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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.73 no.1 São Paulo jan./mar. 2021

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602021000100006 

    ARTIGOS
    AGRICULTURA

     

    Plurais em todas as dimensões: os sistemas agrícolas tradicionais

     

     

    Coletivo Folhas Compostas

    Coletivo Folhas Compostas é resultado do encontro entre os saberes dos povos indígenas, quilombolas e comunidades locais e o conhecimento científico, partindo do pressuposto de que o encontro é sempre a união da pluralidade de formas, de estatutos e de substâncias. O coletivo reúne Adryan Nascimento, Amanda Horta, Anna Maria Andrade de Castro, Augusto Postigo, Carla Dias, Dannyel Sá, Diego Amoedo, Ilma Neri, Katia Ono, Laudessandro Marinho da Silva, Lucybeth Arruda, Luiz Marcos de França Dias, Nurit Bensusan, Raquel Pasinato e Roberto Rezende

     

     

    O QUE SÃO SISTEMAS AGRÍCOLAS TRADICIONAIS?

    Compõe e define sistemas agrícolas tradicionais o conjunto organizado de conhecimentos, saberes, técnicas, cultura material, regras sociais e práticas de um grupo cultural associado ao uso e manejo da biodiversidade e das paisagens vinculados a um território específico [1]. O caráter sistêmico de seu conteúdo diz respeito às diversas dimensões que fazem parte do conjunto e a forma como culturalmente se integram. Na acepção do termo como um todo dada acima, a palavra agrícola não se restringe à ideia de cultivo, mas abarca noções como domesticação, manejo, cuidado e mesmo familiarização [2], compreendendo assim diferentes práticas em diferentes paisagens. São exemplos desse significado mais amplo algumas práticas extrativistas e agroflorestais, que estão sempre vinculadas a um território e, portanto, a um sistema cultural específico.

    Já o termo "tradicional" poderia, dado seu uso corriqueiro, remeter à ideia de antiguidade, passado, e mesmo a algo localizado no tempo e que não se modifica. No entanto, os sistemas agrícolas tradicionais são parte integrante de sistemas mais amplos de produção de conhecimentos e, nesse sentido, dinâmicos e em permanente desenvolvimento, não se configurando, portanto, em coleção estática de conhecimentos e práticas, mas antes em formas de produção dinâmicas de diversidade e conhecimento. A ideia de tradicional remete, assim, ao caráter histórico, territorial e cultural do sistema.

    Atualmente, tem sido globalmente reconhecida a importância de tais sistemas para: 1) a produção e conservação de diferentes paisagens; 2) a produção e conservação da agrobiodiversidade; 3) a segurança alimentar; 4) o enfrentamento e mitigação da crise climática; e 5) o conjunto dos conhecimentos e formas de existir do humano. Desse modo, sistemas agrícolas tradicionais (SATs) e globally important agricultural heritage systems (GIAHS), respectivamente nos âmbitos nacional e internacional, são também termos atualmente endereçados a um conjunto de políticas e programas que procuram reconhecer, valorizar e salvaguardar esses sistemas, sua importância e os benefícios e serviços que prestam. O GIAHS [3], incorporado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) desde 2015, tem por objetivo principal "identificar e salvaguardar os SATs de relevância global, as paisagens a eles associadas, a agrobiodiversidade e os conhecimentos tradicionais, catalisando e estabelecendo um programa de longo prazo para apoiar tais SATs, de forma a trazer benefícios globais, nacionais e locais, e promover sua conservação dinâmica e a gestão sustentável".

    No Brasil, o reconhecimento dos SATs como patrimônios imateriais da sociedade brasileira se dá por demanda das comunidades detentoras dos sistemas junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em sua política de salvaguarda do patrimônio imaterial. Dois SATs obtiveram registro junto ao Iphan: o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro e o Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.

    No Brasil, foram listados 17 exemplos de SATs [4], que dão ideia da diversidade de situações que podem ser englobadas pelo termo - ou por termos correlatos como sistemas agroflorestais tradicionais - e, consequentemente, pelas políticas públicas e legislações associadas. Considerando a sociobiodiversidade nacional, não é difícil imaginar a diversidade de sistemas desse tipo existentes e que merecem ser conhecidos e valorizados pelo conjunto da sociedade e por políticas públicas de valorização e salvaguarda.

