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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.74 no.2 São Paulo abr./jun. 2022

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220032 

    REPORTAGEM

     

    As relações entre os Andrades e o impacto na herança modernista. Por meio de um viés político e influências europeias, o Movimento Modernista nasce de encontros e da vontade de movimentar a cena brasileira, já considerada antiga e ultrapassada

     

     

    Priscylla Almeida

    Priscylla Almeida é jornalista e produtora de conteúdo para áreas de saúde e ciência, marketing e publicidade. Apaixonada por filmes, gatinhos e pela rotina dinâmica que a comunicação traz: o contato com gente, a curiosidade de assuntos diversos, a troca. Link: https://www.linkedin.com/in/priscylla-almeida-6008786a/

     

     

    Sob um certo improviso, a Semana de Arte Moderna de 1922 aconteceu paralelamente a outro centenário: a Independência do Brasil. O grupo que já se reunia em encontros na capital paulista, tinha em comum um tom de questionamento enviesado às vanguardas europeias. O projeto recebe patrocínio da elite para acontecer, o que contribuiu para um foco cultural. O nacionalismo ganha força ao mesmo tempo que outras estéticas passam a ser exploradas, vozes e narrativas "saíam da bolha". Bolha até então permeada por um tradicionalismo e arte rigorosa, onde as formas deveriam ser perfeitas e dentro de padrões academicistas, convencionais. Vamos modernizar?

    Nem mesmo eles saberiam a proporção que tomaria este evento. "A Semana de Arte Moderna foi um momento em que a luta pela renovação estética e intelectual ganhava sentido como parte de transformações mais amplas, na cultura e na sociedade brasileiras", explica André Botelho, professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

    O recebimento do evento foi péssimo. Tanto vindo do público com vaias e xingamentos, quanto da imprensa noticiando com tom de deboche e desvalorizando àqueles considerados futuristas e "fora da curva". Como diria Oswald de Andrade nas páginas de seu "Diário Confessional": "resiste, coração de bronze!". Resistiram reunidos. Seria possível medir até onde o idealismo desses jovens os levaria, mesmo após cem anos? "O evento é considerado pelos estudiosos como um divisor de águas no panorama cultural do Brasil, mesmo por críticos ou historiadores que muito o relativizam. A Semana de Arte Moderna de 22 pode ser tomada como o ponto de luz que, lançado regressivamente, ilumina e coloca em diálogo eventos anteriores", declara Maria Zilda Cury, professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

     

    Ser moderno

    Períodos de grande produtividade, principalmente de Mário e Oswald, foram fundamentais para alavancar a cidade paulista ao moderno e a uma nova era. O próprio Mário fala que "se a Semana não tivesse acontecido minha obra teria sido igual". Sem dúvida, visto que a genialidade do poeta que se autodeclarava ser "trezentos, trezentos e cinquenta" não deixaria de ocorrer. Porém, é inegável não associar a ocorrência da Semana e todo seu estopim se não fossem as críticas e as narrativas nacionalistas do poeta. Mário em sua curta vida personificou ideias, indo de encontro a frustrações e angústias. "Eclodiu o sentimento de ressignificação da maneira de se fazer arte. É como se naquela Semana tivesse aberto uma pequena cerca para que um elefante pudesse passar. Daí a importância da primeira geração: esse elefante se machucou, mas abriu caminho para muitos outros", afirma Daniela Cremasco, professora de Língua Portuguesa e suas Literaturas e Coordenadora Pedagógica da Área de Ciências Humanas do Colégio Doctus (Figura 1).

     

     

    Assim, a valorização do Movimento Modernista foi construída mediante a muitos fatores de resistências e relações. "Sem o trabalho árduo, a estrutura de oportunidades, a ação coletiva, a formulação de obras e novos paradigmas e, sobretudo, a socialização das novas gerações posteriores, a Semana da Arte Moderna não teria esse lugar simbólico tão proeminente na história da cultura moderna brasileira", lembra Botelho.

    "Mário e Oswald, foram fundamentais para alavancar a cidade paulista ao moderno e a uma nova era."

     

    Sequestros

    As angústias eram uma constante na obra e na vida de Mário de Andrade. Angústias essas reveladas por completo somente cinquenta anos depois da morte do autor em uma de suas cartas endereçadas ao grande amigo Manuel Bandeira, onde fala sem rodeios sobre sua homossexualidade: "Os sequestros num caso como este, onde o físico que é burro e nunca se esconde entra em linha de conta como argumento decisivo, os sequestros são impossíveis" (trecho da carta de Mário de Andrade) [1]. Tais cartas foram entregues pela viúva de Bandeira ao acervo Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro e apenas em 2015 houve a liberação do documento original mediante a Lei de acesso à informação.

