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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.74 no.1 São Paulo jan./mar. 2022

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220002 

    ARTIGOS

     

    A longa viagem da ideia de Independência: de fins do período colonial aos inícios de 1822. Ou as Independências que a "Independência do Brasil" sepultou.

     

     

    Luiz Carlos Villalta

    Professor titular do Departamento de História da UFMG, titular da Cátedra Unesco-UFMG/DRI "Territorialidades e Humanidades: a Globalização das Luzes", bolsista de produtividade do CNPq e bolsista do Programa do Pesquisador

     

     


    RESUMO

    Este artigo aborda ideias de Independência ou de uma nova ordem pós-absolutismo construídas na América Portuguesa, entre 1788 e inícios de 1822, antes que a Independência tivesse começado a ganhar a forma que se tornou vencedora, com a chamada "Independência do Brasil". Aborda também as principais referências intelectuais e políticas dessas ideias, seus modelos de inspiração, as articulações entre presente e passado e futuro que as balizaram.

    Palavras-chave: independência do Brasil; bicentenário; história do Brasil


     

     

    Às vésperas das comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil, é importante repensar o sentido que damos a esta palavra. Uma boa oportunidade para tanto consiste justamente em analisar como essa ideia foi construída antes de desembocar na Independência, nos anos 1822 e 1823.

    O ponto de partida é necessariamente afastar-se de incorrer em certos erros. O primeiro deles é pensar que o Brasil, como país ou como nação, existia antes de se tornar independente. Com efeito, de inícios do século XVII até 1774, Brasil era apenas uma porção da América portuguesa, da qual não fazia parte o Estado do Grão-Pará ou Maranhão. Além disso, as capitanias existentes no período colonial não tinham a menor unidade entre si, pois se ligavam diretamente a Lisboa, sem se submeter a um governo central que, de fato, as reunisse e comandasse. Os habitantes da América portuguesa, sobretudo os de ancestralidade europeia, ademais, viam-se como portugueses. Reconheciam-se, é verdade, a partir de identidades locais (de pernambucanos, baianos, paraenses, fluminenses, etc.) e de uma identidade mais ampla do ponto de vista geográfico, mas muito fugidia: a de "portugueses da América", "americanos", "brasilienses" ou "brasileiros".

    O segundo erro a ser evitado, derivado do primeiro, é imaginar que, à época da emancipação política, a Independência fosse concebida de uma única maneira, de uma mesma forma, do modo como ela foi efetivada. Em sua efetivação, sabe-se, venceu um projeto monárquico, capitaneado por D. Pedro, o príncipe herdeiro da coroa de Portugal, com apoio e, até mesmo, estímulo, de setores das elites do Centro-Sul do Brasil: uma Independência que traduzia uma visão de soberania compartilhada (entre a nação e o príncipe), uma dificuldade de ruptura com a metrópole, que ajustava o ideal de uma ordem constitucional à manutenção das fronteiras do então Reino do Brasil sob o controle de um governo centralizado (e centralista) no Rio de Janeiro, sem provocar qualquer abalo na ordem social e econômica. À época, havia compreensões diferentes sobre como seria o futuro país independente, o que envolvia distintas posições sobre quais territórios do então Reino do Brasil fariam parte do novo país, sobre como esses territórios estariam articulados entre si, e, até mesmo, sobre qual seria o regime político a ser adotado. Isso se evidencia na "Falla", um discurso, de José Clemente Pereira, presidente do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, dirigida a D. Pedro, então Príncipe Regente do Reino do Brasil, por ocasião do Dia do Fico, 9 de janeiro de 1822, de forma a pressioná-lo a aqui permanecer, não partindo de volta para Lisboa. Havia na época, inclusive, uma discussão sobre se haveria ou não continuidade de instituições existentes anteriormente; a mais importante delas, a escravidão, contudo, era objeto de poucos questionamentos, ainda que seu fim tenha levado alguns atores políticos à ação.

     

    O surgimento da ideia de Independência

    No Brasil, a ideia de Independência nasceu em fins do século XVIII. Ela não teve, desde o seu aparecimento, um sentido unívoco. Entre fins do período colonial e os inícios de 1822, ademais, ela implicou um horizonte geográfico diverso e significados bastante específicos, como já salientado.