    O conjunto desses sistemas, se considerados em nível global, representam uma resistência e uma alternativa a processos herdados da chamada revolução verde, caracterizados pela erosão da diversidade de variedades e espécies vegetais (conservadas apenas em bancos de germoplasma) com as quais a espécie humana convive de diferentes maneiras ao longo de sua história. Os sistemas agrícolas tradicionais, em oposição a isso, são formas não predatórias de relação dos humanos com o território e outras espécies. Os diferentes povos e grupos e seus sistemas tradicionais conservam e promovem a diversidade agrícola: "[...] enquanto os bancos de germoplasma espalhavam-se pelo mundo, grupos indígenas, comunidades e agricultores familiares tradicionais continuavam os processos de diversificação agrícola conservando, sob cultivo, diversas variedades de importantes espécies de plantas." [5].

     

    O QUE OS SATS TÊM QUE A AGRICULTURA CONVENCIONAL NÃO TEM?

    Os praticantes da agricultura do cuidado [6] reconhecem que as relações sociais não são restritas exclusivamente aos seres humanos e cultivam as espécies vegetais considerando a agência das plantas e dos outros seres não humanos. Nesse sentido, as práticas de manejo dos SATs estão imbricadas aos processos biológicos, ecológicos e ecossistêmicos nas porções de terras de uso coletivo sob controle das populações minoritárias nas franjas do mundo, na maioria das vezes cercadas pelas terras apropriadas pelo capital. Locais onde a terra é para o trabalho e não para o negócio; e onde produzir não está no centro da vida, apesar de ser uma dimensão importante da vida.

    O conhecimento da integralidade de todos os fenômenos é o que ancora as tomadas de decisões para a experimentação contínua realizada por esses cientistas da terra. Portanto, a diversidade é o elemento fundamental que os caracteriza. Os nutrientes obtidos pelas plantas são disponibilizados através dos ciclos de energia e matéria retroalimentados pelos próprios componentes desses fluxos e, por isso, a favor da vida. Mediante um complexo e dinâmico arranjo não-hierárquico de muitas espécies que envolve desde os seres produtores (espécies vegetais), passando pelos consumidores (espécies animais) e por fim os decompositores (fungos e bactérias), os SATs produzem os próprios nutrientes que as plantas obtêm para o seu crescimento em um mosaico de consórcios distintos de espécies conforme as manchas de solos ativamente transformadas pelas relações entre as espécies, incluindo tecnologias de manejo extremamente minuciosas. Os solos dos SATs são produtos vivos dessas interações e vice-versa. Uma coisa não existe sem a outra.

    O mesmo acontece com a água, que flui, literalmente, exercendo uma jornada contínua ao longo dos corpos d'água superficiais, subterrâneos e atmosféricos e através dos mundos não humanos. Assim, o abastecimento hídrico dos SATs está intimamente relacionado à regulação climática.

    Por outro lado, a chamada agricultura convencional parte do pressuposto falacioso da supremacia humana e de seu pretenso controle sobre as demais espécies e o planeta como um todo. Essa noção aliada a arranjos sociais hierárquicos, ao estabelecimento de unidades produtivas pautadas nas monoculturas voltadas para a exportação ("comoditização"), ao trabalho forçado, ao cultivo de plantas inicialmente sem quaisquer relações com outras espécies locais, a relações de coerção entre as espécies, à mercantilização das terras, ao confinamento de mulheres e de grãos constituem os esteios da plantation que alavancou a conquista e expansão europeia e formatou o agronegócio atual. Lucros enormes e misérias complementares advindos desse modelo resultam em uma série de impactos socioambientais desastrosos. Para começar, uma transformação biológica das pessoas e das plantas no sentido da homogeneização tornando-as passíveis de controle e ordenamento externos. É como diz Kampot Ikpeng [7], em referência aos impactos da agricultura do despejamento: "Hoje em dia o tempo está mudando e as pessoas estão perdendo a percepção do que vai acontecer, porque o tempo está ficando imprevisível. O tempo está mudando as pessoas".

    Sob o jugo da dominação antrópica, a agricultura do despejamento praticada pelo agronegócio a partir da concepção da plantation deixa um rastro de destruição que vai além da exaustão dos insumos que a sustentam e da desertificação. Como aponta Tawaiku Juruna [8], "a floresta tem muitos donos, que abandonam os locais quando a floresta é destruída".

