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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.73 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2021

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602021000100012 

    CULTURA
    RESENHA

     

    O cérebro no mundo digital

     

     

    Ana Maria Haddad Baptista

     

     

     

    Obra: O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era
    Autora: Maryanne Wolf
    Tradução: Rodolfo Ilari e Mayumi Ilari
    Editora: Contexto
    Ano de publicação: 2019
    Páginas: 256

    A obra O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era (Editora Contexto, 2019) é uma contribuição extremamente significativa para pesquisadores, professores e, na verdade, para todos os públicos, que tenham um interesse mínimo sobre questões que envolvam a leitura e seus processos decorrentes. Incluindo-se o universo digital. O livro se divide em nove cartas dirigidas aos leitores, e cada carta mostra um ponto a ser destacado e pensado a respeito do que Maryanne Wolf busca evidenciar.

    A autora não segue aquele padrão, quase piegas, de usar um vocabulário supostamente mais didático. O texto do livro é forte e firme sem subtrair sua fluidez e sedução. Em suas palavras: "Estas cartas são um convite que faço para considerar um conjunto improvável de fatos referentes à leitura e ao cérebro leitor, cujas implicações vão levar a mudanças cognitivas importantes em você, na próxima geração e possivelmente na nossa espécie" (p.09).

    Maryanne Wolf é uma neurocientista que possui pesquisas importantes que detectam os mecanismos de nosso cérebro no ato da leitura em seus mais diversos suportes. A sua formação humanística, assim como seu percurso enquanto pesquisadora, se traduzem em uma sensibilidade raríssima. O talento equilibrado com o compromisso de atingir os objetivos propostos na obra. Uma pesquisadora que defende questões de leitura e alfabetização em diversos países do mundo, atualmente é diretora do Center for Dyslexia, Diverse Learners, and Social Justice na UCLA (Universidade da Califórnia) e professora da Tufts University.

    Um ponto de destaque da primeira carta é um alerta fundamentado a respeito do processo de leitura. "Cada mídia de leitura favorece certos processos cognitivos em detrimento de outros" (p.16). Eis uma questão instigante. Em outras palavras: a leitura digital em seus mais variados suportes provoca efeitos diferentes em relação à leitura impressa. Ou seja, em que medida a leitura digital compromete os aspectos cognitivos da humanidade? Será, a autora nos indaga, que a frequência diária de leitura das mídias digitais não estaria impedindo os processos cognitivos mais demorados como "o pensamento crítico, a reflexão pessoal, a imaginação e a empatia da leitura profunda?" (p.17).

    Contudo, a autora adverte, felizmente, que não é contra a leitura realizada por meio de tablets e outros suportes digitais. Pelo contrário, tem incentivado tal tipo de leitura. No entanto, busca um caminho viável para que os leitores consigam ler em qualquer mídia, mas que alcancem a profundidade exigida pela leitura do impresso.

    Cabe observar que as cartas, endereçadas a nós leitores, são atravessadas por poemas e citações de grandes nomes da literatura universal que dão ao livro um tom bastante especial. Aquele tom ensaístico em que o autor pode, realmente, esbanjar criatividade e inventividade sem qualquer prejuízo do ponto de vista conceitual. Nessa medida, o livro não somente oferece conceitos importantes, mas uma rica bibliografia, em termos de literatura, para que possamos usufruir. Lembrando, na esteira de Deleuze, de que a literatura, assim como a filosofia e as ciências, também cria conceitos. A literatura não nasceu para ser citada, apenas, como mera epígrafe de ensaios ou registros mais "acadêmicos". A literatura produz conceitos importantes. Vamos lembrar, inclusive, que Freud, somente para ficarmos com um exemplo, se valeu, veementemente, da literatura para construir seus conceitos mais profundos a respeito da psicologia e da psicanálise.

    Um aspecto de suma importância que se pode destacar da segunda carta e que a deixa perplexa não são "as múltiplas funções sofisticadas do cérebro, mas a sua capacidade de ir além de suas funções originais (que recebemos como parte de nosso equipamento biológico) - como a visão e a linguagem - para desenvolver capacidades totalmente desconhecidas, como as de ler e de lidar com números" (p.26). Isto é, prossegue a autora, o cérebro humano possui uma plasticidade incrível que, desta forma, realoca suas funções mais antigas e adquire novas funções que se desdobram. Ou seja: o cérebro tem a capacidade, constante, de aprender coisas novas a todo momento. A autora destaca que ler é um processo que deve ser aprendido. A capacidade de ler não é inata no homem.

    Na terceira carta o que merece a nossa atenção - redobrada - é a ênfase que a autora dá aos aspectos cognitivos operados pelo cérebro humano que conduzem ao pensamento profundo quando estamos lendo. Ou seja, a leitura é um ato muito mais importante para o pensamento do que se possa imaginar. Existem "camadas cognitivas sob a superfície das palavras que nos convidam a descobrir pensamentos que não podem ser vislumbrados em nenhum outro lugar" (p.53). E justamente neste ponto a pesquisadora norte-americana entra no cerne da questão da obra: em que medida a leitura por meio de tablets e outros meios digitais não estaria subtraindo, em diversos graus, a atenção, qualitativa, que a leitura impressa exige?

