SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.73 número1 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.73 no.1 São Paulo jan./mar. 2021

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602021000100008 

    ARTIGOS
    AGRICULTURA

     

    Papel da agricultura familiar no sequestro de carbono e na adaptação às mudanças climáticas

     

     

    Lucas Carvalho GomesI; Irene Maria CardosoII

    IDoutor em solos e nutrição de plantas pela Universidade Federal de Viçosa, doutor em ciências ambientais pela Universidade de Wageningen e pós-doutorando na UFV (lucascarvalhogomes15@hotmail.com)
    IIDoutora em ciências ambientais pela Universidade de Wageningen, professora titular da Universidade Federal de Viçosa, ex-presidente da Associação Brasileira de Agroecologia (2014-2015 e 2016-2017) (irene@ufv.br)

     

     

    AGRICULTURA FAMILIAR E MUDANÇAS CLIMÁTICAS

    É um consenso que as ações humanas sobre os ecossistemas têm aumentado a degradação ambiental devido à frequência de eventos climáticos extremos como secas e intensas precipitações. As projeções para o futuro são pessimistas, caso a atual tendência de degradação seja mantida [1]. A destruição de ecossistemas naturais como as florestas e o aumento do uso de combustíveis fósseis pelo ser humano são apontados com alguns dos principais fatores responsáveis pela alteração dos padrões climáticos, devido principalmente à produção de gases do efeito estufa (GEE), uma das causas do aumento da temperatura global.

    O dióxido de carbono (CO2), também conhecido como gás carbônico, é apontado como um dos principais GEE. As plantas possuem um papel central na regulação das concentrações de CO2 na atmosfera, uma vez que sequestram CO2 do ar para formar biomassa e liberam oxigênio para a atmosfera. Portanto, quando há uma diminuição das áreas florestais, o potencial de sequestro e renovação do ar é diminuído. Além disso, o desmatamento também pode afetar o carbono presente no solo. O solo é um dos principais reservatórios de carbono do planeta, pois contém cerca de quatro vezes mais carbono que a vegetação global.

    Diante disso, a humanidade deve se apressar para desenvolver hábitos de vida mais sustentáveis para tentar mitigar as mudanças climáticas e adotar sistemas agrícolas biodiversos, que conservem os solos, sejam mais resilientes diante de possíveis mudanças climáticas e que contribuam para mitigar tais mudanças. Os sistemas agrícolas da agricultura familiar geralmente possuem uma maior diversidade de plantas com maior produção de biomassa e proteção dos solos. Por isso são considerados mais sustentáveis e importantes na mitigação dos impactos das mudanças climáticas, tanto pelo aumento do sequestro de carbono da atmosfera quanto pelo desenvolvimento de sistemas de cultivo agrícolas mais adaptados e resilientes às mudanças climáticas.

    Seus sistemas agrícolas geralmente envolvem a produção de hortaliças, frutíferas, culturas perenes e a criação animal, o que garante também uma produção agrícola mais diversificada.

    A biodiversidade presente nas propriedades familiares é importante para a soberania alimentar, dada a qualidade e quantidade de alimentos produzidos de forma autônoma na propriedade. Isso tem uma relação direta com a saúde da família. A biodiversidade contribui ainda com a autonomia da família ao diminuir a necessidade de aquisição de insumos externos à propriedade, já que a biodiversidade é provedora de inúmeros serviços ecossistêmicos, como controle de insetos não desejáveis e maior ciclagem de nutrientes. A biodiversidade contribui assim para a geração de rendas indiretas, com os menores gastos na aquisição de insumos e alimentos, e também direta advinda da venda de produtos. A agricultura familiar é responsável por mais de 70% dos alimentos que os brasileiros consomem, entretanto ela ocupa apenas 25% das terras cultivadas, bem menor que a agricultura empresarial [2]. Portanto, além de contribuir na mitigação dos impactos das mudanças climáticas, a agricultura familiar é importante na segurança alimentar.