     

    SISTEMA AGRÍCOLA TRADICIONAL DO RIO NEGRO

    Em novembro de 2010, o Instituto de Patrimônio Humano Artístico Nacional (IPhan) registrou o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro como patrimônio cultural do Brasil no Livro de Registros dos Saberes - Bens Culturais Imateriais [9]. Este reconhecimento foi antecedido de uma série de pesquisas e articulações feitas desde 2006 e ensejou expectativas por uma nova fase na região onde os setores públicos locais, estaduais e federais articulassem uma agenda de intervenções participativas a fim de valorizar e salvaguardar o jeito de fazer roça, os produtos da agricultura e todos os conhecimentos indígenas associados ao sistema.

    O SAT Rio Negro é entendido como um conjunto de saberes e modos de transmissão de conhecimentos que se relacionam entre si e dentre eles estão: a diversidade das plantas cultivadas, as técnicas de manejo da roça e floresta e dos quintais (os espaços de cultivo), o sistema alimentar (as receitas e processos de elaboração dos produtos da roça), os utensílios de processamento e armazenamento e, por fim, a conformação de redes sociais de troca de plantas e conhecimentos associados. O cultivo da mandioca brava (Manihot esculenta), por meio da técnica de coivara e da rede de troca de saberes e plantas, é a base desse sistema, compartilhado por mais de 20 povos indígenas, os quais vivem ao longo do rio Negro, em um território que abrange os municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, no noroeste amazônico, até as fronteiras com a Colômbia e a Venezuela.

    Nesse sistema, os utensílios de processamento da massa de mandioca e os cultivares são considerados seres com atributos semelhantes aos dos humanos, com sentimentos e sociabilidade. O repertório de artefatos não é passivo - o forno de torrar a farinha, por exemplo, sabe, junto com a pessoa que torra, se ela vai ficar boa ou não. As mandiocas se comunicam entre si e com as mulheres, que são as donas das roças. Essas características orientam a gestão do uso e produção desses bens compondo um aspecto do valor patrimonial do sistema.

    A agricultura no rio Negro é antiguíssima, há registros que marcam quatro mil anos de prática agrícola na região, mas os povos indígenas dizem que esse marco temporal é recente, suas narrativas de origem alcançam tempos anteriores a esse. A enorme diversidade de manivas do rio Negro [10], como um reservatório de variedades, mostra que os povos indígenas prestam um serviço a toda humanidade, não só ao Brasil, resguardando e manejando essas variedades como fazem cientistas em laboratórios-banco de espécies. A maneira de fazer roça do rio Negro, o sistema de queima, plantio e capoeiras de longa duração, o trabalho de experimentação das agricultoras que valorizam novas variedades oriundas de sementes e a intensa circulação de plantas cultivadas, entre as agricultoras vizinhas e parentes, favorece a manutenção de uma alta diversidade de variedades, assegurando a segurança alimentar.

     

    SISTEMA AGRÍCOLA TRADICIONAL DOS QUILOMBOLAS DO VALE DO RIBEIRA

    O Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira (SATQ) foi reconhecido em 2018, pelo Iphan, como patrimônio cultural do Brasil. Esse sistema é desenvolvido pelas comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, no sudoeste do estado de São Paulo [11].

    Nos territórios quilombolas do Vale do Ribeira existem formas de manejar a floresta cujo objetivo central é prover alimentos e, para tanto, essas populações mobilizam conhecimentos extremamente complexos e relacionados em torno da roça tradicional. O trabalho agrícola abrange o cultivo nas roças de coivara itinerantes, a diversidade de plantas manejadas, o preparo dos alimentos, a cultura material associada, os arranjos produtivos locais, as redes de comercialização e os contextos de transmissão de conhecimento e de consumo alimentar que envolvem expressões de música e dança [12].

    A roça conhecida na literatura por itinerante, também chamada de toco e coivara, é um sistema milenar praticado pelos povos originários das Américas, também encontrada em outros continentes, como o africano. De uma forma resumida, consiste em escolher uma área de mata adequada para o plantio de determinada cultura, cortar a floresta, queimar com técnica de aceiro, plantar, colher e cultivar essa área por cerca de três a quatro anos, abandonar para regeneração natural e seguir para outra área. Podemos dizer que é um manejo das capoeiras.