    Na terceira carta existe um outro ponto essencial apontado por Maryanne Wolf: somente a leitura profunda, como convoca a impressa, sem os desvios que, muitas vezes a leitura digital provoca, possibilita colocar-se no lugar do outro. Sentir-se mais próximo das situações existenciais propostas em romances e outros registros textuais. Transportar os leitores para fora de si mesmos. E que ao retornarem se sintam renovados, acrescidos de novas formas de se ler o mundo que os rodeia. Tal dimensão indicada pela autora é o ponto chave para a compreensão de um mundo que vai além do nosso.

    A autora chama também a atenção para os aspectos mais ligados aos cognitivos. Elucida a importância dos processos de análise conduzidos pela leitura profunda. Para que o ser humano chegue a hipóteses e conceitos ele usa "processos cognitivos mais sofisticados que mobilizamos durante a leitura profunda" (p.72).

    Na quarta carta a autora nos alerta sobre as leituras digitais em todos os níveis e graus. Nessa medida, nos coloca a par de estudos bastante recentes que denunciam o quanto somos distraídos pelas mais variadas fontes de mídia. Com isso a qualidade de nossa atenção teve um sério prejuízo. "Enquanto sociedade, somos continuamente distraídos por nosso ambiente, o que nossos circuitos de hominídeos favorece e incentiva. Não vemos ou ouvimos com a mesma qualidade de atenção, porque vemos e ouvimos demais, nos acostumamos e pedimos mais" (p.89). Estaria aí o grande perigo!

    A quinta carta nos coloca, entre outros pontos, em que medida "os circuitos de leitura ainda não formados no jovem, defrontam-nos com desafios singulares e com um conjunto complexo de questões: em primeiro lugar, os primeiros componentes cognitivos no circuito de leitura que se desenvolverem serão alterados pela mídia digital, antes, durante e depois que as crianças aprenderem a ler? Em particular, o que acontecerá com o desenvolvimento de sua atenção, memória e conhecimento de fundo - processos que sabemos serem afetados nos adultos pelas multitarefas, pela rapidez e pela distração? Em segundo lugar, supondo que sejam afetados, as mudanças irão alterar a configuração dos circuitos de leitura experiente resultantes e/ ou a motivação para formar e sustentar capacidades de leitura profunda?" (p.127-128). Neste momento do livro a autora toca num ponto bastante frágil para que possamos pensar numa estratégia de manutenção de um equilíbrio entre as diferentes mídias, cujos efeitos são negativos, sobre a leitura, todavia, sem perder as contribuições de ambas. Um dos maiores desafios propostos pela leitura da obra em referência.

    Na sexta carta são colocados alguns resultados de pesquisas, efetivas e de diversos continentes do mundo, em que se constatam que a leitura de livros para as crianças é útil para a formação do futuro leitor, embora nada possa garantir nada. Na verdade, declara a autora, estamos num momento de transição, ou seja, do impresso para o digital. E não podemos desconsiderar a coexistência dos dois registros. Tudo deve ser visto com muito cuidado, apreensão e de forma crítica. Maryanne Wolf não deixa de considerar que os diferentes contextos, no caso das crianças e jovens, devem ser analisados severamente.

    A sétima carta traz uma pesquisa quase alarmante em relação aos Estados Unidos. A autora denuncia, de acordo com indicadores nacionais e internacionais, o quanto as crianças americanas estão defasadas em seus desempenhos no que se refere a questões de leitura (velocidade e compreensão de texto), se comparadas com as crianças de outros países ocidentais e orientais. "Mais perturbador ainda, cerca de metade de nossas crianças afro-americanas ou latinas, no quarto ano, não alcança um nível 'básico' de leitura, muito menos proficiente. Isso significa que não decodificam suficientemente bem para entender o que estão lendo, o que vai impactar quase tudo que deveriam aprender em seguida, incluindo a matemática e outros assuntos" (p.177). Sugere, com veemência, o quanto as políticas públicas norte-americanas deveriam investir muito mais na área educacional. Enfatiza, inclusive, a formação dos professores. E, em especial, investimentos focados nos primeiros anos escolares dos estudantes norte-americanos.

    A oitava carta conduz à necessidade do futuro circuito de leitura ter como base a compreensão dos limites e das diversas possibilidades que o letramento e as bases do digital deverão proporcionar. Coloca-nos, também, a necessidade, já observada há décadas, diga-se de passagem, de uma educação que integre, de forma efetiva, diversas áreas do conhecimento. Nenhuma disciplina, afirma a autora, conseguirá, isoladamente, proporcionar a abrangência de um universo cheio de desafios. Em seguida a autora faz propostas mais efetivas que contemplam um equilíbrio entre o registro digital e o impresso, além de propostas curriculares, nas quais ela acredita, que poderiam atenuar as deficiências de escolarização.

    Finalmente, na nona carta, a autora faz uma belíssima reflexão, na esteira de Heidegger, sobre o possível perigo de uma "ingenuidade tecnológica". Em outras palavras: o perigo de deixarmos de lado o pensamento meditativo visto que os suportes digitais exigem uma velocidade que deixa de lado o aspecto qualitativo de nossas leituras. Na verdade, conclui a autora, entre outras coisas, a leitura profunda exige uma atenção que transita entre o meditativo e o contemplativo. Precisamos ficar sempre atentos a posturas equilibradas. Não deixar de lado os benefícios da leitura digital. Mas, em especial, não ignorarmos que a leitura impressa é de suma importância para o pensamento crítico e também para a educação de nossas sensibilidades.