    No Brasil, a ideia de Independência não teve, desde o seu aparecimento, um sentido unívoco. Entre fins do período colonial e os inícios de 1822, ela implicou um horizonte geográfico diverso e significados bastante específicos

    Nicolau de Campos Vergueiro, em 18 de abril de 1822, foi um personagem que bem sintetizou a emergência da ideia de Independência, suas idas e vindas, bem como seus desafios. À época, ele era deputado por São Paulo na Assembleia Constituinte instaurada em Lisboa como resultado do sucesso da Revolução de 24 de agosto de 1820. Essa revolução, iniciada na cidade do Porto, em Portugal, tornou-se objeto de grande entusiasmo e adesão nas várias capitanias do Brasil, em 1821. A Revolução do Porto, de fato, fez com que aqui se sonhasse com a instauração de uma ordem regida por uma Constituição e, igualmente, uma organização política em que as capitanias, transformadas em províncias, não se vissem sufocadas por um governo central, que, desde 1808, estava sediado no Rio de Janeiro.

    Segundo Vergueiro, a ideia de emancipação política surgiu no Brasil com a Independência dos Estados Unidos da América, em 1776. Mas ela retrocedeu quando se deu a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, na passagem de 1807 para 1808. O entusiasmo com a unidade em torno da monarquia portuguesa, porém, não durou muito tempo, pois o governo estabelecido no Rio de Janeiro desagradou as capitanias com seus erros. Então, ocorreu a Revolução de 1817. De acordo com Vergueiro, a derrota da Revolução, vencida pelas forças leais a D. João, que governava do Rio de Janeiro, não fez a ideia de Independência desaparecer de todo - porém, a eclosão da Revolução do Porto acabou fazendo com que ela fosse deixada de lado.

    Entretanto, quando Vergueiro se pronunciou, em abril de 1822, a ideia de Independência voltava a ser cultivada. Ele mesmo explicava, de algum modo, os porquês disso: segundo esse deputado por São Paulo, o Brasil seguiria o rumo da Independência caso Portugal o desrespeitasse. Vergueiro acrescentava que isso se daria mesmo sob o risco de haver cá uma "guerra civil" e, ademais, "apesar dos negros". Esse último condicionante nos induz a pensar em duas possibilidades como sendo antevistas por Vergueiro: primeiramente, a de ocorrer uma insurgência dos escravos, o que seria um perigo, e, em segundo lugar, o fato de não se saber como lidar com os negros numa situação de Independência, se eles seriam ou não partícipes da nova ordem política.

    Esse final da fala de Vergueiro denota três situações muito importantes. Primeiramente, mostra que a Independência ganhou impulso sob uma situação que foi entendida por muitos da época como de desrespeito do Brasil por Portugal. Em segundo lugar, sugere que havia, no Reino do Brasil e/ou em Portugal, gentes contrárias à ruptura da unidade entre Portugal e Brasil (afinal, Vergueiro usou a expressão "guerra civil"). Em terceiro lugar, havia, aos olhos de Vergueiro, um incômodo referente aos escravos, sobre como eles poderiam agir em meio às lutas pela Independência ou sobre o que se poderia conceber como lugar deles numa nova ordem política surgida a partir da ruptura com Portugal. Tudo isso mostra que, além de contar com opositores, a Independência fomentava concepções diversas.

     

    As ideias de Independência nas Inconfidências de Minas (1788-9) e da Bahia (1793-1798)

    Como bem percebeu Vergueiro, a ideia de Independência era anterior ao momento de seu pronunciamento, ocorrido em 1822. Esmiuçar o que se deu antes de 1822 é crucial para ser perceber a amplitude semântica da Independência.