    O SATQ articula áreas de roças individuais e coletivas, quintais e manejo de áreas florestadas e agroflorestadas. As roças estão ligadas às expressões do catolicismo popular que caracteriza a vida religiosa das comunidades [13]. Os alimentos cultivados fornecem a base da alimentação servida nas celebrações e a motivação de algumas festas são promessas que pedem bons resultados agrícolas promovendo atitudes rituais com as plantações e criando uma dimensão sagrada com a roça.

    Há também uma convergência entre os calendários festivo e agrícola, que se refere à noção de tempo ampliado e ciclicamente contínuo. Todos os anos o ciclo se completa e se reinicia continuamente, assim como os cultivos, feitos no presente para a colheita futura, garantindo as sementes e mudas para que um novo ciclo de plantio-colheita possa acontecer.

    As comunidades quilombolas detentoras do SATQ historicamente participaram de circuitos comerciais no Vale do Ribeira e são reconhecidas na região como detentoras de significativa agrobiodiversidade. Com a criação da Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), os quilombolas deram um passo importante para a construção da autonomia na comercialização dos alimentos dessas comunidades, organizando e coordenando o aumento do volume vendido, a melhoria do preço pago e a maior regularidade na venda e pagamento. As consequências desse processo de valorização da agrobiodiversidade dessas comunidades foram o reconhecimento de cultivos diversos, fazendo frente à monocultura, e no respeito às sazonalidades dos alimentos gerando recursos financeiros fundamentais para a composição da renda dos quilombolas, apesar das transformações por que passa a região.

     

    TERRA DO MEIO: AS COLOCAÇÕES, O SISTEMA DOS BEIRADEIROS

    O termo colocação remete para a forma como se deu a abertura de seringais em boa parte da Amazônia e, de maneira mais intensa, justo nos períodos de auge dos preços da borracha nativa da Amazônia nos mercados internacionais. O primeiro período se situa entre o final do século XIX e a primeira década do século XX; e o segundo, com forte incentivo e participação do estado nacional, durante o período da Segunda Guerra Mundial.

    Os trabalhadores trazidos do Nordeste nessas duas oportunidades eram em sua maioria homens solteiros e provenientes de regiões do semiárido. Quando chegavam, os migrantes eram colocados, sozinhos ou em dupla, em postos de trabalho denominados por isso mesmo colocações. A colocação correspondia desse modo a um território que, a partir da margem do rio ou de um afluente, prolongava-se para o interior, comportando de duas a três estradas de seringa. As estradas de seringa eram trilhas na floresta que interligavam entre 150 e 200 seringueiras.

    Ocorre que ao longo dos anos de vida na floresta, e de relação com ela e seus seres, o que era inicialmente um posto de trabalho isolado se constituiu em território. Com o tempo, os seringueiros constituíram família (muitas vezes com mulheres indígenas capturadas nos embates iniciais com os povos indígenas pelo território), aprenderam na relação com a floresta a botar roça, a caçar e pescar no ambiente da floresta. O estranhamento inicial se converteu em modo de vida e os descendentes dos migrantes em beiradeiros. As colocações são até hoje a unidade territorial básica do povo beiradeiro e o seu funcionamento como sistema a base de seu modo de vida e cultura.

    Uma colocação, que corresponde a uma localidade beiradeira atual, é a unidade territorial de uma família ou de uma família ampliada (com pais e filhos e/ou filhas casadas). Ela compreende a casa de morada, o terreiro, a casa de farinha, roças, capoeiras, piques de castanha, estradas de seringa, trilhas de caça e de extrativismo vegetal, refúgios de caça, pontos de pesca, porto e outros elementos. Dessa maneira, sua amplitude não é dada pela ideia de uma área poligonal com limites definidos, mas sim por um conjunto de trilhas na floresta.

    Esse sistema das colocações gerou uma forma muito própria de organização espacial do povo beiradeiro, caracterizada pela baixa densidade populacional e distribuição das colocações afastadas e relativamente isoladas umas das outras por grandes extensões de floresta, resultando em um sistema de baixíssimo impacto, altamente resiliente, marcado pelo conhecimento e uso de uma diversidade de paisagens florestais, com pouquíssima área desmatada por família (terreiros e roças).

