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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.74 no.1 São Paulo jan./mar. 2022

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220007 

    ARTIGOS

     

    Os confins à vista nos mapas Brasil. Desde os primeiros séculos da colonização, a imagem cartográfica do Brasil configurou-se como uma vasto continente, mais foi somente com a interrupção do tráfico negreiro transatlântico que a representação das fronteiras internas ganharam corpo

     

     

    Iris Kantor

    Professora do Departamento de História na Universidade de São Paulo (USP), coordenadora do Laboratório de Estudos de Cartografia História da Cátedra Jaime Cortesão, membro do Conselho editorial do E_Journal of Portuguese History da Universidade de Brown, pesquisadora associada do LAB_IEB (USP) e ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro.

     

     


    RESUMO

    A imagem do Brasil como uma ilha foi objeto de perenes controvérsias científicas, diplomáticas e historiográficas. Mesmo após a Proclamação da independência, o desafio do Brasil emancipado não foi gerir as fronteiras externas, mas disciplinar a expansão interna. Por isso o assunto ainda mereça questionamentos.

    Palavras-chave: Soberania territorial, cartografia, fronteiras internas e externas, territorialidade, mapeamento


     

     

    A gente veio do futuro conhecer nosso passado...
    Com quantos Brasis Se faz um Brasil?

    Sob o mesmo Céu, Lenine, 2004

    A imagem do Brasil como uma ilha foi objeto de perenes controvérsias científicas, diplomáticas e historiográficas - e, por isso, talvez mereça questionamentos. Desde o século XVI, a presença da linha imaginária de Tordesilhas na cartografia portuguesa e castelhana demarca a percepção de um vasto continente insular, geograficamente coeso, conectado por uma fronteira liquida entre as bacias do Prata e do Amazonas.

    A construção do império constitucional brasileiro se beneficiou da existência de imagens cartográficas produzidas nos séculos anteriores à Independência. Tais representações foram mobilizadas nas negociações diplomáticas com os Estados vizinhos, mas também ancoraram vínculos de pertencimento e horizontes de expectativas dos diferentes estamentos e classes sociais que se tornaram súditos-cidadãos de um estado dinástico emancipado.

    Ainda hoje, é corrente afirmar que o Tratado de Tordesilhas, acordado entre as monarquias ibéricas e intermediado pelo papado em 1494, constituiu uma prefiguração espacial do que veio a ser o território brasileiro. Todavia, trata-se obviamente um anacronismo, na medida em que a linha de partição do mundo não era demarcável no início o século XVI. Em primeiro lugar, porque nunca houve consenso sobre a localização de qual das ilhas do arquipélago de Cabo Verde (a partir da contagem das 370 léguas) deveria ser feita.

    Além disso, a demarcação de Tordesilhas (e os tratados posteriores, especialmente depois da viagem de Magalhães e Elcano) visou sobretudo transferir privilégios e delegar as tarefas de evangelização dos povos não europeus aos reis de Portugal e de Castela. Ao intermediar o tratado, a Santa Sé também concedeu aos monarcas ibéricos indulgências espirituais às atividades de comércio e de resgate dos cativos em toda a orla do Mar-Oceano (Atlântico) e ao longo das rotas interoceânicas recém descobertas (Figura 1).

     

     

    As informações recolhidas nas travessias marítimas foram sendo acumuladas em instituições próprias como os Casa da Índia e da Guine (Lisboa) e a Casa de Contratação (Sevilha), criadas no mesmo ano em 1503; e, onde cosmógrafos e pilotos-mores convertiam conjuntos muito variados de dados náuticos e astronômicos em estimativas uniformes de latitude e longitude.

    As coordenadas podiam ser representadas no papel usando, por exemplo, a projeção de Mercator (1569) - que usou as distâncias náuticas para determinar o contorno dos continentes. Ainda hoje a projeção de Mercator é aplicada na conversão das imagens captadas pelos satélites. Embora tecnicamente indeterminável, os sucessivos exercícios de projetar a linha de Tordesilhas propiciaram a visualização do que na época era um espaço incomensurável. No dizer do jesuíta padre Simão de Vasconcelos: a linha de Tordesilhas é uma meada que não se desembaraça...