    É possível pensar que a Inconfidência Mineira tenha sido uma primeira manifestação de sua emergência. A Inconfidência, uma conspiração abortada - ou seja, uma conspiração que não se transformou em rebelião - teve lugar em 1788-1789. Seus protagonistas foram homens importantes de Minas Gerais, por sua condição econômica, por sua estatura intelectual e por sua atuação política, religiosa ou militar. Os Inconfidentes eram, enfim, homens das elites. Eles estavam insatisfeitos com o governo da rainha D. Maria I e dos governadores de Minas, Luís da Cunha Menezes (1783-1887) e Visconde de Barbacena (1788-1797). Como ensina Kenneth Maxwell, a rainha e os governadores promoveram uma política de afastamento de membros das elites locais de postos de comando e de oportunidades, lícitas e ilícitas, de obtenção de ganhos econômicos. A rede de contrabando de ouro e diamantes em que estiveram envolvidos vários Inconfidentes foi um dos objetos de ataque da coroa e dos governadores (Menezes a colocou a seu serviço).

    Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, em vários pronunciamentos, explicitou o descontentamento dos Inconfidentes com as medidas governamentais. Ele dizia que os naturais da colônia que tinham origem europeia (nos termos da época, os mazombos) também sabiam governar, ou seja, deveriam participar do governo (e não ser alijados dele, como se estava fazendo). Ele clamava contra a exploração colonial, denunciando o monopólio comercial metropolitano e os tributos excessivos como mecanismos que carreavam a riqueza de Minas Gerais para fora. Com isso, Minas Gerais, uma capitania rica, ficava pobre. Ele dizia, ainda, que a derrama abriria a possibilidade de ocorrer uma rebelião contra essa situação. A derrama era a medida que se tomava quando o quinto do outro, devido pelos mineradores, não atingia 100 arrobas anuais: com ela, mesmo aqueles que não eram mineradores eram obrigados a completar a arrecadação dos quintos até atingir-se a quantia de 100 arrobas. O governador de Minas, Visconde de Barbacena, suspendeu a derrama e, com isso, a oportunidade de rebelião se perdeu.

    Mas, afinal, Tiradentes e os demais inconfidentes (isto é, conspiradores) falavam de Independência? A Independência com que eles sonhavam alcançaria toda a América Portuguesa, isso que hoje chamamos de Brasil? Em que movimentos os conspiradores se inspiravam? Eles tocavam na questão dos negros, como faria mais tarde o deputado Nicolau de Campos Vergueiro? Que Independência, enfim, seria a sonhada por eles?

    Entre os historiadores, há quem ponha em dúvida que os Inconfidentes quisessem, de fato, uma ruptura com Portugal, como é o caso de João P. Furtado. É certo que eles, como declararia Vergueiro em 1822, queriam uma outra relação entre colônia e metrópole. Como se mostrou acima, Tiradentes era crítico do monopólio comercial e do arrocho tributário. Os Inconfidentes claramente queriam pôr fim a essa situação. Sonhavam com o regime de livre-comércio e com menos impostos. Desejavam também participar do governo. Pronunciaram-se frequentemente a favor da instalação de uma República. Os horizontes geográficos dela, porém, não compreendiam todo o Brasil: ela, na melhor das hipóteses, envolveria Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. No movimento, houve a participação de pessoas originárias de Taubaté, vila da capitania de São Paulo. Tiradentes, além disso, vivia a movimentar-se pelo Rio de Janeiro. Se havia a ideia de república circunscrita à parte do território do que hoje chamamos de Brasil, entre os Inconfidentes existiram falas que mostram que, ao menos alguns deles, ficariam bem satisfeitos com uma situação em que a sede da monarquia portuguesa fosse o Rio de Janeiro. O cônego Luiz Vieira da Silva e o poeta e ex-magistrado Inácio José de Alvarenga Peixoto claramente propuseram algo nesse sentido: ambos defendendo a transferência da corte para o Rio de Janeiro (o que sucederia em 1808); Vieira advertindo que, caso viesse para cá um príncipe português, corria-se o risco de vê-lo ser aclamado como rei (como se daria em 1822, com o príncipe D. Pedro, tornado imperador do Brasil). Isso sugere que, mais do que Independência, os Inconfidentes almejavam uma situação em que o Brasil não estivesse na periferia da monarquia portuguesa, mas no seu centro, inexistindo uma situação de inferioridade. Não por acaso, os Inconfidentes, ao desenharem a nova ordem pós-Independência, defendiam a criação de uma Universidade em Vila Rica, a liberdade para instalação de fábricas e medidas para impulsionar outras atividades econômicas na Capitania.