    O sistema das colocações dos beiradeiros da Terra do Meio garantiu que os descendentes dos migrantes nordestinos não dependessem tanto do patrão e de suas mercadorias para sua subsistência e qualidade de vida. Garante na atualidade que os beiradeiros possuam uma diversidade de produtos da floresta para a comercialização sem que para isso a floresta precise ser derrubada. Esse sistema demonstra, sobretudo, que é possível estabelecer uma relação e um modo de vida baseado na floresta em pé.

    Os beiradeiros da Terra do Meio, hoje com a parceria de indígenas da mesma região, se organizaram em uma rede de produção e comercialização de produtos da floresta oriundos do sistema de colocações e dos modos de produção dos diferentes povos indígenas. Um dos desafios enfrentados por beiradeiros e indígenas nesse movimento é o reconhecimento por parte da sociedade envolvente e do mercado dos valores associados aos modos de vida e sistema locais de produção que são inerentes aos seus produtos florestais não madeireiros. Nesse sentido, o reconhecimento público e políticas de salvaguarda do sistema tradicional das colocações como um dos sistemas de produção humano - , que a partir de um território específico agregam ao planeta diversidade cultural, manutenção e produção de agrobiodiversidade, manejo de diferentes paisagens florestais, contribuição para a segurança alimentar e enfrentamento das mudanças climáticas - é fundamental para a manutenção no tempo desse sistema.

     

    TERRITÓRIO INDÍGENA DO XINGU

    A região das cabeceiras dos rios Xingu e Araguaia, no Mato Grosso, é mundialmente reconhecida pela extraordinária diversidade de espécies, paisagens e processos biológicos que ocorrem nessas áreas onde os biomas Cerrado e Amazônia se misturam, intrinsecamente ligada a uma sociodiversidade peculiar. Aqui o papel das populações indígenas para a estrutura e composição da Amazônia [14, 15] é notável. A fertilidade e composição biológica nas terras pretas de índio [16] e a importância da ocupação humana e do fogo no Cerrado [17] são exemplos já consagrados de como as relações entre os humanos, as espécies vegetais e o ambiente podem gerar diversidade e moldar ecossistemas.

    No entanto, a colonização pela sociedade nacional, a partir da introdução da pecuária intensiva e da agricultura industrial desde meados do século XX, alterou drasticamente o modo de ocupação e o modelo hegemônico de relações nesses territórios. Assim, grande parte das relações milenares que as sementes nativas engendraram foi rompida. Neste sentido, o desmatamento alterou bruscamente o fluxo do ciclo reprodutivo das espécies vegetais: eliminação das matrizes fontes das sementes, fragmentação e interrupção da dispersão populacional e comprometimento da viabilidade do solo para o estabelecimento de novos indivíduos.

    No Território Indígena do Xingu (TIX) [18], as práticas agrícolas se fundamentam em uma relação profunda com o ambiente que, mesmo dentro do território, é bastante heterogêneo. Localizado numa zona de transição, ao norte, a vegetação é amazônica de baixo porte; ao sul, a marca forte do Cerrado se apresenta na vegetação campestre e nos campos de murundu.

    Na busca por manchas de terras pretas, esses povos que ocupam a região norte do TIX caminham pela floresta, abrindo clareiras na paisagem florestal para cultivar seus produtos. Escolher onde abrir clareiras é um processo que requer o conhecimento íntimo da floresta, com refinado sistema de classificação das paisagens, de reconhecimento e descrição de tipos de cobertura vegetal e características de solo. Além disso, há anos as capoeiras de terra preta vêm sendo manejadas por esses povos.

    Há diferenças entre as aldeias, as formas de fazer roça e de manejar o fogo entre os habitantes do norte e do sul do TIX, o que se nota, porém, é que técnicas que eram precisas perdem sua eficiência diante das mudanças climáticas e da dinâmica da floresta alterada pela destruição que circunda o território.

    Cada um dos 16 povos que habitam o TIX, institui uma relação bastante singular com o ambiente que habita, expressa nos inúmeros mitos da cultura oral desses povos, com destaque para os mitos de origem.

