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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.74 no.3 São Paulo July/Sept. 2022

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220050 

    REPORTAGEM

     

    A origem histórica das sociedades científicas no Brasil: entidades foram fundamentais para a institucionalização da ciência e para o desenvolvimento científico no país

     

     

    Chris Bueno

    Jornalista, escritora, divulgadora de ciências, editora-executiva da revista Ciência & Cultura, e mãe apaixonada por escrever (especialmente sobre ciência)

     

     

     

    A ciência é tratada como uma atividade periférica ou até mesmo supérflua em muitos países em desenvolvimento. Neste cenário, o papel das sociedades científicas se torna ainda mais fundamental, defendendo o interesse de seus associados, estimulando a pesquisa científica e promovendo a divulgação da ciência e, muitas vezes, indo além de seu escopo e lutando por causas como inclusão cultural e de gênero, proteção ambiental, democracia e justiça social.

    Ao longo da história das ciências as sociedades científicas foram e continuam sendo organismos essenciais. Elas contribuem para a geração das próprias ciências e as profissões que nelas se alicerçam, preservando sua história, divulgando seu conhecimento e criando condições para o desenvolvimento científico e profissional. Além disso, ajudam a criar uma cultura de apoio ao desenvolvimento impulsionado pela ciência e tecnologia por meio de iniciativas públicas e outras medidas.

    "Se analisarmos a ação das sociedades científicas europeias e americanas, por exemplo, podemos ver seu gigantesco papel no desenvolvimento e na divulgação da ciência", explica Carlos A. L. Filgueiras, professor do Departamento de Química da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para o pesquisador, no Brasil, boa parte das elites dirigentes tem escasso conhecimento científico e não consegue perceber o papel crucial da ciência para o progresso intelectual e material do país. Isto se reflete em boa parte da população. "Por isso é importante repetir que o desempenho das sociedades científicas não só junto aos cientistas, mas também junto à população em geral, é mais que nunca vital. A ignorância do papel da ciência no mundo moderno condenará o país a um atraso sempre maior" enfatiza.

     

    "A ignorância do papel da ciência no mundo moderno condenará o país a um atraso sempre maior."

     

    Para Débora Menezes, professora do programa de pós-graduação em Física da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF), as sociedades científicas sempre foram catalisadoras de ideias novas e representaram, desde o seu início, os interesses das diversas áreas do conhecimento que, no fundo, são os interesses da sociedade. "Na conjuntura brasileira atual, quando o negacionismo científico faz parte do discurso governamental, a importância das sociedades científicas torna-se mais evidente e o seu papel como defensoras da ciência e, portanto, de um futuro melhor para o país, passa a ser uma luta diária", afirma.

     

    Uma origem histórica

    As sociedades científicas têm uma origem histórica longínqua, que remonta à época do Renascimento. No período, novos incentivos à pesquisa científica levaram ao surgimento de organizações que reuniam os grandes pensadores da época. O objetivo era melhorar a compreensão humana em campos como astronomia, botânica, filosofia e história através da discussão e a troca de ideias e descobertas. Esses grupos foram precursores de renomadas instituições científicas como L'Accademia Nazionale dei Lincei (Itália, 1603), German Academy of Sciences Leopoldina (Alemanha, 1652), The Royal Society (Inglaterra, 1660), Académie des Sciences (França, 1666) e The American Philosophical Society (Estados Unidos, 1743).

    Essas associações inspiraram outras iniciativas ao redor do mundo. Durante o século XVIII, sociedades científicas foram formadas na maioria das capitais da Europa e em muitas das províncias menores. Elas proporcionavam um lugar para compartilhar e disseminar o conhecimento - especialmente através de seus periódicos, que se tornavam cada vez mais populares e importantes para o desenvolvimento científico.

    No Brasil, uma das primeiras tentativas de organização científica também data do século XVIII: a Academia Científica do Rio de Janeiro, criada pelo marquês do Lavradio em 1772 visando a difusão de determinados aspectos da ciência entre a elite local. A entidade tinha apenas nove membros e durou somente sete anos. Foi sucedida pouco tempo depois pela Sociedade Literária do Rio de Janeiro, que também teve vida curta: foi fechada por razões políticas com seus membros aprisionados sob acusação de conspiração pró-independência da colônia.

    No século seguinte, houve poucas tentativas de organização das poucas pessoas que trabalhavam com ciência, mas surgiram entidades ligadas a setores profissionais, como os de engenharia e medicina. A Academia Nacional de Medicina foi criada em 1829 e o Clube de Engenharia em 1880. Voltada para a indústria, foi estabelecida a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional em 1831 e, sete anos mais tarde, surgia o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), com foco na preservação histórico-geográfica, cultural e de ciências sociais.