     

    Em direção aos sertões: mão-de-obra e metais preciosos

    Ao longo dos primeiros dois séculos de colonização, a coroa portuguesa enviou sucessivas expedições de reconhecimento geográfico da costa atlântica e das embocaduras dos rios da Prata e do Amazonas. As informações geográficas transmitidas principalmente por intérpretes ameríndios (conhecidos por línguas), pelos pilotos e/ou práticos de navegação, jesuítas, mercenários e mercadores, localizados nas feitorias e praças marítimas, subsidiaram as primeiras representações do espaço que hoje denominamos de Brasil. Processo lento, uma vez que a penetração em direção ao interior do continente no primeiro século de colonização fez-se à revelia da coroa portuguesa, sempre mais preocupada com a defesa militar dos portos e das zonas costeiras.

    No século XVII, eram muitos brasis, sertanistas, senhores de engenho e missionários enviavam suas descrições e roteiros geográficos para a Corte com a expectativa de receberem benemerências, tais como a concessão de sesmarias, isenções tributárias ou ofícios públicos. Os Áustrias inauguram uma política permanente de descrição geográfica do Novo Mundo fundamental para criar um novo corpo legal para o controle dos domínios das Índias de Castela.

    Durante o período filipino (1581-1640), tais levantamentos de informação consolidaram uma cultura geográfica peculiar, que contou com colaboração ativa dos jesuítas, franciscanos e carmelitas instalados em suas missões nos confins do continente americano, com a autorização e o estimulo dos reis. Os religiosos também eram alvo dos constantes ataques dos sertanistas e paulistas em busca da mão de obra indígena aldeada pelos padres em áreas que teoricamente estavam sob a jurisdição da Província jesuítica o Paraguai. Naquele momento, nem jesuítas, nem os sertanistas paulistas tinham intenção de fixar as fronteiras dos impérios ibéricos na América.

    Do ponto de vista espacial, a colonização foi marcada pela descontiguidade, instabilidade e fluidez da ocupação euro-descendente.[1] A descoberta das jazidas aurífera e a extração dos diamantes em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso nos anos e 1720, propiciaram, pela primeira vez, uma articulação regular entre as diferentes cidades, vilas e povoados na América portuguesa. A exploração mineral reconfigurou a matriz espacial brasileira, na medida em que interiorizou os fluxos mercantis e demográficos, até então orientados predominantemente para economia de exportação localizada na costa atlântica. A interiorização da colonização foi também sustentada pelo tráfico negreiro e pela desterritorialização constante das populações ameríndias.

     

    Mapeando as partes dos brasis

    Na década de 1730, D. Joao V, preocupado com a defesa do seu patrimônio territorial na América e com a preservação dos rendimentos da exploração mineral no interior do continente, deu inicio ao mapeamento em escala continental da América portuguesa. Cartógrafos e astrônomos jesuítas foram contratados e enviados para o Brasil para realizar o Atlas das Longitudes Observadas, e engenheiros militares foram designados para construir fortalezas em pontos estratégicos da costa litorânea. O empreendimento legou um mapeamento minucioso da região centro-sul, e envolveu a colaboração ativa dos geógrafos populares (práticos, como eram chamados), assim como o testemunho dos que se viam como "primeiros" conquistadores (Figura 2).

     

     

    Preocupado com a confecção de uma mapa geral o Brasil, o secretario do Rei, Alexandre de Gusmão, solicitou aos governadores de capitanias e magistrados que tinham ocupado postos na América para que dessem sua "lembrança daqueles caminhos palmo por palmo", e sugeria a organização de um congresso para "segundo o que cada um lembrar", deduzir-se um plano de partes precisas e nomeadas por onde se deviam repartir os bispados e prelazias[1]. Curiosamente, ainda na década de 1740, as bulas papais de criação dos bispados de Mariana e de São Paulo e das prelazias de Goiás e Mato Grosso continuavam dando parâmetros para definição da territorialidade na América portuguesa.