     

    SATS E AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

    Há muitas interfaces entre os SATs e as mudanças climáticas. Os sistemas produtivos com mais diversidade resistem melhor às mudanças climáticas, além disso, eles colaboram na redução do impacto que muito da agricultura e da pecuária exercem sobre a dinâmica do clima.

    A agropecuária é responsável por uma parcela significativa das emissões de gases de efeito estufa. À medida que tais emissões acontecem e o clima se transforma, a agricultura convencional é cada vez mais impactada. Em âmbito planetário, a FAO [19] estimou que a contribuição da agricultura, silvicultura e outras mudanças de uso da terra são responsáveis por cerca de 21% no total das emissões globais de gases de efeito estufa. A agricultura convencional, derivada da chamada revolução verde, aumentou a produção, mas a um gigantesco custo social, cultural e ecológico, traduzido em poluição ambiental; perda de biodiversidade; mudanças climáticas; degradação dos solos; erosão da agrobiodiversidade, dos conhecimentos associados a ela e dos modos de vida dos detentores desses saberes; e declínio da saúde humana e da qualidade de vida.

    Há muitos dados mostrando que a resiliência para eventos extremos climáticos está relacionada com a diversidade presente nos sistemas produtivos. Assim, numa perspectiva global, os SATs contribuem para combater os efeitos da crise climática e, em especial, a perda acelerada de biodiversidade. Segundo o último relatório da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES na sigla em inglês), 25% das espécies animais e vegetais do planeta estão sob risco de extinção [20] - o que corresponde a cerca de um milhão de tipos de animais e plantas. Essa perda decorre principalmente dos modelos econômicos predominantes, que seguem incentivando sistemas convencionais de plantio e criação com cada vez menos espécies para a produção de alimentos, colocando em risco a segurança alimentar em um mundo cada vez mais quente, minando paisagens diversas e os conhecimentos associados às espécies.

    A FAO tem sinalizado que considera os sistemas agrícolas tradicionais como parte da solução para garantir a segurança alimentar diante da crise climática. A agência é a responsável pelo Tratado de Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura (Tirfaa), que versa sobre a conservação e o uso sustentável desses recursos e reconhece o papel passado, presente e futuro dos agricultores tradicionais na geração de inovação em agricultura.

    A agricultura é uma das atividades humanas que vem sendo e será mais impactada pela mudança climática. Nos últimos anos, os impactos da crise climática se tornaram a maior ameaça à segurança alimentar [21, 22]. Há um conjunto de respostas a essa situação conhecido como agricultura climaticamente inteligente, que tem como objetivo aumentar a produção sustentável de alimentos, adaptação climática, resiliência e redução de gases de efeito estufa. Os sistemas agrícolas tradicionais são um elemento importante nesse conjunto.

    A importância dos SATs para a segurança alimentar, porém, vai muito além da produção de alimentos em si. Sua riqueza está na complexidade de interações entre plantas, humanos e outros animais, das quais resultam incrementos de diversidade ao longo do tempo. Essa diversidade é tanto biológica quanto de conhecimentos associados. Se, por um lado, os SATs geram processos de diversificação de variedades e espécies vegetais, e a criação de ambientes para a vida de diversos animais, por outro, esses processos se constroem e reconstroem a partir do desenvolvimento de conhecimentos associados à paisagem e às transformações decorrentes das formas de manejo. Nos SATs, os sistemas de diversidade culturais e ecológicos coexistem e evoluem em interação. Eles são resultado de saberes altamente especializados transmitidos por gerações e que envolvem desde o cultivo da terra, a ecologia das plantas e as técnicas de transformação dos elementos da natureza através de processos simbólicos e produtivos particulares. Essas formas de manejo estão associadas a conhecimentos tradicionais que operam a partir de outros sistemas classificatórios, levando a resultados distintos e a caminhos inovadores para a solução de problemas ambientais. Esses conhecimentos derivados de SATs e seus detentores foram mobilizados pelo IPBES, por exemplo, para interpretar e buscar soluções para a diminuição global no número de polinizadores, situação que agrava a crise alimentar do planeta [23].