    As atividades científicas brasileiras centralizaram-se no Rio de Janeiro durante todo o século XIX. Segundo Maria Amélia Mascarenhas Dantes, em seu artigo "As Ciências na História Brasileira", isso ocorreu porque era na então capital brasileira que estavam concentrados os profissionais, brasileiros e estrangeiros, que começaram a se organizar em associações. Porém, com a República, teve início uma diversificação regional no desenvolvimento científico e técnico, que se ampliou durante o século XX. Assim, já no final do século XIX, escolas de engenharia, faculdades de medicina, museus de história natural e institutos ligados à área da saúde começam a proliferar por todo o país.

    Desta forma, no século XX, as sociedades científicas se multiplicaram - especialmente em sua segunda metade, quando a ciência cresceu no país, as universidades se espalharam pelo território nacional e surgiu a pós-graduação. Uma importante iniciativa de organização surgiu em 1916, com a criação da Sociedade Brasileira de Ciência, depois Academia Brasileira de Ciência (ABC), uma sociedade que teve papel de destaque no desenvolvimento da ciência no Brasil (Figura 1). Um pouco mais tarde, já na década de 1930 surgiram as primeiras faculdades de filosofia ciências e letras, em São Paulo e no Rio de Janeiro, que possibilitaram a formação de professores e pesquisadores em diversas áreas científicas.

    Apesar de várias iniciativas espalhadas por todo o país, a produção de ciência no Brasil ainda era pequena neste período inicial do século. Havia poucas instituições de pesquisa e a grande maioria das universidades ainda não tinha a tradição de fazer pesquisa. Após o término da Segunda Guerra Mundial, tornou-se mais evidente a necessidade de incentivar a ciência para promover o desenvolvimento social e econômico. Neste cenário, um grupo de cientistas decidiu criar, em 8 de julho de 1948, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) (Figura 2). Seus principais articuladores foram Mauricio Rocha e Silva (Faculdade de Medicina - UFRJ), Paulo Sawaya (Departamento de Fisiologia - USP) e José Reis (Instituto Biológico de São Paulo - IB), mas também havia outros envolvidos como José Ribeiro do Vale (Instituto Butantan), Luiz Gastão Mange Rosenfeld (Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo) e Francisco João Maffei (Instituto de Pesquisas Tecnológicas - USP).

    "A SBPC sempre lutou pelo desenvolvimento da ciência brasileira, desde sua origem", aponta Fernanda Sobral, pesquisadora associada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e vice-presidente da SBPC. A pesquisadora conta que a entidade foi criada em um momento que o então governador de São Paulo pretendia reduzir as atividades de pesquisa em química orgânica e endocrinologia do Instituto Butantã, o que levou a uma mobilização da comunidade científica. "A razão de ser da SBPC sempre foi a defesa da liberdade de pesquisa, a independência do cientista brasileiro, e isso tem sido ao longo de sua história".

    Embora já existissem algumas sociedades científicas no Brasil, a SBPC foi o embrião de criação de várias outras e assumiu, de certo modo, o papel de uni-las para buscarem juntas a expansão e a valorização da ciência nacional. "É importante ter as sociedades específicas, que reúnem pesquisadores de cada área, e ter uma sociedade que reúna todas as áreas. E a SBPC reúne 170 sociedades de diversas áreas. Além de reunir cientistas, ela agrega também amigos da ciência", aponta Sobral.

     

    O papel das sociedades

    Hoje o Brasil possui inúmeras sociedades cientificas espalhadas em quase todas as áreas do conhecimento e muitas delas com estruturas regionais. Não é possível mencionar todas as mais de duas centenas de sociedades científicas existentes.

    Uma das mais antigas é a Sociedade Brasileira de Química (SBQ), fundada em 1922, no Rio de Janeiro, que realizou vários congressos e publicou a Revista Brasileira de Chimica, sucedida pela Revista da Sociedade Brasileira de Química, e que foi fechada em 1951. Em 1977, no bojo da 29.ª Reunião Anual da SBPC (Figura 3), surge a atual Sociedade Brasileira de Química (SBQ). "A SBQ esteve e está sempre presente nas principais iniciativas voltadas para o progresso e a ampliação das atividades da Química no Brasil. Todavia, é preciso que seja mais bem conhecida e apoiada pela população brasileira e pelas autoridades e órgãos governamentais em todos os níveis", aponta Filgueiras. "Vivemos num mundo permeado pela química em todos os seus aspectos, e toda a população deseja usufruir das benesses proporcionadas pela química, que como ciência central está presente em toda a vida humana", afirma.

