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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.74 no.3 São Paulo jul./set. 2022

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220041 

    ARTIGOS

     

    Intervenientes político-ideológicos na educação brasileira: análise das duas disciplinas mais controversas nos currículos escolares entre duas celebrações (1922/2022)

     

     

    Luiz Antônio Cunha

    Sociólogo, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência nos seguintes temas: política educacional, história da educação brasileira, ensino superior, ensino técnico, laicidade do Estado e da educação

     

     


    RESUMO

    O objetivo deste texto é apontar a existência de fatores intervenientes no ensino das Ciências da Natureza e da Vida, assim como das Humanas e Sociais, presentes tanto no primeiro como no segundo centenário da Independência. Esses fatores compreendem a socialização política e ideológica que potencializam a falta de professores qualificados, de laboratórios e de bibliotecas, além de uma didática inadequada — tais carências não foram nem são responsáveis únicas pelo insuficiente ou errôneo aprendizado nas disciplinas científicas. Em termos propriamente curriculares, o texto focaliza as disciplinas Ensino Religioso e Educação Moral e Cívica.

    Palavras-chave: Política Educacional; Socialização Política; Ensino Religioso; Educação Moral e Cívica; Escola Pública.


     

     

     

    O objetivo deste texto não é comparar as mazelas da educação brasileira entre 1920 e 2022. Meu intuito é apontar a existência de fatores intervenientes, em ambas as ocasiões, no ensino das Ciências da Natureza e da Vida, assim como das Humanas e Sociais. Esses fatores compreendem a socialização política e ideológica, que potencializam a falta de professores qualificados, de laboratórios e de bibliotecas, além de uma didática inadequada — tais carências não foram nem são responsáveis únicas pelo insuficiente ou errôneo aprendizado nas disciplinas científicas.

    Os processos espontâneos e induzidos pelos quais se desenvolve a socialização política, isto é, a interiorização de normas, valores e atitudes relativos à percepção do campo político e ao comportamento nele [1], constituem um dos elementos menos estudados da Sociologia da Educação no Brasil. Ela se desenvolve mediante processos espontâneos e induzidos durante a infância (escola e família ora convergem, ora divergem) e prosseguem ao longo de toda a vida (pela ação de meios de comunicação de massa, redes sociais, instituições religiosas, partidos, movimentos sociais, etc.). Essas questões não serão tratadas aqui, malgrado sua relevância [i]. Minha atenção está voltada para os projetos induzidos de socialização política integrantes de políticas educacionais, intimamente associados à socialização ideológica de caráter religioso.

    Vou apresentar, primeiramente, as duas disciplinas mais antigas nos currículos escolares, visando à socialização político-ideológica: o Ensino Religioso (ER) nas escolas públicas e a Educação Moral e Cívica (EMC), esta também nas privadas. Em seguida, os intervenientes mais recentes, com o mesmo propósito: o movimento Escola sem Partido, o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso e o Programa de Escolas Cívico-Militares.

     

    Disciplinas em sintonia oscilante

    No que diz respeito à socialização político-ideológica prevista nos currículos escolares, prevaleceu na Primeira República a posição de liberais, maçons e positivistas. A disciplina Moral, com ou sem o complemento Civismo, não deveria ter conotação religiosa, apesar de sua presença em livros de leitura, como no famoso "Porque me ufano do meu país", de Affonso Celso (conde do Vaticano), publicado em 1901 e reimpresso anos a fio. A religião somente poderia constar legalmente dos currículos das escolas privadas, não das escolas públicas, por determinação da Constituição de 1891: "Será leigo (isto é, laico, LAC) o ensino nos estabelecimentos públicos" (art. 72, § 6º). Mas a pressão confessionalista crescia, na medida mesma da crise política. Alguns municípios e estados permitiam e até encarregavam os professores ou agentes religiosos de ministrarem o ER nas escolas públicas, ao arrepio da Constituição.

    Em 1922, ocorreu mais do que a celebração do primeiro centenário da Independência do Brasil, pois foi quando se deu o início do fim do padrão político estabelecido pelas oligarquias na política dos governadores, com a eclosão de uma grave crise institucional motivadora do primeiro levante de oficiais do Exército, da série conhecida por tenentismo. Sem o mesmo efeito político imediato, esse ano viu nascer o Partido Comunista, a Semana de Arte Moderna e o lançamento da pedra fundamental da estátua do Cristo Redentor no Rio de Janeiro, sinal ostensivo do advento do regime de neocristandade [2].