    Outro ponto importante diz respeito aos escravos. Os Inconfidentes não propuseram a abolição como muitos mistificadores insistem em sustentar. Eles discutiram apenas a possibilidade de dar alforria para parte dos escravos, a saber, os mulatos e os chamados crioulos (isto é, os escravos nascidos no Brasil). Cogitaram tal possibilidade apenas tendo em vista o enfrentamento de tropas vindas porventura de Portugal. Houve, entretanto, discordância sobre este ponto e, então, os Inconfidentes abandonaram a ideia de alforria para parte dos escravos. De todo esse balanço, fica claro que os Inconfidentes queriam, sim, maior autonomia para Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, navegando entre a ideia de instalar-se uma república nessas capitanias ou de ver o Brasil como sede da monarquia portuguesa, com a corte sendo estabelecida no Rio de Janeiro e/ou com uma Independência liderada por um príncipe lusitano. Os Inconfidentes tocaram na questão dos escravos, sem tomar uma posição sobre ela e, ainda, debateram o problema de uma guerra eventual.

     

     

    Os conspiradores de Minas Gerais inspiraram-se em dois movimentos de Independência: o da Restauração de 1640, por meio do qual Portugal readquiriu sua Independência, em relação à Espanha, e, ainda, a Revolução Americana de 1776. Eles, além disso, moveram-se por princípios políticos consagrados no mundo luso-brasileiro, que definiam que era legítimo voltar-se contra governos tirânicos, princípios esses vindos das teorias corporativas de poder da Segunda Escolástica. A tais princípios, somaram-se outros, com eles convergentes, oriundos das Luzes, o Iluminismo, movimento multifacetado de ideias que, originado na Holanda e na Inglaterra, veio a ter um grande lugar na França, enredando toda a Europa e as Américas e, com isso, contribuindo para sacudir a ordem, ao colocar-se em defesa da "felicidade", da "igualdade" e da "liberdade" e ao fazer críticas aos "despotismos" e aos traços básicos da colonização europeia.

    Numa outra conspiração abortada, tramada entre 1793 e 1798, na cidade da Bahia, com ramificações no Recôncavo, percebe-se também uma ideia de Independência: trata-se da famosa Conspiração dos Alfaiates ou Inconfidência da Bahia. O perfil dos envolvidos no movimento é bastante discutido, desde a época colonial até hoje. Autoridades da época, dentre elas o governador da Bahia, D. Fernando Portugal e Castro, e a própria defesa dos réus, sustentaram que apenas pessoas dos estratos inferiores da sociedade soteropolitana participaram do movimento. Alguns historiadores, como Kátia Mattoso, afastam a possibilidade de participação de membros das elites. Outros, porém, como Luís Henrique Dias Tavares e István Jancsó, sustentam o contrário, afirmando que, em algum momento, houve confluência entre membros das elites e estratos inferiores em torno de um projeto de rebelião.

    É indubitável que a ideia de Independência, explicitada por alguns conspiradores da Bahia, trouxe novidades relevantes em relação ao observado na Inconfidência de Minas Gerais. Antes de tocar nessas novidades, todavia, convém sublinhar pontos de convergência entre os dois movimentos no que dizia respeito à ideia de Independência: a defesa do livre-cambismo, a proposição de instalar-se uma república, a circunscrição geográfica limitada dessa república sonhada (restrita à capitania da Bahia, na melhor das hipóteses) e o enfoque da questão escrava, sem se postular a abolição da escravidão. Com efeito, no que diz respeito a este último ponto, na Bahia, viram-se pronunciamentos críticos à escravidão e até situações em que se defendeu que escravos virassem senhores e senhores, inversamente, se tornassem escravos, ou em que se repugnava a escravidão. Tais pronunciamentos foram feitos mais precisamente por João de Deus, um pardo forro, que vestia roupas consideradas estranhas e dizia serem elas francesas, acrescentando que tudo na Bahia se tornaria francês. Em termos de diferenças em relação à Inconfidência Mineira quanto à ideia de Independência, o ponto principal consiste na defesa de uma igualdade entre pessoas das diferentes cores, pondo fim à desigualdade jurídica então existente, algo típico de uma sociedade de natureza estamental. Outra novidade está na própria república desenhada pelos baianos: ao contrário do sucedido em Minas, não houve entre eles, mesmo por parte de alguns, a defesa de uma monarquia, nem muito menos de manutenção da unidade com Portugal sob um governo sediado no Brasil. Falou-se explicitamente em "república democrática".

