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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.73 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2021

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602021000100013 

    CULTURA
    PROSA

     

    Atrás do "art nouveau"

     

     

    Mariella Augusta

    Bacharel em direito, mestre e doutora em literatura brasileira e portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), possui pós-doutorado em teoria literária pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp). Atualmente desenvolve pesquisa em literatura inglesa (teatro) na FFLCH-USP. Colaborou com a Folha de S. Paulo. Desenvolve trabalhos interartísticos em teatros e centro culturais. O conto "Atrás do art nouveau" foi reescrito do livro O fio de Cloto (Editora Ícone, 2004)

     

     

    Atrás de minha casa morava uma sombra. Era uma grande casa esparramando-se em janelas por todos os lados, tingida por um branco cuja castidade perdera-se toda na expressão mortuária do verde e do cinza que o pincel dos dias escorria pelo seu corpo.

    Lá fora, diferentes níveis surpreendiam perspectivas onde cresciam murtas e ciprestes que, mesmo acanhados pela decadência de duas gerações, cobriam de frescura solene aquele lugar onde o início do século vinte congelara sua competência de ser agradável; onde qualquer um se abandonaria, esquecido pela urgência e pela vida.

    Atrás dessa casa morava uma sombra. Quando o dia morria nos confins da escuridão, ela aparecia. Vinha da fartura das tumbas e do fogo da cruz para atravessar, com seu passo ofídio, os umbrais dos que em sua vida dormiam. Levando na carne a cor agourenta da noite, andava sem fim, sem tropeços, num caminhar atrevido, circense.

    Todas as noites a esperava a fim de vê-la passar e passar e passar. Acreditava que dividíamos a agonia da noite sem destino, quando ela apenas ia se depositando na minha vida inteira - como os abismos que a consciência inscreve no corpo - inoculando, nos meus nervos, sem querer, o veneno que eu chamaria para sempre de amor.

    Não era com coragem que eu ficava, mas com o risco calculado dos heróis e dos egoístas que querem todas os brinquedos da caixa. Como os vagabundos que moram na rua, arrisqueime naquele pacto insalubre com a noite, já nas primeiras horas da vida, quando ainda não existiam os prejuízos da verdade.

    Ficava pelo fantasma, que vivendo entre chacais e leões, na beira do horror, movia-se leve em sua calada peregrinação - leve como a lua suspensa no céu e a infinidade de estrelas pronta para cair.

    E se nunca me feriu, tampouco gozamos de qualquer estima. Poderia inventar uma memória com o calor e as dimensões de então. Mas, como ninguém há para testemunhar o passado, devo confessar que sua notável presença apenas desconsiderava a minha intromissão. Eu a admirava e ela era o objeto. Casamento morganático. Amor verde que eu tencionava sazonado.

    Ainda posso me lembrar da primeira vez que minha fantasmagórica hóspede se voltou para mim. Protegida pelo compacto art nouveau de minha janela, e pelo choro de minha mãe assombrando o quarto ao lado, ousei acender a luz. Sem forma, sem susto ou ímpeto, ela se virou; talvez por simples respeito àquela que se lhe faltasse não teria vida a minha sombra. Não me arrastou em sua caçada, não transfigurou meu rosto e nem reconheceu a minha cara emotiva. Ainda assim, esbocei um sinal. Iria com ela até as profundezas donde se agitara - a tola submissão dos que amam. Nunca mais o fiz. Compreendi sua discrição. Estava diante de um voo, sem rede, sem pouso, convicto como os justos, mostrando que, ali, solidão não equivaleria jamais a sofrimento.

    Noites havia em que sua liberdade a furtava de mim. Em muitas dessas passagens de abandono, ouvi aqueles gritos atormentados, disformes, variados, soltos, verdadeiros. Gritos tão agudos que em sua rápida travessia cortavam o ar brilhando e doendo. Os mesmos gritos que me levaram até a sua máscara medieval desaparecida entre os vãos obsedados por um gozo sem sintomas.

    Mesmo que tivesse alguém a quem contar naqueles dias, não poderia - tampouco posso agora. Contudo, desde que o tempo me trancou em casa, e foi desenhar nas cinzas as minhas memórias, peguei-me escavando gavetas. E como o homem é o hábito, ainda anoto o estrato, a dureza e o padrão da gema, só que não me ocupo mais dos juízos, do futuro e da felicidade. Sou agora livre como livres são as crianças com seus sóis azuis e suas luas negras.

    Foram aquelas noites de vigília que autorizaram o absurdo, tornando toda escolha um enigma, sacudindo a terra sob a metafísica dos meus pés com medo de altura. Noites às quais sempre volto, buscando reaver o sinais daquela besta que, embora despertasse os medos mais ancestrais, parecia trazer alguma ordem à casa deixada pelo pai que passeava nos infernos.

    Por mais austera que seja a necessidade, o amor reinventa o tempo - ainda mais aquele que corria no escuro. Portanto, não posso precisá-lo. Sei que se desprendeu de nossas vidas como dinheiro daquele que deve; que correu para o nada, enquanto estive imóvel, noite através de noite; acorrentada àquele estranho encontro. Anêmica, trêmula, sentenciada à sucumbência. Cala-se quando se descobre menor. O amor é esse entendimento.

    Pavorosamente, um dia, exibida ao sol, estava a minha sombra. Os olhos estrangulados, a pele coberta por veste hirsuta, o sangue seco em sua boca arregalada. Materializada pelo toque obsceno da morte. Trazida a meu testemunho, nua, desmascarada. Vendo-a assim, tão improvável, compreendi que a melhor maneira de amar era de lá mesmo, por detrás da janela.