    Há ainda uma outra conexão pouco explorada entre os SATs e o combate à crise climática: a caracterização de florestas tropicais manejadas como sistemas agrícolas tradicionais. Pesquisas arqueológicas e de ecologia histórica têm mostrado que sistemas de manejo de povos e comunidades tradicionais amazônicos produzem florestas diversas. Que a diversidade de boa parte da Amazônia resulta do manejo minucioso realizado por indígenas ao longo de séculos, que envolve a seleção de variedades e espécies, e a criação de pequenas perturbações nas matas que abrem a possibilidade de diversificação de espécies entre porções próximas de floresta [24, 25]. Essa prática segue sendo realizada não apenas por povos indígenas, mas também por ribeirinhos, quilombolas e outros povos tradicionais contemporâneos

    A aplicação do conceito de SAT para as áreas manejadas por povos e comunidades tradicionais na Amazônia nem sempre é evidente, pois esses sistemas de manejo não resultam necessariamente na domesticação das espécies utilizadas. O manejo de plantas úteis associado à geração de biodiversidade na Amazônia opera por lógicas que escapam à domesticação de espécies. Esse manejo resulta no incremento de plantas úteis nas proximidades das áreas habitadas e na hiperdominância de determinadas espécies no bioma.

    Esse tipo de manejo não necessariamente resulta em domesticação, podendo levar a processos que são melhor definidos como familiarização [26]. Os SATs amazônicos combinam os roçados, que são áreas de reprodução de cultivos domesticados e de ciclo curto, com as matas do entorno dos locais habitados, com espécies de ciclos maiores, familiarizadas pela criação de espaços propícios a sua reprodução. Essas espécies vegetais também produzem alimentos que atraem animais que fazem parte da dieta. Ou seja, esses SATs amazônicos, além de produzirem biodiversidade, contribuem para a manutenção de grandes estoques de carbono nas espécies vegetais e animais que compõem os sistemas.

     

    NOTAS E REFERÊNCIAS

    1. Em 2008, pesquisadores associados ao processo de reconhecimento do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro junto ao Iphan elaboraram da seguinte maneira a definição de sistemas agrícolas tradicionais: "Por sistema agrícola tradicional ou territorializado entendemos o conjunto formado pelas práticas e saberes de manejo dos espaços e dos recursos biológicos vinculados a uma certa base territorial e a certos grupos culturais, incluindo-se os conceitos e normas, bem como a cultura material e sistema alimentar". Em recente publicação sobre os SATs no Brasil, define-se "Sistema Agrícola Tradicional (SAT) como um conjunto estruturado, que é formado por elementos interdependentes: plantas cultivadas e criação de animais, redes sociais, artefatos, sistemas alimentares, saberes, normas, direitos e outras manifestações associadas. Esses elementos envolvem espaços e agroecossistemas manejados, formas de transformação dos produtos agrícolas e cultura material e imaterial associada, bem como sistemas alimentares locais que interagem e resultam na agricultura, na pecuária e no extrativismo". Ver [4].

    2. Sobre domesticação e familiarização na Amazônia, ver [25].

    3. Segundo definição da FAO: "Globally Important Agricultural Heritage Systems" (GIAHS) are outstanding landscapes of aesthetic beauty that combine agricultural biodiversity, resilient ecosystems, and a valuable cultural heritage. Located in specific sites around the world, they sustainably provide multiple goods and services, food, and livelihood security for millions of small-scale farmers. Disponível em http://www.fao.org/giahs/en. Acesso em 26 de outubro de 2020.

    4. Eidt, J.S.; Udry, C. (editoras técnicas). (2019) Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil. Coleção Povos e Comunidades Tradicionais, vol 3. Brasília: Embrapa, 351 p.

    5. Santonieri, L.R. (2015) "Agrobiodiversidade e conservação ex situ: reflexões sobre conceitos e práticas a partir do caso da Embrapa/ Brasil". Unicamp: tese de doutorado.

    6. Adotamos aqui os termos "agricultura do cuidado", derivada da ideia de economia do cuidado em contraste com a "agricultura do despejamento", expressão derivada da "economia do despejamento", cunhada por Chamayou (2020) para designar uma economia que despeja suas externalidades sobre outros agentes. Por exemplo, as consequências das monoculturas de soja, como desmatamento, contaminação de solos e de cursos d'água e perda de diversidade genética são "despejados" sobre a sociedade e não compensados pelos produtores dessa commodity, nem embutidos em seu preço. Ver em Chamayou, G. (2020) A sociedade ingovernável - Uma genealogia do liberalismo autoritário. São Paulo: Ubu Editora.