     

    SISTEMAS DE MANEJO E SEQUESTRO DE CARBONO

    Algumas das práticas utilizadas no manejo dos sistemas agrícolas da agricultura familiar são mais conservacionistas e possuem mais similaridade com os sistemas naturais. Dentre estas práticas apontam-se as adubações orgânicas, o manejo das plantas de cobertura do solo e os sistemas agroflorestais. Nas adubações orgânicas, resíduos animais e vegetais são adicionados ao solo como o objetivo principal de suprir nutrientes para as culturas e melhorar a qualidade física do solo. O material vegetal aporta, como consequência, muito carbono, que é processado por microrganismos e incorporado ao solo em uma forma mais estável chamada de matéria orgânica do solo. Por exemplo, adubações orgânicas na produção de hortaliças elevaram o estoque de carbono no solo de 34,57 t ha-1 para 58,19 t ha-1 em um período de 10 anos [3].

    O sequestro de carbono é um dos benefícios diretos da adubação orgânica, mas a utilização de adubos orgânicos também tem um benefício indireto na mitigação da emissão de GEE. Por exemplo, grande parte dos adubos químicos utilizados na produção agrícola brasileira são importados de outros países e envolve um gasto de combustíveis fósseis tanto no processo de produção como no trans-porte até a propriedade [4]. Ao contrário, os adubos orgânicos são produzidos muitas das vezes na mesma propriedade ou nas vizinhas através dos despejos da criação animal e de adubos verdes. Por isso utilizam menos combustíveis fósseis e contribuem menos para a emissão de CO2 para a atmosfera.

    A proteção do solo utilizando plantas de cobertura é uma prática que aumenta o sequestro de carbono e é uma ótima alternativa para mitigar os impactos de intensas precipitações que provocam perda de solo. Por exemplo, no manejo do café os agricultores familiares manejam a vegetação espontânea presente nas entrelinhas de plantas de café. Estas são roçadas periodicamente e o material cortado é adicionado na superfície do solo, colaborando para sua cobertura e para o aporte de matéria orgânica. O manejo evita também possível competição por água, nutriente e energia solar,

    Já os sistemas agroflorestais combinam as produções agrícolas, vegetal e ou animal, com espécies arbóreas (fig. 1). Estes sistemas possuem a capacidade de sequestrar mais carbono comparado com os sistemas agrícolas em monocultura. Alguns autores [5] identificaram que as árvores em sistemas agroflorestais de café resultam em um aporte de 18,60 t ha-1 nos estoques de carbono da biomassa vegetal. Além disso, o aporte de material vegetal pelas espécies arbóreas colabora com o aporte de nutrientes, incluindo o carbono, ao solo [6]. O maior aporte de carbono ao ser incorporado poderá aumentar essa reserva de matéria orgânica do solo. As árvores em sistemas agroflorestais também fornecem sombra para o solo e isso tem sido correlacionado com menores picos de emissão de CO2 do solo [7], portanto, podem contribuir para a diminuição de emissão de CO2 para a atmosfera.

     

     

    AGRICULTURA FAMILIAR E ADAPTAÇÃO ÀS MUDANÇAS CLIMÁTICAS

    Os sistemas agroflorestais são sistemas de manejo muito promissores para a adaptação às mudanças climáticas. Um exemplo é a produção de café em sistemas agroflorestais. O café arábica é sensível a altas temperatura e as projeções de aumento de 2 a 4ºC temperatura no final do século acarretaria uma perda significante nas áreas aptas para a produção de café em regiões produtoras de todo o mundo [8]. No Brasil, o café é produzido majoritariamente em sistemas de monocultura e, caso as projeções de aumento de temperatura para o futuro se concretizarem, muitas áreas que hoje são polos de cafeicultura, como as regiões das matas de Minas e montanhas do Espírito Santo, poderão ter uma redução de 60% nas áreas aptas para a produção de café [9]. No entanto, agricultores familiares na Zona da Mata de Minas Gerais têm utilizado os sistemas agroflorestais de forma promissora, pois eles, além de sequestrar carbono, possuem papel muito importante na manutenção do microclima adequado aos cafezais. A presença de árvores pode diminuir a temperatura máxima do ar em cerca de 5ºC nas plantações de café [10] e assim minimizar os efeitos de aumentos de temperatura.