    A ideia de Brasil como um corpo territorial coeso materializou-se no Tratado de Madrid assinado pelas coroas ibéricas, em janeiro 1750. Nesse momento, as coroas revogam oficialmente a linha de Tordesilhas.[2] O tratado foi acompanhado por um mapa especialmente confeccionado para esse fim (Mapa de los confines del Brazil con las tierras de la corona de Espanha en la América Meridional - 1749, também denominado de Mapa das Cortes) (Figura 4). A carta geográfica tornou-se alvo de controvérsias por apresentar distorções de longitude que beneficiavam Portugal. Contudo, vale notar dois aspectos: primeiro, naquela época não era comum que os tratados internacionais fossem acompanhados de mapas. Em segundo lugar, o Tratado de Madri menciona explicitamente que o mapa precisava ser corrigido e retificado in loco pelos geógrafos demarcadores portugueses e castelhanos em comum acordo (Figura 3).

     

     

     

     

    Um dos negociadores português do Tratado observa em sua correspondência: "A Sé Apostólica tem concedido a sua Majestade regular a seu arbítrio os confins dos bispados do Brasil, em que até o presente ha grande confusão". E, mais adiante, na mesma carta, lamenta o falecimento dos jesuítas contratados para fazer o Atlas das longitudes, e pede ao destinatário que contrate geógrafos, astrônomos e arquitetos militares capazes de observar as alturas e longitudes; insistindo que não convinha arregimentar súbditos de França, Espanha, Inglaterra ou Holanda para evitar conflitos de interesse geopolítico.

     

    Expansão e limites

    Até a descoberta das minas auríferas de Cuiabá e Mato Grosso, na década de 1730, a presença efetiva do governo português naquela região era rarefeita. A fundação da Vila Real do Senhor do Bom Jesus de Cuiabá, em 1727, teve justamente o objetivo de barrar a expansão dos espanhóis de Asunción e dos jesuítas castelhanos da Província do Paraguai e das missões indígenas de Chiquitos e Moxos (atual Bolívia). Estes últimos, por sua vez, tinham estabelecido uma rede de aldeamentos e atuavam com razoável grau de autonomia.

    Não por acaso, foram os jesuítas e os indígenas os principais obstáculos a fixação dos limites de demarcação entre as duas coroas ibéricas na América. A continua sabotagem às expedições demarcadoras e a guerra guaranítica levaram à expulsão dos jesuítas em todos domínios portugueses em 1759. No império espanhol, eles foram expulsos somente em 1767. Iniciava-se um longo período de detração da Ordem fundada por Santo Inácio em 1540, em cujos colégios, foram formados importantes quadros da matemática, astronomia e cartografia do século XVII e XVIII. A missão evangelizadora dos inacianos transformou-se no grande tema os salões e das academias científicas na Europa das Luzes. Voltaire os acusou de explorarem e escravizarem a população indígena, como se pode ler em Candido ou O Otimismo, seu conto satírico publicado 1759.

    Conforme correspondência de um alto conselheiro ao governador da capitania do Mato Grosso, em 1758, "os religiosos nos fizeram sempre, e continuam ainda, uma duríssima guerra nas fronteiras desses sertões, para nos desviarem delas; de sorte que nem penetremos nos segredos das suas colônias nem embaracemos os progressos das suas conquistas". Escrevia que o rei deveria dar um basta geral nessas violências ou, em dez anos, "não haveria mais Brasil" (Figura 4).

    Os jesuítas e os indígenas os principais obstáculos a fixação dos limites de demarcação entre as duas coroas ibéricas na América.