    No intuito de superar a crise de hegemonia, acelerada pelo movimento tenentista, o presidente da República Arthur Bernardes não conseguiu inserir o ER nos currículos escolares, contentando-se com a EMC como disciplina compensatória no currículo do ensino secundário público e privado, mas não no primário, de competência de estados e municípios. O artifício que a reforma João Luiz Alves-Rocha Vaz (Decreto nº 16.782-A/1925) usou foi a imposição indireta, incluindo seu programa no exame de admissão ao ensino secundário.

    Nenhum dos grupos políticos vencedores da revolução de 1930 logrou hegemonia sobre as forças heterogêneas que a desfecharam. O espaço político daí resultante foi ocupado pela Igreja Católica, atraída para o esquema de sustentação do Governo Provisório pelo Decreto nº 19.941/1931, que permitiu o oferecimento do ER em regime facultativo para os alunos dos estabelecimentos públicos de ensino primário, secundário, profissional e normal em todo o país. A EMC prevista na reforma de 1925 foi suprimida dos currículos com a justificativa de que os valores que se pretendia transmitir já estavam contemplados pela religião. A vitória política alcançada pela Igreja Católica com a promulgação desse decreto foi ampliada na Constituição de 1934.

    Da EMC substituindo o ER e deste no lugar daquela, passou-se, no Estado Novo (1937-1945), à ação recíproca entre ambas as disciplinas, com nítida inspiração no fascismo italiano. A Constituição de 1937 determinou a obrigatoriedade do ensino cívico em todas as escolas primárias, normais e secundárias, públicas e privadas. O ER foi mantido nas escolas públicas, mas com uma cláusula de dispensa mais clara do que em qualquer outro texto legal, antes e depois: essa disciplina não poderia constituir objeto de obrigação dos professores, nem de frequência compulsória por parte dos alunos.

    Logo depois da deposição de Vargas em outubro de 1945 – e com ele o fim do Estado Novo –, o presidente provisório José Linhares promoveu mudanças na legislação do ensino secundário, suprimindo os elementos mais ostensivamente inspirados no fascismo, como a EMC. Enquanto isso, a Assembleia Constituinte desenvolveu seus trabalhos, nos quais a Igreja Católica usufruiu de plena hegemonia no tocante a suas demandas históricas, de modo que a Constituição de 1946 teve um artigo contemplando o ER, como na de 1934.

    A ditadura iniciada em 1964 recuperou a paridade ER <=> EMC. A junta militar que assumiu o poder logo após o Ato Institucional nº 5 baixou o Decreto-lei nº 869/1969, determinando a inserção da EMC nos currículos de todos os níveis e modalidades de ensino do país, tanto no setor público quanto no privado. No ensino superior, essa disciplina seria ministrada como Estudos de Problemas Brasileiros-EPB (Figura 1).

    Apoiando-se nas tradições nacionais, a EMC teria por finalidade a defesa do princípio democrático (dissimulando-se a ditadura), através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor à liberdade com responsabilidade, sob a inspiração de Deus; a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade; o aprimoramento do caráter com apoio na moral, na dedicação à família e à comunidade; o culto à Pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua história; etc. Era a simbiose entre o Catolicismo conservador e a doutrina da Segurança Nacional elaborada pela Escola Superior de Guerra.

    A luta pela democracia levou a EMC a uma lenta agonia. O processo longo, tortuoso e contraditório da transição política, desde o início da década de 1980, permitiu-lhe uma surpreendente sobrevida. Apesar do projeto visando ao fim de sua obrigatoriedade ter sido apresentado ainda no governo Sarney, a lei nº 8.663 só foi sancionada por Itamar Franco em 1993.

    Um fator incidente sobre o ER foi a grande mudança do campo religioso: desde a década de 1960, o número de adeptos de Igrejas Evangélicas pentecostais cresceu exponencialmente, em detrimento da Igreja Católica, o que a levou a reações de ordens diversas. Uma delas foi propor uma concordata entre o Vaticano e o Estado brasileiro, o que não existiu nem mesmo quando o Catolicismo era a religião oficial do Império. Esse acordo foi firmado em maio de 2007, aprovado pelo Congresso Nacional e homologado pelo Presidente Lula pelo decreto nº 7.107/2010.

