Temático traz um texto escrito pelo Coletivo Folhas Compostas sobre sistemas agrícolas tradicionais no Brasil. Rico em informações, saberes e formas de existir de pessoas, em diferentes paisagens brasileiras, o texto apresenta práticas extrativistas e agroflorestais, sempre vinculadas a um território e, portanto, a um sistema cultural específico. Trata-se de um trabalho que nos leva a refletir sobre as inúmeras possibilidades de resistência e alternativas à erosão da biodiversidade provocada por sistemas intensivos que rompem as relações de agricultores e agricultoras com o ambiente.

    No texto seguinte, e apoiado em larga experiência com políticas públicas para o setor agrícola conciliadas com o ambiente, Eduardo Assad retoma a discussão do impacto da agricultura e da mudança de uso da terra sobre o clima no planeta. Ele apresenta alternativas viáveis para a adaptação da agricultura às mudanças climáticas em curso e que permitirão reduzir as desigualdades existentes no cenário rural brasileiro.

    O quinto texto, escrito por Lucas Carvalho Gomes e Irene Maria Cardoso, mostra que sistemas agrícolas da agricultura familiar geralmente possuem uma maior diversidade de plantas com maior produção de biomassa e proteção dos solos e, justamente por isso, são considerados mais sustentáveis e importantes na mitigação dos impactos das mudanças climáticas. Por meio de dois exemplos - produção de café em sistemas agroflorestais e quintais na zona da mata de Minas Gerais - os autores mostram que sistemas de produção de base familiar promovem aumento do sequestro de CO2 da atmosfera e são mais adaptados e resilientes às mudanças climáticas.

    O sexto texto, de autoria de Miguel Calmon, é uma rica fonte de informações sobre as múltiplas possibilidades do Brasil para ocupar a liderança global na restauração de paisagens na Década da Restauração de Ecossistemas, que se inicia neste ano de 2021. O autor mostra que inúmeras iniciativas estão sendo implantadas em diferentes locais, lideradas pelos setores público - federal, estadual e municipal - e privado, por organizações não governamentais e pela sociedade civil organizada, visando a restauração da vegetação nativa, com geração de renda para o agricultor e manutenção de serviços ecossistêmicos essenciais para a qualidade de vida.

    No penúltimo texto, Islândia Bezerra e Maria Alice Araújo Oliveira trazem a essencial e urgente discussão sobre o atual sistema alimentar - apoiado em produtos comestíveis e não em alimentos - e suas consequências para a saúde dos seres do planeta. Com base na relação direta entre qualidade da produção e qualidade do alimento, as autoras relatam duas experiências práticas intituladas "Eu escolho sem veneno", uma da Universidade Federal do Paraná e outra da Universidade Federal de Alagoas, que permitiram levar a consumidores de Curitiba e de Maceió alimentos saudáveis produzidos por sistemas agroecológicos.

    Para encerrar esse passeio por olhares, inquietações e alternativas, Ricardo Abramovay nos proporciona a leitura de um texto provocativo e questionador. Focando principalmente a produção de carne pela agroindústria, o autor conduz o leitor a refletir sobre a chamada civilização carnívora, a partir de diferentes ângulos e com base em variada documentação. Abramovay fecha este Núcleo Temático com perguntas, que a rigor envolvem outras, tanto de caráter ético quanto científico, e nos estimula a continuar refletindo sobre o que produzimos na agropecuária brasileira e sobre o que consideramos alimento. Boas leituras a todos!

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Ribeiro, D. Apresentação. In: Brasil aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. Editora Guanabara, Rio de Janeiro (RJ). 1985.

    2. Canzian, F. "Brasil começa 2021 com mais miseráveis que há uma década". Folha de S. Paulo (versão impressa), 31 de janeiro de 2021.

    3. Conheça o Brasil - População: população rural e urbana. Disponível em https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18313-populacao-rural-e-urbana.html. Acesso em 01/02/2021.

    4. Agência IBGE Notícias. "PNAD Contínua 2019: rendimento do 1% que ganha mais equivale a 33,7 vezes o da metade da população que ganha menos". Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27594-pnad-continua-2019-rendimento-do-1-que-ganha-mais-equivale-a-33-7-vezes-o-da-metade-da-populacao-que-ganha-menos. Acesso em 01/02/2021.

    5. Vieira-Filho, J. E. R. "100 anos de censo agropecuário no Brasil". Revista Política Agrícola, v. 29, n.1, p 133-135, jan/fev/mar 2020.

    6. Hoffmann, R. "Distribuição da renda agrícola e sua contribuição para a desigualdade de renda no Brasil". Revista de Política Agrícola, v. 20, n. 2, p. 5-22, abr./maio/jun. 2011.