    O ponto principal consiste na defesa de uma igualdade entre pessoas das diferentes cores, pondo fim à desigualdade jurídica então existente, algo típico de uma sociedade de natureza estamental.

    A fonte de inspiração por trás da ideia de Independência compartilhada pelos conspiradores da Bahia era a França revolucionária, com suas bandeiras de liberdade e igualdade. Tais ideias de liberdade e igualdade também vinham do pensamento das Luzes: no caso, menos de obras de grande reputação e mais de textos produzidos sob o calor da Revolução. Na república democrática por eles sonhada, fundada na igualdade e na liberdade, na ideia de que todos os homens eram iguais e portadores das mesmas necessidades, não importando se "rudes" ou "polidos", o mérito definiria o acesso à liderança. Esse elemento com certeza vem do pensamento das Luzes. Outro aspecto muito relevante foi a articulação efetivada com um comandante francês, que passou pela cidade entre fins de 1796 e inícios de 1797, Antoine René Larcher, em torno de um possível apoio do governo francês à república baiana (a articulação, porém, não teve boa acolhida por parte do Diretório, na França).

     

    A Revolução de 1817: antes de 1822-23, 75 dias de Independência

    As Inconfidências de Minas Gerais e da Bahia não saíram do plano das ideias. A Revolução de 1817, pelo contrário, materializou-se numa República independente, que durou 75 dias.

    Essa República independente ancorou-se nas tradições presentes no Nordeste desde o século XVII, particularmente em Pernambuco, com destaque para a ideia de que os naturais da terra foram fundamentais para restituir a região ao domínio português, com muito pouco apoio da coroa. Inspirou-se também nas Revoluções Americana, Francesa e, de certo modo, mais residualmente, haitiana (que era bastante assustadora para as classes proprietárias, visto que implicou a assunção de protagonismo por escravos). Da França, com certeza, veio a maior inspiração, definida pelo formato de governo escolhido pelos revolucionários: o do Diretório francês, composto por cinco membros. Fundamentais para a eclosão do movimento foram, de um lado, a ação da maçonaria e, de outro, os danos provocados pelo governo do Rio de Janeiro aos interesses do Nordeste, aumentando as taxas aduaneiras cobradas sobre produtos locais de exportação ou instituindo impostos impopulares, como de iluminação pública, que servia para atender à Corte, não às vilas e cidades da região.

    A Revolução de 1817 eclodiu em Recife, no dia 6 de março, alastrando-se por toda a capitania de Pernambuco, incluindo até a então comarca pernambucana de Alagoas, a Paraíba, o Rio Grande do Norte e parte do Ceará. Na Bahia, o padre Roma, enviado para conseguir sua adesão à Revolução, foi executado pelo governador, Conde dos Arcos. Em termos sociais, tratou-se de um movimento que congregou membros das elites locais, agrícolas e comerciais, das camadas médias e, ainda, dos estratos sociais inferiores, até mesmo escravos. A participação de alguns escravos, com certeza, fomentou temores por parte das elites.

    O governo revolucionário assumiu, com muita honra, a defesa do ideal da abolição da escravidão, conciliando-o, porém, com o do respeito à propriedade e, ainda, definindo que se trataria de algo a ser realizado de modo lento e legal. O mesmo governo fixou uma Lei Orgânica e convocou uma Constituinte. Estabeleceu a liberdade de imprensa e liberdade religiosa (restrita às religiões cristãs).