    O artigo 11 da concordata diz que o ER católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas brasileiras de ensino fundamental. Estava institucionalizado o conflito no campo religioso, dentro e fora do segmento católico. Acionado pelo Ministério Público a respeito da constitucionalidade de tal artigo da concordata, o Supremo Tribunal Federal decidiu a favor dos termos desse acordo, ou seja, que é lícito (mas não obrigatório) que o ER seja ministrado na modalidade confessional, sem rejeitar a inter/supra/não-confessional.

     

    "O movimento Escola sem Partido nasceu em 2004 da iniciativa pessoal de procurador da Justiça Estadual paulista. A motivação explícita era impedir a doutrinação política esquerdista que alunos de escolas públicas e privadas estariam presumidamente sofrendo da parte de docentes."

     

    Os dados do próprio MEC são eloquentes quanto à obrigatoriedade de fato do ER nas escolas públicas, apesar da disciplina ser facultativa de direito. Os questionários da Prova Brasil, respondidos pelos diretores de todo o país, mostram que cerca de 70% das escolas públicas de ensino fundamental ministram aulas dessa disciplina. Dentre as que o fazem, 54% confessam exigir presença obrigatória; e 75% não oferecem atividades para os alunos que não queiram assistir a essas aulas. Se os professores católicos, monitorados pelos comitês eclesiásticos, assumem o viés missionário conservador que povoa o imaginário da categoria para impor aos alunos práticas religiosas, seus competidores evangélicos, que beberam na mesma fonte, procedem de modo similar. Assim, a presença de práticas religiosas cristãs no interior das escolas públicas passa (ou continua) a ser vista como algo natural [3].

     

    "Nas eleições de 2018, vários candidatos a governador lançaram mão da militarização das escolas públicas como apelo de campanha."

     

    Vemos, assim, que no período republicano as relações entre o ER e a EMC estavam em sintonia, embora oscilante. A EMC foi normatizada em 1925 e suprimida em 1931 em proveito do ER, que não saiu mais das determinações legais, inclusive constitucionais, dos currículos escolares — primeiro do ensino primário, depois do 1º grau/fundamental. A EMC foi recuperada pelo Estado Novo para cair junto com esse regime político. Novamente recuperada pela ditadura militar e de novo relegada, ela voltou a ser cogitada por vários projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. Entre 1996 e 2006, foram apresentados 13 projetos de lei por deputados ou senadores, e mais sete até 2019 [4]. Eles têm como denominador comum uma perspectiva conservadora da moral e um viés autoritário da política, mas as diferenças são tantas que até agora não se construiu um consenso em torno de uma formulação unificada.

     

    Novos intervenientes em dessintonia conflitante

    As mudanças no campo religioso e no campo político propiciaram novas interveniências no campo educacional, estabelecendo uma complexa dessintonia.

    O movimento Escola sem Partido nasceu em 2004 da iniciativa pessoal de procurador da Justiça Estadual paulista. Dez anos depois, o movimento ensejou a apresentação de projetos de lei na Câmara dos Deputados, no Senado, em assembleias legislativas estaduais e em câmaras municipais. A motivação explícita era impedir a doutrinação política esquerdista que alunos de escolas públicas e privadas estariam presumidamente sofrendo da parte de docentes. Para reverter essa situação e punir os culpados, defendia-se que as escolas deveriam se submeter aos valores das famílias (de cada família), segundo o princípio "meus filhos, minhas regras" (Figura 2).

    A primeira lei aprovada com base no movimento Escola sem Partido foi em 2015 no Estado de Alagoas, com o nome eufemístico de Escola Livre. Dois anos depois, a lei foi suspensa em caráter liminar pelo STF, onde aguarda apreciação pelo plenário. Com base nessa decisão, leis municipais com o mesmo teor têm tido o mesmo destino. Em 2018, o movimento entrou em declínio, embora os projetos de lei nela inspirados prossigam tramitando. O declínio se deveu tanto à resistência nos campos político e educacional quanto às contradições no âmbito dos seus apoiadores situados à direita do espectro político. Se a pauta moral unia segmentos religiosos (católicos e evangélicos) e não religiosos, a Câmara desarquivou um projeto de lei apresentado em 2005 pelo influente pastor da Assembleia de Deus, deputado Hidekazu Takayama (PMDB-PR). Ele pretendia acrescentar ao Código Penal mais uma exclusão aos crimes tipificados como injúria ou difamação: a opinião de professor ou ministro religioso no exercício do magistério. Era o oposto do que se pretendia numa escola sem partido, pois esse projeto de lei queria garantir a liberdade do professor proselitista para externar opiniões homofóbicas e em "defesa da vida", além de ministrar ensinamentos anticientíficos, como o criacionismo. Enquanto isso, a unanimidade conservadora luta pela aprovação de projeto de lei permitindo a educação domiciliar.