    A extinção da Companhia de Jesus na América portuguesa fez parte da estratégia de assimilação cultural e de arregimentação da mão de obra indígena, visando estabelecer ocupação permanente das fronteiras interimperiais no Alto Paraguai, na Amazônia Equatorial e Guianas. O mapa que acompanhava o Tratado de Madri documenta com clareza as dificuldades de conhecer o território, mas também demonstra como a razão geopolítica e comercial se impôs nas linhas retas sobre o papel. A partir do Tratado de Madri, iniciava-se o processo reordenamento territorial da América portuguesa. Traduzindo em miúdos, uma série de inciativas remodelaram a matriz espacial brasileira naquele momento. Populações ameríndias foram deslocadas para zonas litigiosas, os aldeamentos missionários foram transformados vilas indígenas, verdadeiros reservatórios de mão de obra.[3]

    Entre 1750 e 1808, foi criada uma rede de 95 vilas e numerosas fortalezas, casas-fortes e presídios, tais iniciativas conjugaram-se com uma política de elevação do status civil dos indígenas, tornando-os vassalos úteis, fosse para o trabalho na construção de fortalezas ou para o serviço nas tropas regulares que guarneciam as expedições fluviais. O Diretório dos índios instruía que toda vila indígena adotassem nomes de cidades portuguesas, a atribuição dessas denominações ficou ao encargo dos governadores de cada capitania.

    O Diretório proibiu também o uso da língua geral e obrigou os indígenas a falarem português e a adotarem nomes e sobrenomes lusitanos. A política de doação de terras (sesmarias) às novas vilas indígenas suscitou tensões e conflitos fundiários com os grandes fazendeiros e posseiros, que viram seus "privilégios" de ocupação imemorial das terras ameaçados.

    A demarcação deflagrou um processo de militarização das fronteiras externas por meio da construção de uma linha de fortalezas no interior do continente, com recursos financeiros oriundos da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, estabelecida em 1755. Fosse pelo comércio regular ou pelos destacamentos militares nas feitorias-fortalezas, a coroa portuguesa materializou, ao menos no papel, sua soberania territorial perante os demais impérios. A fuga de escravos nas áreas fronteiriças para os domínios hispano-americanos tornou-se um marcador espacial não negligenciável, a troca de fugitivos, a intermediação das autoridades locais, de um lado e de outro, especialmente após a Independência das republicas hispano americanas (1810-1835), foi usada como argumento em tratados internacionais.

    O reordenamento territorial implicou liberação de certas vias de comunicação interna (como foi o caso do rio Guaporé) e a proibição de caminhos antigos, frequentados por sertanistas e comerciantes locais. Temia-se o contrabando de mercadorias e metais preciosos, e por isso inibia-se a exploração econômica de rotas no interior do continente, como a via fluvial entre os rios Arinos e Tapajós. O processo de definição das fronteiras externas teve impacto também no modo como diferentes regiões coloniais se articulavam.

     

    As fronteiras continentais e marítimas

    As sucessivas invasões espanholas da capitania do Rio Grande do Sul, a tomada da Colônia do Sacramento e a ocupação de Santa Catarina, no período entre 1763 e 1777, obrigaram a Coroa a reforçar também a defesa dos seus interesses no Atlântico Sul, zona importante do comércio negreiro. O Tratado de Santo Idelfonso, assinado em 1777, punha fim a beligerância, e Portugal cedia aos espanhóis a Colônia do Sacramento, e as feitorias negreiras na África (as ilhas de Ano Bom e Bioko no Golfo da Guiné Equatorial; e no Gabão). Por outro lado, a navegação no rio Amazonas tornou-se privativa de Portugal da embocadura do rio Japurá à foz, no oceano Atlântico. A partir do forte de Tabatinga, águas acima, seria exclusiva da coroa espanhola. As moedas de troca nessas paragens eram sal, ferro, ferramentas e escravizados.

    Pelo rio Jauru, os negociantes espanhóis e indígenas comercializavam manadas de bois e muares, além de alguma prata. Desde 1770, a coroa portuguesa passou a conceder privilégios aos comerciantes da Companhia do Comércio do Grão-Pará na venda de mercadorias em terras espanholas, sendo que uma parte dos rendimentos se destinava a presentes oferecidos às autoridades castelhanas. A Companhia também obteve da coroa portuguesa a isenção de tributos para vender os escravos africanos deportados da feitoria negreira da Guiné-Bissau aos comerciantes do Mato Grosso. Assim, os portugueses puseram em prática uma estratégia militar, comercial e cartográfica para efetivar - material e simbolicamente - sua presença naqueles rincões de soberania indecisa.