    A presença de árvores e plantas nas entrelinhas do café também são uma ótima opção para mitigar os efeitos de intensa precipitação em um curto espaço de tempo. Intensas precipitações, previstas de ocorrerem mais frequentemente com as mudanças climáticas, podem desencadear processos erosivos intensos. Mas com o solo coberto e as árvores para amortecer o impacto das chuvas, os danos são bem menores. As árvores em sistemas agroflorestais também estão associadas a menor perda de umidade, o que favoreceria as culturas em caso de longos períodos de estiagem. As árvores selecionadas pelos agricultores geralmente possuem raízes profundas e não competem com as plantas de café por água e nutriente. Ao contrário, existem algumas indicações que as árvores podem funcionar como bombas e trazer água do subsolo para a superfície [11,12] (https://revistapesquisa.fapesp.br/pelas-folhas-e-raizes/).

     

    QUINTAIS

    A agricultura familiar é caracterizada também pela presença de toda a família na propriedade e as atividades ao redor da moradia têm impactos positivos sobre o sequestro de carbono (Fig. 2). Isto não é novidade, pois registros na Amazônia mostram que atividades constantes em torno das moradias transformaram os solos em profundidade, a exemplo das terras pretas de índio na Amazônia. Nessas terras as concentrações de carbono e muitos nutrientes são superiores aos solos do redor. O termo "terra preta" é devido à coloração escura que é característica da alta concentração de carbono e principalmente carvão. O carbono e outros nutrientes são oriundos de anos de deposição de restos de alimentos, cinzas e materiais vegetais que os índios utilizavam. Os quintais atuais de agricultores familiares também são muito diversos e locais favoritos para o aporte de compostos e resíduos oriundos da própria biodiversidade e também dos resíduos orgânicos oriundos das residências.

     

     

    Todo esse aporte de resíduos orgânicos contribui para o incremento das concentrações de carbono no solo, que além de contribuir para o sequestro de CO2o, é essencial para a qualidade e saúde do solo. Os solos dos quintais podem apresentar maiores valores de matéria orgânica quando comparados com solos de áreas adjacentes cultivadas com milho e feijão [13].

     

    COMERCIALIZAÇÃO DOS PRODUTOS DA AGRICULTURA FAMILIAR

    A comercialização dos produtos da agricultura familiar também contribui para mitigar os impactos das mudanças climáticas, pois ela ocorre principalmente nos locais onde são produzidos, a exemplo das feiras livres e mercado institucional, como ocorre no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Isso evita que longas distâncias sejam percorridas ocasionando o aumento no uso de combustíveis fósseis no transporte e maior emissão de GEE. Além disso, a agricultura familiar tem ajudado a mitigar os impactos de pandemias, a exemplo do covid-19, em que o distanciamento social foi encorajado. Os agricultores familiares continuaram suas atividades, pois nela não há aglomeração de pessoas e geralmente estão organizados em redes, o que é muito comum entre os agricultores agroecológicos e/ou orgânicos. Muitos consumidores optaram por produtos locais, de mais fácil acesso e de melhor qualidade durante a pandemia de covid-19 para evitar a aglomeração em grandes supermercados.

    O suporte governamental através de políticas públicas, como o Pnae e o PAA, e de crédito para a implementação de sistemas agroflorestais, de apoio à transição agroecológica e produção orgânica são essenciais para o sucesso da agricultura familiar na continuidade da produção de alimentos de qualidade e para a mitigação dos impactos das mudanças climáticas.

    As práticas agrícolas acima citadas não são exclusividades da agricultura familiar, e podem ser utilizadas por outros agricultores. Entretanto, como para a agricultura familiar, a propriedade não é apenas o lugar de produção, mas de viver e criar os filhos, os agricultores e agricultoras estão mais preocupados com a saúde do ambiente, com a produção de alimentos de qualidade e com as gerações futuras. O grande desafio é o engajamento de mais agricultores, familiares ou não, para a importante função de conciliar produção agrícola e cuidado com a natureza.