    A ideia de Independência da Revolução de 1817, portanto, passava por uma configuração geográfica que não coincidia com a do então Reino do Brasil, circunscrevendo-se a parte do atual Nordeste. Ela, como se viu, envolvia a instituição de uma República, a proposta de abolição da escravidão, o ideal de uma ordem constitucional e de liberdades preciosas, como as de imprensa e credo. Esta Revolução foi derrotada pelas forças favoráveis a D. João, provenientes de Lisboa, do Rio de Janeiro e da Bahia.

     

    Após a Revolução do Porto e antes da Independência (1821): um projeto esquecido

    Nos dias 11 e 13 de dezembro de 1821, a Gazeta do Rio de Janeiro, por ordem de D. Pedro, publicou "Lembranças e Apontamentos Governo Provisório para os Senhores Deputados da Província de S. Paulo". Trata-se de um documento elaborado pelo governo de São Paulo, a partir de contribuições de diferentes câmaras municipais e que continha "seus votos a seus deputados" nas Cortes Constituintes, estabelecidas em Lisboa depois da Revolução do Porto. Não se vê no documento propriamente a ideia de Independência, mas uma proposta para que os Reinos de Portugal e Algarves, de um lado, e Brasil, de outro, ficassem em condições de paridade, situação que, como se viu no pronunciamento de Nicolau Vergueiro, não sendo respeitada, poderia levar à emancipação do Brasil.

    O documento defende que as Cortes Constituintes aprovassem algumas medidas visando consolidar "os laços indissolúveis, que hão de prender as diferentes partes da Monarquia em ambos os Hemisférios" (isto é, Brasil e Portugal). Uma dessas medidas referia-se a um assunto então polêmico, a localização da sede da monarquia. Sobre isso, segundo o documento, haveria três possibilidades: primeiramente, que ela ficasse no Reino do Brasil; a segunda, que a sede de monarquia fosse, num reinado, num lado do Atlântico português e, no seguinte, no outro lado; e a terceira, claramente a predileta do documento, segundo o qual a sede alternaria, dentro de um mesmo reinado, num e noutro Reino. O documento propõe a criação de um conselho de Estado, com igual número de membros para o Reino de Portugal e os Estados Ultramarinos; e a existência um governo central no Brasil, ao qual estariam submetidos todos os governos provinciais. Estabelece que, quando a sede da Monarquia e das Cortes não estivesse no Brasil, a regência deste Reino deveria ser presidida pelo "Príncipe Hereditário da Coroa".

    As Cortes, ao redigirem o Código Civil e Criminal, ainda precisaram estabelecer diferenças entre os dois lados do Atlântico, considerando "a diversidade de circunstâncias do clima e estado da Povoação, composta no Brasil de classes de diversas cores e de pessoas, umas livres e outras escravas, pois estas considerações e circunstâncias exigem uma Legislação Civil particular". Tal proposta ecoava princípios de Montesquieu, pensador das Luzes, sobre o "espírito das leis" e visava resolver o problema do Brasil, em que imperava a escravidão. O projeto defendia a criação de colégios e, também, a instalação de uma Universidade na cidade de São Paulo. Por fim, devem ser citadas duas propostas, que surpreendem por sua atualidade. A primeira diz respeito à edificação de uma nova cidade "para assento da Corte ou da Regência", em área central do Brasil. A segundo refere-se à uma espécie de reforma agrária, prevendo, de um lado, o controle da propriedade da terra (que, à época, para ser legal, dependia de uma concessão feita em última instância pelo rei, chamada sesmaria), de sorte a exigir que fossem produtivas e, ainda, a angariar recursos para favorecer a "colonização de europeus pobres, índios, mulatos e negros forros, a quem se dará de Sesmaria pequenas porções de terreno para o cultivarem e se estabelecerem".

    A referida proposta não foi bem recebida pelas Cortes Constituintes e, quando da Independência do Brasil, foi esquecida.