    O Tratado de Santo Idelfonso também estipulava que os governadores das regiões limítrofes entre os impérios deveriam entrar em acordo sobre o problema recorrente da fuga de escravos africanos, "sem que, por passar a um domínio diverso, consigam a liberdade". São numerosos os relatos de militares e mercadores que se ressentem da fuga de escravos, que escapavam pelo mato e pelos igarapés.

    Em 1798, já em plena expansão napoleônica, sob os auspícios a rainha D. Maria I, inaugurava-se Sociedade Real Marítima e Militar para promoção das artes cartográficas em Portugal. Espécie sociedade cientifica, a instituição reuniu engenheiros navais e militares, astrônomos, pilotos e homens ligados às artes do desenho e da gravura com o objetivo de mapear os vastos domínios portugueses e publicar cartas geográficas.

    O astrônomo e demarcador Antônio Silva da Pontes Leme, natural da cidade de Mariana (MG), foi encarregado de compor a Carta do Brasil ou Nova Lusitânia. Sua Carta esférica fez convergir os levantamentos durante as expedições demarcadoras, incluindo as cartas geográficas as capitanias. A territorialidade pretendida pela administração metropolitana está bem representada através da visualização hiperbolizada das redes urbanas, viárias e fluviais inter-regionais com intuito evidenciar articulações e contiguidades territoriais nem sempre reais. O artefato cartográfico sugere uma integração entre as diferentes partes do mosaico territorial colonial, que buscava superar a imagem de um arquipélago de brasis (Figura 5).

     

     

    Há poucos exemplares originais conhecidos dessa magnífica carta, por hora, apenas quatro foram localizadas. Sua circulação não foi ampla, serviu provavelmente para ser exibida em circuitos diplomáticos. A circulação das cartas manuscritas e impressas com alto valor estratégico sempre foram objeto de sigilo, conforme se pode ler nesta orientação:

    "Sua Majestade manda remeter à Sociedade Real Marítima a Carta adjunta por ser de hum objeto interessante, e pouco conhecido da Costa do Brazil, e recomenda à Sociedade, que prescreva as mais estritas, e severas Ordens para que se ponha o maior cuidado em a guardar; e em não deixar sair do seu Arquivo sem determinação da mesma Sociedade qualquer das Cartas, que no mesmo Arquivo se acham depositadas: o que Vossa mercê fará presente à mesma Sociedade".

    A percepção da unidade geopolítica da América portuguesa que se projeta na cartografia dessa época resulta, assim, de um processo de acumulação de experiências adquiridas durante as expedições demarcadoras em regiões onde a soberania portuguesa ou castelhana não era uma realidade efetiva localmente. Ao delinear um território razoavelmente uniforme e homogêneo, como uma malha de povoamento densa e articulada, a cartografia desse período visou construir uma narrativa visual que se cristalizou como um carto-facto.

    Depois da instalação da corte portuguesa no Rio de Janeiro em 1808, a porção sul-americana do império tornou-se definitivamente o centro de uma rede de comércio e de fluxo demográfico em escala mundial. A acordos de aliança, amizade e comércio com a Inglaterra em 1810, esvaziaram o papel de Lisboa como plataforma de reexportação das mercadorias oriundas o Brasil; e, levaram à cessão do território de Cabinda e Molembo, assim como à restrição da atuação dos negreiros portugueses na Costa da Mina (Bissau e Cacheu). Refazia-se assim as rotas de navegação no Atlântico Sul ao mesmo tempo que a presença portuguesa no continente americano se enraizava.

     

    De capitania à província

    A elevação do Brasil à Reino Unido de Portugal e Algarve, alterou o estatuto político territorial do Brasil. Suprimia-se formalmente a designação capitania, substituída pela denominação província. E os termos domínio, colônia ou possessão passaram a ser evitados ao menos na documentação oficial.