    A homossexualidade de Mário não era novidade aos estudiosos, simpatizantes de sua obra e muito menos por seus colegas. Dizem até ser este o motivo da ruptura entre Mário e Oswald, quando em uma determinada situação Oswald faz comentários e insinuações a respeito de Mário. "Quando estudamos nos livros, imaginamos que eram todos amigos e que não tinham problemas, mas, na verdade, a amizade deles era permeada por diversos desentendimentos e conflitos. As cartas trocadas por Mário retratam essas farpas que de certa forma nos ajudam a ter um olhar crítico do que foi o movimento", comenta Cremasco. A amizade não retomaria, mesmo Oswald declarando em outros momentos que sentira saudade do amigo. Hoje, ironicamente ou não, compartilham do cemitério da Consolação em São Paulo.

    Em seu "Diário Confessional", obra lançada neste ano de centenário, Oswald mostra um lado mais vulnerável e humano. Sem perder o lado polêmico, faz declarações sobre colegas da Semana e conta envergonhado como as dificuldades financeiras implicaram em suas relações. A Antropofagia não poderia nascer de outra pessoa: a devoração simbolizada por uma vontade de sentir, reaver, chocar, engolir, inovar. Oswald de Andrade teve existência e personalidade tão marcantes quanto suas obras. Complexo e intenso, o jornalista, cronista, poeta e dramaturgo trazia críticas e um nacionalismo intrínseco ao mesmo tempo que as camadas socialistas adentravam o país.

     

    Aproximações e distanciamentos

    Embora seja incontestável o protagonismo dos paulistanos no pontapé inicial ao movimento modernista, foram de relações ampliadas que o modernismo ganha novas vertentes, força e membros. "Entre eles, aqueles formados pelos jovens modernistas de Belo Horizonte que estreitaram laços intelectuais, sobretudo com Mário de Andrade por meio de correspondência e encontros variados", afirma Cury.

    Cartas essas que aproximam e fazem de Carlos Drummond de Andrade herdeiro do modernismo de Mário. "Essa relação mudou, sem exagero, o destino do Movimento. O papel de Mário de Andrade foi mesmo central. Ele teve muito êxito em ‘converter’ Drummond e outros da sua geração, até então muito influenciados pela cultura francesa dominante - como acontecia com a intelectualidade brasileira e latino-americana em geral, a causa maior do abrasileiramento do Brasil", afirma Botelho (Figura 2).

     

     

    Com expressividade, Drummond permeou por temas do cotidiano recriando uma forma própria e não deixando o moderno do modernismo morrer. A ligação dessas gerações é imprescindível para continuidade e uma rica herança do que se tem hoje sobre o Movimento. Através de uma mentoria base de Mário, Drummond tomou rumos próprios e tornou-se um dos principais poetas da atualidade. "O chamado foi atendido e os destinos de Drummond, Mário de Andrade, do Modernismo como movimento cultural e do projeto de democratização da cultura brasileira se decidem", destaca Botelho.

    "Com expressividade, Drummond permeou por temas do cotidiano recriando uma forma própria e não deixando o moderno do modernismo morrer."

     

    Força do tempo

    O que torna o Modernismo moderno? A ação do tempo inclusive ‘brinca’ com o que é considerado moderno no Modernismo: obras que causaram furor e hoje fazem parte de temas de vestibulares e livros de escolas, hoje são sim consideradas uma herança, mas não perderam o seu desejo de ruptura que foram há 100. "Datas são balizas, marcos para revisões e reflexões sobre eventos passados. Simultaneamente, porém, o estudo do passado não se esgota em si mesmo, sendo uma oportunidade para que com ele se ilumine o tempo presente", lembra Cury. As ideias, críticas e questionamentos ainda atuais, compõem a busca por uma identificação e liberdade de arte brasileira. "Na verdade, é a força do tempo presente, de suas contradições e lacunas, que justifica a urgência de recuperação do passado", completa. O que nos define? Talvez daqui há cem anos continuemos questionando.

     

    Nota

    1. BORTOLOTI, M. A carta em que Mário de Andrade fala de sua homossexualidade. Revista Época, 18 de junho de 2015.