    Passemos ao Ensino Religioso. A elaboração do Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014), acelerou a gestação da Base Nacional Comum Curricular-BNCC para a educação básica. No que se refere ao ensino fundamental, o aparelhamento religioso levou a que o ER, apesar de ser disciplina facultativa, fosse incluído na Base e seu desenho entregue ao FONAPER, organização não governamental do segmento católico.

    Na BNCC, o ER pretendeu ser uma espécie de EMC interconfessional, evocando em seu proveito a qualificação daquela disciplina na Lei nº 9.475/1997, que introduziu na segunda LDB a presunção do ER ser "parte integrante da formação básica do cidadão". Partiu, então, para apresentar a religião — todas as religiões — como fundamento para as competências específicas que se pretendia promover no ensino fundamental. A pretensão chegou ao ponto de situar o ER como integrado às Ciências Humanas, absurdo prontamente objetado no campo educacional, o que fez com que a segunda versão da BNCC criasse uma área de estudo para abrigá-la como disciplina sui generis. Uma versão resumida da Base apresentada ao Conselho Nacional de Educação foi aprovada, mas toda a explanação teórica justificadora da centralidade do ER no currículo do ensino fundamental permaneceu anexada (portanto endossada) à resolução CNE/CP nº 2/2017.

    Na prática, o ER encontra-se configurado por pelo menos duas polaridades. Num plano, ele se situa entre a Igreja Católica, que reivindica essa disciplina como oferta obrigatória nas escolas públicas, admitindo seu caráter facultativo para o aluno; e as Igrejas Evangélicas, parte delas contrárias à sua existência. Noutro plano, a polaridade se define entre o setor oficial da Igreja Católica, que defende o ER necessariamente confessional (uma sala de aula e um professor para cada credo), e setores dissidentes, aliados a adeptos de outros credos, temerosos da hegemonia vaticana, defensores de um ER não-confessional — um presumido denominador comum a todas as religiões.

    Nas eleições de 2018, vários candidatos a governador lançaram mão da militarização das escolas públicas como apelo de campanha, inclusive o candidato a presidente da República Jair Bolsonaro. Em setembro de 2019, foi lançado o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, instituído pelo Decreto nº 10.004, com a meta de 216 estabelecimentos até 2023, ao ritmo de 54 por ano. As unidades da Federação e os municípios que aderissem ao programa indicariam as escolas das respectivas redes para reproduzirem tal modelo no segundo segmento do ensino fundamental e/ou no ensino médio. Elas adotariam os modelos de gestão dos colégios militares do Exército, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares. O MEC destinaria recursos financeiros ao pagamento de gratificações a militares inativos para atuarem nas áreas de gestão educacional, didático-pedagógica e administrativa (Figura 3).

    A socialização política foi genericamente apresentada no decreto de criação do programa em questão (comportamentos, valores e atitudes, com vistas ao desenvolvimento pleno do aluno e ao seu preparo para o exercício da cidadania), mas foi especificada pelo próprio presidente Bolsonaro no momento mesmo do lançamento do programa: "Tem que botar na cabeça dessa garotada a importância dos valores cívicos-militares, como tínhamos há pouco no governo militar, sobre Educação Moral e Cívica, sobre respeito à bandeira" [5].

     

    "Os efeitos das políticas e dos movimentos de pressão pela socialização político-ideológica de viés conservador já se fizeram sentir no Plano Nacional de Educação 2014-2024 quanto a temas que permeariam todo o currículo da educação básica, particularmente gênero e orientação sexual."

     

    Os novos intervenientes no campo educacional primam pela dessintonia. A atuação política das Igrejas Cristãs apresenta convergências e divergências ideológicas relevantes. Elas convergem no combate ao que entendem ser a ideologia de gênero nas escolas públicas e privadas, mas divergem no apoio ao movimento Escola sem Partido — as Igrejas Evangélicas Pentecostais o apoiam, enquanto a Igreja Católica desconfia dele. Passando à EMC, vemos que ela é objeto de propostas bem diferentes. Umas defendem a especialização disciplinar, versão ora mais, ora menos branda da que foi definida pela junta militar em 1969; outras a desejam transversal, permeando todas as disciplinas do currículo (Figura 4).