     

    REFERÊNCIAS

    1. IPCC (2018). "Global Warming of 1.5°C. An IPCC Special Report on the impacts of global warming of 1.5°C above pre-industrial levels and related global greenhouse gas emission pathways, in the context of strengthening the global response to the threat of climate change, sustainable development, and efforts to eradicate poverty" [Masson-Delmotte, V.; Zhai, P.; Pörtner, H. O.; Roberts, J.; Skea, P. R.; Shukla, A.; Pirani, W.; Moufouma-Okia, C.; Péan, R.; Pidcock, S.; Connors, J. B. R.; Matthews, Y.; Chen, X.; Zhou, M. I.; Gomis, E.; Lonnoy, T.; Maycock, M.; Tignor, and T. Waterfield (eds. )].

    2. IBGE. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/agropecuaria/censoagro
    /agri_familiar_2006/familia_censoagro2006.pdf
    . 2006.

    3. Souza, J. L.; Prezotti, L. C.; Guarçoni, M. A.. "Potencial de sequestro de carbono em solos agrícolas sob manejo orgânico para redução da emissão de gases de efeito estufa". Idesia (Arica), 30(1), 7-15. 2012.

    4. Cardoso, I. M.; Muggler, C. C.; Fávero, C.; Mendonça, E.S., Senna, O. T.; Lima, A. C. R.; Casalinho, H. D.; Fernandes, R. B. A.. "Ressignificar nossas percepções sobre o solo: atitude essencial para manejar agroecossistemas sustentáveis". In: Coleção Transição Agroecológica, volume 4: Solos e Agroecologia. Embrapa e Associação Brasileira de Agroecologia, 376 p. 2018.

    5. Oliveira, A. C. C.. "Agroforestry systems with coffee: fixation and neutralization of carbon and other ecosystem services". 141 f. Dissertação (mestrado em agroecologia) -Universidade Federal de Viçosa, MG. 2013.

    6. Duarte, E. M.; Cardoso, I. M.; Stijnen, T.; Mendonça, M. A. F.; Coelho, M. S.; Cantarutti, R. B.... & Mendonça, E. S.. "Decomposition and nutrient release in leaves of Atlantic Rainforest tree species used in agroforestry systems". Agroforestry Systems, 87(4), 835-847. 2013.

    7. Gomes, L.C.; Cardoso, I. M.; de Sá Mendonça, E.; Fernandes, R. B. A.; Lopes, V. S., & Oliveira, T. S.. "Trees modify the dynamics of soil CO2 efflux in coffee agroforestry systems". Agricultural and Forest Meteorology, 224, 30-39. 2016.

    8. Ovalle-Rivera, O.; Läderach, P.; Bunn, C.; Obersteiner, M.; & Schroth, G.. "Projected shifts in Coffea arabica suitability among major global producing regions due to climate change". PloS one, 10(4), e0124155. 2015.

    9. Gomes, L.C.; Bianchi, F. J. J. A.; Cardoso, I. M.; Fernandes, R. B. A.; Fernandes Filho, E. I.; & Schulte, R.P.O.. "Agroforestry systems can mitigate the impacts of climate change on coffee production: A spatially explicit assessment in Brazil". Agriculture, Ecosystems & Environment, 294, 106858. 2020.

    10. de Souza, H. N.; de Goede, R. G.; Brussaard, L.; Cardoso, I. M.; Duarte, E. M.; Fernandes, R. B.; ... & Pulleman, M. M.. "Protective shade, tree diversity and soil properties in coffee agroforestry systems in the Atlantic Rainforest biome". Agriculture, Ecosystems & Environment, 146(1), 179-196. 2012.

    11. Oliveira, R. S.; Dawson, T. E.; Burgess, S. S.; & Nepstad, D. C.. Hydraulic redistribution in three Amazonian trees. Oecologia, 145(3), 354-363. 2005.

    12. Scholz, F. G.; Bucci, S. J.; Goldstein, G., Meinzer, F. C.; & Franco, A. C. Hydraulic redistribution of soil water by neotropical savanna trees. Tree Physiology, 22(9),603-612. 2002.

    13. Oliveira, R.M. "Quintais e uso do solo em propriedades familiares". 2015. 102 f. Dissertação (Mestrado em Solos e Nutrição de Plantas) - Universidade Federal de Viçosa, Viçosa.