    No extraordinário Atlas manuscrito do negro liberto Anastácio de Sant´Anna, intitulado Guia dos Caminhantes realizado entre os anos e 1816 e 1817, a designação província e capitania aparecem indistintamente. Elaborado por um cartógrafo de origem popular, residente em Salvador (BA), ele compôs o primeiro atlas do Brasil feito em território nacional; e mais o que isso, na perspectiva de um ex-escravizado, que vivia de fazer lunários perpétuos e de pintar mapas. Dedicou a obra à um potentado local, e não às autoridades governamentais como era costume. O "pintor" de mapas Anastásio de Sant'Anna, se auto referia como "o pardo velho" produziu dezenas de mapas. O seu Guia de Caminhantes tem objetivos patrióticos, dirige-se aos jovens, pretende informar comerciantes, fazendeiros e feitores, sobre os melhores percursos e caminhos a se fazer pelo continente, mas também nos informa sobre as rotas em direção ao continente africano

    Os mapas de Anastásio de Sant'Anna registram a trama das estradas reais, registros fiscais, rede de vilas, freguesias, presídios, fortes, destacamentos feiras, santuários, cemitérios e pousos que, curiosamente, não vinham identificados nas cartas dos engenheiros militares, mais preocupadas com os dados ambientais e com a hidrografia. Suas cartas geográficas das capitanias nos fornecem, ainda, informações sobre a presença das populações quilombolas e indígenas, como é o caso do Reino dos Muras. Indica também as zonas de contrabando, e o território da Cisplatina recém ocupado pela coroa portuguesa. Mas o mais interessante é o modo como ele expõe suas expectativas, na medida em que nos oferece dados sobre o papel dos "conquistadores e descobridores" de origem mestiça do interior do continente.

    Em 1822, o Reino do Brasil dividia-se em 18 províncias, dos quais 13 centros urbanos com condição jurídica de cidade, seis localizavam-se na Bahia e Rio de Janeiro. O crescente interesse em conhecer a geografia brasileira se refletia até mesmo nas páginas dos jornais da época que mantinham seções especiais para a edição de roteiros de viagens e memórias estatísticas, escritos por engenheiros militares, cartógrafos, naturalistas, mineralogistas e magistrados (Figura 7). Contudo, raramente os relatos vinham acompanhados de representações cartográficas, mas a divulgação desses textos, muitos deles inéditos, pode ter sido um estímulo para a formação da consciência territorial entre o público leitor. Descrever espaço físico, as riquezas naturais e a população passaram a ser tarefa prioritária para essa geração de cientistas e administradores públicos.

     

     

     

     

    Os patriarcas da emancipação política acalentaram o sonho de deslocar a capital do Império para o interior do Brasil. A ideia chegou a proposta por José Bonifácio de Andrada e Silva durante os debates da constituição abortada em 1823. O jornalista José Hipólito a Costa já havia anteriormente sugerido a conveniência da transferência da capital para região de Goiás. A transferência da capital para o Planalto Central voltou a baila no contexto das revoltas provinciais que sucederam a renúncia do rei Dom Pedro I, em 7 abril 1831.

    Em 1849, o diplomata e historiador Adolfo Varnhagen insistiu nesse projeto em seu Memorial Orgânico.[4] Para tanto, argumentava com a teoria climática de Alexander von Humboldt (regiões temperadas são propicias ao desenvolvimento da civilização) e refletia também sobre as vantagens militares da interiorização da capital do império. As fronteiras externas não o preocupavam, em sua perspectiva estavam razoavelmente consolidadas. O famoso naturalista Saint Hilaire que percorreu cerca de 12 mil quilômetros entre 1816-1822, concordava com essa hipótese, e na década de 1840, preocupado com a possibilidade de fragmentação política deflagrada pelas revoltas regenciais, chegou a escrever que o Brasil era um círculo imenso, cujos raios iam convergir bem longe do centro da circunferência.