    A mais radical dissintonia encontra-se nas Escolas Cívico-Militares. Ao contrário da EMC via especialização disciplinar ou transversalidade curricular, trata-se, agora, da segmentação escolar: a adaptação de escolas estaduais e municipais à gestão e à pedagogia militar, mediante convênios com os Ministérios da Educação e da Defesa. Abre-se, então, mais um feixe de dessintonias, a saber: ministérios com finalidades diferentes; controle federal versus controle estadual e/ou municipal, inclusive escanteamento dos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação; pedagogia tendente ao diálogo e à gestão democrática (aliás determinada na LDB) versus pedagogia baseada na hierarquia, no comando e na obediência; pessoal docente civil estadual e municipal versus pessoal dirigente militar federal e/ou estadual. Resumindo: ao invés do pensamento crítico, a pedagogia da ordem unida enfatiza a formação para cumprir determinações superiores sem questionamento [6].

     

    Considerações Finais

    Não é de hoje que os docentes da educação básica se deparam com disposições perturbadoras do ensino, da parte dos alunos e suas famílias, principalmente em disciplinas como Geografia, História e Ciências, no ensino fundamental; e Biologia, no ensino médio [7,8]. Por exemplo, o criacionismo cultivado pelas vertentes fundamentalistas dos credos cristãos rejeita o conhecimento gerado pelas pesquisas científicas sobre a formação do planeta Terra e a evolução dos seres vivos pela seleção natural. O confessionalismo impede compreender a catequização dos indígenas no período colonial e até os dias atuais como um misto de genocídio e etnocídio. A imputação ao Exército Brasileiro de um presumido poder moderador dos conflitos políticos criados pelos civis (e não resolvidos por eles), ao longo de nossa história, impede o tratamento de questões importantes como os binômios ditadura-democracia e legalidade-legitimidade [9]. Todos esses problemas foram agravados pela socialização político-ideológica extraescolar dos alunos na guerra cultural desfechada há alguns anos e promovida pelo próprio presidente Bolsonaro, sob a direção intelectual de Olavo de Carvalho, implicando a negação da realidade e o desprezo das ciências [10].

    Os efeitos das políticas e dos movimentos de pressão pela socialização político-ideológica de viés conservador já se fizeram sentir no Plano Nacional de Educação 2014-2024 quanto a temas que permeariam todo o currículo da educação básica, particularmente gênero e orientação sexual. Estes não foram aceitos pelos segmentos mais conservadores, e o Senado os diluiu na mais geral "promoção da cidadania e erradicação de todas as formas de discriminação". Imediatamente após, as bancadas conservadoras das assembleias legislativas e das câmaras de vereadores se sentiram apoiadas para replicar os procedimentos de suas homólogas federais. Já não eram apenas as bancadas evangélicas atuando a descoberto na luta pela pauta moral, mas toda uma frente conservadora, sem medo de ostentar esse adjetivo.

    A sustentação dessas posições tomou forma no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), provedor essencial das escolas públicas de educação básica, responsável pela compra cerca de 200 milhões de exemplares, no valor da ordem de bilhão de reais. São livros publicados por editoras privadas, escolhidos pelos professores em listas aprovadas pelo Ministério da Educação. O MEC publica os critérios de avaliação com alguns anos de antecedência, de modo que as editoras tenham tempo de adaptar as obras. Contrariando experiência bem-sucedida, a composição das comissões avaliadoras foi alterada durante o governo Temer, substituindo-se os docentes de universidades públicas por pessoas nomeadas pelo ministro. E o edital para 2023 foi alterado, suprimida a proibição de conteúdos racistas ou de inferiorização da mulher e de preconceitos regionais, substituída por expressões genéricas. Os editores entenderam o recado. Além da dissimulação de termos como ditadura militar por movimento ou regime militar, preocupam-se com a eliminação de referências a sexo e gênero, temas tabus para as vertentes conservadoras.

    Em 1922, a educação não foi enaltecida na celebração do primeiro centenário da Independência. O grande número de analfabetos impedia o ufanismo. Além da dimensão quantitativa, a qualitativa se definia pela ausência da função legitimadora da ordem política desafiada de dentro do próprio Estado pelo movimento tenentista. Em 2022, a dimensão quantitativa segue marcada pelas carências, apesar do avanço no acesso à educação básica. Todavia, a socialização político-ideológica de caráter conservador e até reacionário assume um lugar inédito, induzida por instituições, grupos e movimentos que tiram proveito de seu poder no Estado. Antes da assunção de Temer à Presidência da República o fenômeno já se fazia presente, mas um verdadeiro retrocesso ocorreu no seu governo e no de Bolsonaro.