    Já a Sociedade Brasileira de Física (SBF) foi fundada em 1966, germinada na SBPC, e também foi uma das primeiras entidades a se organizar e a passar a defender interesses próprios e, na época da ditadura, a apoiar os físicos brasileiros que foram perseguidos. "A física tem papel central no desenvolvimento de várias outras áreas e a SBF, tanto por meio de publicações científicas, como pelo estímulo à participação dos seus sócios em eventos temáticos, desempenhou papel importante na estruturação da área e dos programas de pós-graduação. Ao longo do tempo, a SBF também se voltou para os estudantes do ensino fundamental e médio, por meio das olimpíadas brasileiras (Olimpíada Brasileira de Física - OBF e Olimpíada Brasileira de Física das Escolas Públicas - OBFEP)", explica Menezes.

    Em 1978 foi fundada a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), congregando programas de pós-graduação stricto sensu em educação, assim como professores, estudantes e demais pesquisadores da área. Ao longo de sua história, a entidade em atuando nas principais lutas pela universalização e desenvolvimento da educação no Brasil. Um ano depois, durante a 1.ª Reunião sobre Formação e Utilização de Pessoal de Nível Superior na Área da Saúde Pública, realizada na sede da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), em Brasília, foi criada a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), visando atuar como mecanismo de apoio e articulação entre os centros de treinamento, ensino e pesquisa em Saúde Coletiva. No decorrer de sua história, a Abrasco tem sido uma entidade ativa na formulação e no monitoramento das políticas públicas de saúde, de educação e de ciência e tecnologia.

    A Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), fundada em 1986, congrega 22 Sociedades Associadas visando a difusão dos conhecimentos científicos e a representação junto às autoridades governamentais e à sociedade em geral na defesa do desenvolvimento da ciência. "O ativismo em favor da ciência, em particular em nosso país, nunca foi tão necessário. Neste momento, nada melhor do que indagar qual a função das sociedades científicas e, no nosso caso, qual a função de uma Federação. Acredito que, a primeira das suas funções é esclarecer continuamente e ampliar os horizontes", afirma Hernandes F. Carvalho, ex-presidente da federação, em carta aberta.

     

    Para além da ciência

    Como essas, muitas outras sociedades científicas ao longo de suas histórias e por todo o Brasil vem cumprindo um papel fundamental no desenvolvimento da ciência. E não só: elas também são essenciais em questões políticas e sociais. Iniciativas recentes mostram seu envolvimento com questões que extrapolam o âmbito da ciência, como a defesa dos direitos humanos, da cidadania, da educação e da democracia.

    "Atualmente as lutas da SBF são três: dar visibilidade a tudo que faz, melhorar a diversidade na área e conseguir a criação do Conselho Federal de Física", aponta Menezes. "No que tange à falta de diversidade, o problema é comum nas áreas STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), mas um levantamento do Grupo de Trabalho sobre Questões de Gênero (recentemente substituído pela Comissão de Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão) apontou que a SBF é muito 'não diversa' e que casos de assédio moral e sexual são recorrentes. Estamos trabalhando para mudar esse quadro".

    Além da luta contra os cortes sistemáticos que a ciência vem sofrendo e para garantir o financiamento adequado para o setor, a SBPC também tem se empenhado em defender o acesso adequado e igualitário à saúde e à educação, a diversidade (e a inclusão) cultural e de gênero, a proteção do meio ambiente e dos povos originários, e a democracia. "As principais lutas da SBPC no atual momento são derrubar a Emenda Constitucional 95, que dá o teto de gastos e dificulta bastante o financiamento da pesquisa no Brasil, e pela observância da Lei 177, que proibiu o contingenciamento dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Além disso, também lutamos pela valorização das bolsas de estudos, solicitando tanto o aumento do número de bolsas para estudantes de graduação e pós-graduação, como o aumento do valor das bolsas, que está muito defasado e com isso não atrai para a carreira acadêmica", explica Sobral.

    A falta de financiamento e os cortes sistemáticos que a ciência vem sofrendo no Brasil talvez sejam os maiores desafios que os cientistas enfrentam - e uma das maiores lutas das sociedades científicas. Para Filgueiras, permanece no Brasil uma percepção de que os recursos aplicados nesse setor são gastos, e não investimentos. "Não se faz pesquisa sem grandes investimentos, que no Brasil são ainda muito deficientes. O retorno financeiro para o país deste tipo de investimento não só é abundante como gerador de prestígio nacional. Ao mesmo tempo, é preciso investir numa educação científica de qualidade e inclusiva, assim como na divulgação científica. As sociedades científicas têm cumprido um excelente papel nesse sentido, mas a educação científica e a divulgação por parte da mídia em geral é bastante deficiente, seja em termos qualitativos ou qualitativos", enfatiza.

     

    "A importância das sociedades científicas torna-se mais evidente e o seu papel como defensoras da ciência e, portanto, de um futuro melhor para o país, passa a ser uma luta diária."

     

    Leia mais:

    Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Ciência para o Brasil - 70 anos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). São Paulo: SBPC, 2020.