    Com efeito, a proposta de deslocar a capital do litoral para o sertão só pode ser concebida a partir de uma mudança estrutural da economia brasileira, ocorria com o fim do tráfico negreiro transatlântico, conforme aponta Luiz Felipe de Alencastro.[5] Iniciava-se a era do endocolonialismo, em outras palavras o movimento de "expansão para dentro", a partilha das fronteiras interprovinciais e a desapropriação das terras indígenas em favor das elites regionais, conforme sugeriram Ilmar Rohloff de Mattos e Antonio Carlos Robert de Moraes entre outros.[6] Ao fim e ao cabo, a independência aprofundou a herança da colonização. Na década de 1850, a decretação da Lei de Terras, a política de fomento à imigração europeia e o fim do tráfico transatlântico levaram à introversão da matriz espacial brasileira.[7]

    O crescente interesse em conhecer a geografia brasileira se refletia até mesmo nas páginas dos jornais da época que mantinham seções especiais para a edição de roteiros de viagens e memórias estatísticas.

    Embora a imagem o Brasil estivesse configurada na cartografia desde os primeiros séculos da colonização, foi somente com a interrupção do tráfico negreiro transatlântico que o continente africano deixou de ser um espaço geoeconômico integrado aos fluxos econômicos e demográficos luso americanos. Ainda após a Independência, as duas margens do Atlântico estiveram mais conectadas do que as costas litorâneas com o extremo oeste. Quando comparada às demais republicas hispano Americanas e aos Estados Unidos, onde a matriz espacial dos vice-reinos ou da colonização britânica foi bastante modificada ao longo do século XIX; a configuração territorial brasileira manteve-se mais ou menos estável, sem alterações significativas com exceção à incorporação do Acre, e dos territórios de Roraima e do Amapá). O desafio do Brasil emancipado não foi gerir as fronteiras externas, mas disciplinar a expansão interna. A percepção de uma nação continental delineada na cartografia segue alimentando os milagres da economia extrativista.

     

    Referências bibliográficas

    1. Jaime Cortesão, História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco/Ministério das Relações Exteriores, 1965; Júnia F. Furtado, Oráculos da geografia iluminista. Belo Horizonte, Ed.UFMG, 2012; Junia F. Furtado, O mapa que inventou o Brasil. São Paulo: Versal, 2013.

    2. Nadia Farage, As muralhas do sertão. São Paulo: Paz e Terra, 1991; Roberta Marx Delson, Novas Vilas para o Brasil-Colônia: planejamento espacial e social no século XVIII. Brasília: Ed. Alva-CIORD, 1997.

    3. Fernando A. Novais. "Condições e privacidade na Colônia", Aproximações: estudos de história e historiografia, Editora CosacNaify, 2005.

    4. Alexandre de Gusmão. Apontamentos políticos, históricos e cronológicos. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Mss. 3,1,17 -n.13, p.53, 60 e 62.

    5. Arno Wehling, Lucia Maria Paschoal Guimarães, Raquel Glezer, Varnhagen no caleidoscópio, Rio de Janeiro : Fundação Miguel de Cervantes, 2013; Leandro Macedo Janke. Leandro Macedo Janke. Duarte da Ponte Ribeiro. Território e territorialidade no Império do Brasil. 2014. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

    6. Luiz Felipe de Alencastro, "La Traite Négriére et l'unité Nationale Brésilienne". Revue Française d'Histoire d'Autre-Mer. Paris, n. 244/ 245, 1979.

    7. Ilmar Rohloff de Mattos. "Entre a casa e o Estado. Nação, território e projetos políticos na construção do Estado Imperial brasileiro", in Héctor Mendoza Vargas (orgs.) La Integracion del território em uma idea de Estado, México y Brasil, Cidade do México, UNAM, 2007. pp. 589-608; Antonio Carlos Robert Moraes. Introduction à l'affirmation de la territorialité de l'Etat au Brésil. Société de Géographie, v. 1521, p. 7-17, 2006.

    [vi]. Luiz Felipe de Alencastro, As três eras do Atlântico Sul. Revista USP, (123), 13-28, 2019. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i123p13-28