    7. Kampot Ikpeng é cacique da aldeia Moygu, do povo Ikpeng.

    8. Tawaiku Juruna, da aldeia Tuba Tuba, do povo Yudja.

    9. O Livro de Registro dos Saberes foi criado pelo Iphan para receber os registros de bens imateriais que reúnem conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades. O Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro está disponível em http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/75. Consultado em 21 de janeiro de 2021.

    10. O rio Negro é o maior produtor de diversidade de manivas do Brasil - e do mundo, já que a mandioca é uma planta de origem brasileira - e essa região se caracteriza também por uma altíssima diversidade de outras plantas cultivadas. Em um dos levantamentos, em uma pequena amostra geográfica, com entrevistas e visitas aos roçados, realizado de 2006 a 2009, foram encontrados 110 tipos de manivas e 329 tipos de outras plantas cultivadas por 28 famílias na sede municipal de Santa Isabel e em duas comunidades vizinhas.

    11. Os territórios quilombolas do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira estão nos municípios de Iguape-SP (quilombo Morro Seco), Cananéia-SP (quilombo Mandira), Jacupiranga-SP (quilombo Poça), Eldorado-SP (quilombos Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, Sapatu, André Lopes, Ivaporunduva, Galvão, Abobral e São Pedro), Iporanga-SP (quilombos Piririca, Nhunguara, Porto Velho, Bombas, Pilões, Maria Rosa e Praia Grande) e Itaóca-SP (quilombo Cangume). Os quilombos onde o SATQ acontece há mais de 400 anos fazem parte do maior e mais importante remanescente de Mata Atlântica do Brasil, reconhecida em 1992 pela Unesco, como Reserva da Biosfera e Patrimônio Natural da Humanidade.

    12. Instituto Socioambiental (ISA). Dossiê Sistema Tradicional Agrícola dos Quilombolas do Vale do Ribeira. 2017. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossi%C3%AA_relat_1(1).pdf

    13. Andrade, A. M.; Tatto, N. Inventário cultural de quilombos do Vale do Ribeira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2013.

    14. Levis, C. et al. "Persistent effects of pre-Columbian plant domestication on Amazonian forest composition". Science 355, 925 - 931, 2017.

    15. Ter Steege et al. "Hyperdominance in the Amazonian tree flora". Science 342: 1243092, 2013.

    16. Neves, E. G.; Petersen, J. B.; Bartone, R. N.; Silva, C. D. "Historical and socio-cultural origins of Amazonian Dark Earths". In: J. Lehmann, D. C. Kern, B. Glaser, and W. I. Woods (eds), Amazonian Dark Earths: origin, properties, management. (Berlin: Springer Science and Business Media), 29 - 50, 2003.

    17. Melo, A.S.; Justino, F.; Lemos, C.F.; Sediyama, G.; Ribeiro, G. "Suscetibilidade do ambiente a ocorrências de queimadas sob condições climáticas atuais e de futuro aquecimento global". Rev. Bras. Meteorol, 26, 401 - 418, 2011.

    18. Território Indígena do Xingu (TIX) é o nome adotado, desde 2017, pelos 16 povos indígenas que habitam as cabeceiras e a parte alta do Rio Xingu - Aweti, Ikpeng, Kalapalo, Kamaiurá, Kawaiweté, Kisêdjê, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvôtu, Tapayuna, Trumai, Waurá, Yawalapiti, Yudja - para designar a área de 2,8 milhões de hectares em que habitam. A área é composta pelo Parque Indígena do Xingu, criado em 1961, e outras três terras indígenas contíguas, demarcadas a partir da Constituição Federal de 1998: Wawi, Batovi e Pequizal do Naruvôtu. Embora seja um território extenso, o TIX é apenas uma das extremidades do amplo corredor de áreas protegidas distribuídas ao longo da bacia do Rio Xingu.

    19. Food and Agricultural Organization FAO. "The State of Food and Agriculture 2016 (SOFA): Climate change, agriculture and food security". Food and Agriculture Organization of the United Nations, 2016. http://www.fao.org/3/a-i6030e.pdf

    20. IPBES Global Assessment, 2019. Disponível em: https://ipbes.net/news/Media-Release-Global-Assessment

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