    A despeito de tudo o que foi dito, este texto termina com uma palavra de otimismo com base em fatos. No segundo centenário da Independência, o campo educacional atingiu um grau inédito de profissionalização, com algumas dezenas de universidades dignas desse status, desenvolvendo pesquisa e pós-graduação, particularmente a voltada para o ensino nas disciplinas Matemática, Física, Química, Biologia, História e Sociologia, tanto em programas acadêmicos quanto profissionais. Experiências exitosas têm sido desenvolvidas no sentido de se fazer da escola pública um instrumento propiciador do acesso das classes populares à ciência, à cultura e à tecnologia. A criação do Sistema Nacional de Educação caminha, embora a passos lentos. Previsto na emenda constitucional nº 59/2009, ele pode vir a ser efetivado a partir de projeto de lei complementar aprovado no Senado em março de 2022, que segue em tramitação na Câmara dos Deputados.

    Deixei para o fim, mas não em último lugar, o desenvolvimento de uma consciência da laicidade do Estado, algo inexistente por ocasião do primeiro centenário: até aquela data, nenhum livro havia sido publicado no país sobre essa questão. Hoje são dezenas de títulos, além de artigos em revistas das Ciências Humanas e Sociais. Mesmo carecendo de maioria, defensores do Estado laico são encontrados no Poder Judiciário, no Ministério Público, no Poder Legislativo federal, estadual e municipal, nos movimentos sociais e sindicais, nas universidades, assim como em instituições promotoras da ciência e da cultura. Por isso, creio que estamos equipados para superar essa má fase em que se encontra a educação brasileira e inaugurar outra, em que haverá motivos para celebrar novas e promissoras independências.

     

    Notas

    [i] Para estudos empíricos no Brasil, remeto ao dossiê sobre esse tema organizado por Kimi et al. (2016) [11].

     

    Referências

    1. LAGROYE, J.; FRANÇOIS, B.; SAWICKI, F. Sociologie politique. Paris: Presses de Sciences Po-Dalloz, 2006.

    2. BRUNEAU, T. C. O catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo: Edições Loyola, 1974.

    3. D’AVILA-LEVY, C. M.; CUNHA, L. A. (orgs.). Embates em torno do Estado laico [livro eletrônico]. São Paulo: SBPC, 2018.

    4. AMARAL, D. P.; CASTRO, M. M. A Educação Moral e Cívica: a retomada da obrigatoriedade pela agenda conservadora. Cadernos de Pesquisa, v. 50, n. 178, out. 2020.

    5. BRASIL. Agência Brasil. Governo lança Programa das Escolas Cívico-Militares [online]. Brasília: Agência Brasil, set. 2019, Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-09/governo-lanca-programa-para-escolas-civico-militares. Acesso em: 23 mai. 2022.

    6. CUNHA, L. A. Religião, moral e civismo em curso: a marcha da socialização política. Retratos da Escola, Brasília, v. 13, n. 27, set./dez. 2019.

    7. DORVILLÉ, L. F. M.; SELLES, S. E. Ensino de evolução e criacionismo na educação básica: ressignificação de um debate em tempos sombrios. In: D’AVILA-LEVY, C. M.; CUNHA, L. A. (orgs.). Embates em torno do Estado laico [livro eletrônico]. São Paulo: SBPC, 2018, 292 pp.

    8. FALCÃO, E. B. M. Laicidade e Ensino de Ciências: reflexões sobre o estudo dos fenômenos da vida no Ensino Médio. In: D’AVILA-LEVY, C. M.; CUNHA, L. A. (orgs.). Embates em torno do Estado laico [livro eletrônico]. São Paulo: SBPC, 2018, p. 163-182.

    9. GASPAROTTO, A.; BAUER, C. S. O ensino de História e os usos do passado: a ditadura civil-militar em sala de aula [livro eletrônico]. In: ANDRADE, J. A.; PEREIRA, N. M. (orgs.). Ensino de História e suas práticas de pesquisa. São Leopoldo: Oikos, 2021, p. 438-451.

    10. ROCHA, J. C. C. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Goiânia: Caminhos, 2021.

    11. KIMI, T; SILVA, M. G. V.; CARVALHO-SILVA, H. H. Dossiê socialização política. Educação & Sociedade, Campinas, v. 37, n. 137, out./dez. 2016.