     

    Considerações finais e para além de 1822

    A Independência tal como ela se deu, como se efetivou nos anos 1822 e 1823, não contemplou exatamente o que se cogitou como Independência antes desses anos. Este texto procurou mostrar justamente que nossa Independência correspondeu a uma certa ideia de emancipação. Procurou evidenciar que ela tem conexões tênues com o que alguns Inconfidentes mineiros propuseram (uma emancipação centrada na figura de um príncipe da casa de Bragança), mas não com que o que a maioria deles defendeu e, muito menos, com o que propuseram os Conspiradores da Bahia de 1793-1798 e os Revolucionários de 1817. Esteve também longe da ordem sonhada pelo governo de São Paulo às vésperas da Independência.

    Quanto ao que propuseram os Conspiradores da Bahia de 1793-1798 e os Revolucionários de 1817, duas diferenças devem ser apontadas em relação à nossa Independência: a república, no caso de ambos os movimentos, e a proposta de abolição, no caso do segundo. Como convergências, quanto ao movimento de 1817, veem-se as liberdades de imprensa e de religião. Quanto à ordem sonhada pelo governo de São Paulo em fins de 1821, a fidelidade à casa de Bragança e a defesa de um governo central no Brasil são pontos comuns. Nossa Independência, entretanto, deixou esquecidas as propostas referentes à criação de uma Universidade, à construção de uma nova capital e, sobretudo, de realização de um certo tipo de "reforma agrária", que teria, entre os beneficiários, homens forros.

    É importante que se acrescente que o 7 de setembro não foi considerado, logo de imediato, como a data de nossa Independência e que esta não foi sempre objeto de celebração inconteste nesses quase duzentos anos. Se houve quem celebrasse a ruptura com o Reino Unido de Portugal e Algarves, exaltando a figura de D. Pedro, de José Bonifácio de Andrada e Silva e de outras lideranças políticas dos anos 1822-1823, existiu também quem achasse que esse rompimento foi menos virtuoso ou, de fato, algo ridículo. Alguns atores políticos chegaram até mesmo a tomá-lo como um feito que serviu à manutenção de instituições e situações nefastas.

    Em pleno 2022, tomemos as ideias de Independência anteriores às propostas nos idos de 1822-1823 e as críticas que se fizeram à nossa Independência, para construirmos uma outra Independência, à altura dos desafios do século XXI.

     

    Referências bibliográficas

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    2. Furtado, João Pinto. O Manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

    3. Jancsó, István. Na Bahia, contra o império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo: Hucitec: Salvador: UFBA, 1996.

    4. Jancsó, István. Bahia, 1798: a hipótese de auxílio francês ou a cor dos gatos. In: Furtado, Júnia Ferreira (org.). Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: UFMG, 2001, p. 361-387.

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    7. Maxwell, Kenneth. O livro de Tiradentes: transmissão atlântica de ideias políticas no século XVIII. São Paulo: Penguin/ Companhia das Letras, 2013.

    8. Neves, Lúcia Maria Bastos Pereira Das. Corcundas e Constitucionais: a cultura política da independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan/Faperj, 2003.

    9. Pereira, José Clemente. Falla, que o Juiz de Fora José Clemente Pereira, Presidente do Senado da Camara, dirigio a S A R. no acto em que apresentou ao mesmo Senhor as Representações do Povo desta Cidade [09/01/1822].Cartas e mais peças dirigidas a sua Magestade o Senhor D. João VI pelo Principe Real o Senhor D. Pedro de Alcantara: e junctamente os officios e documentos, Que o General Comandante da Tropa expedicionária existente na Província do Rio de Janeiro tinha dirigido Governo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1822.

    10. Quintas, Amaro. A agitação republicana no Nordeste. In: HOLANDA, Sérgio Buarque (Org.). História Geral da Civilização Brasileira. 7 ed. São Paulo: DIFEL,1985, Tomo 2, Vol. 1, p. 207-226.

    11. Revérbero Constitucional Fluminense, Rio de Janeiro, 1821-1822.

    12. Tavares, Luís Henrique Dias. História da sedição intentada na Bahia em 1798: a conspiração dos alfaiates. São Paulo: Pioneira, 1975.

    13. Villalta, Luiz Carlos. Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob as |Luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.