SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.74 número4 índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

    Links relacionados

    • En proceso de indezaciónCitado por Google
    • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

    Compartir


    Ciência e Cultura

    versión impresa ISSN 0009-6725versión On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.74 no.4 São Paulo dic. 2022

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20220069 

    10.5935/2317-6660.20220069 OPINIÃO

     

    A perpétua germinação clássica: pensamento grego impactou significativamente meios acadêmicos e sociais e continua estimulando a reflexão

     

     

    Francisco Marshall

    Historiador e arqueólogo, professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde atua no Departamento de História (IFCH) e no Curso de Bacharelado em História da Arte (IA). É pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt e membro da Academia Nacional de Ciências de Buenos Aires. É também ensaísta, colunista na imprensa, produtor e dirigente cultural e criador de música atual

     

     

    "A Grécia é para nós um gérmen: nem um modelo, nem um espécime entre outros, mas um gérmen."
    (Cornelius Castoriadis, 1987) [1]

    Com esta frase, o filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis (1922-1997) equacionou séculos de relacionamento histórico com a Grécia, do mundo romano às várias vagas neoclássicas modernas, alcançando também nossos meios acadêmicos e sociais. Por um lado, recusa-se a idealização que predominou até Nietzsche, por outro, evita-se a redução da cultura grega à condição de similaridade formal com qualquer cultura. Ciente destes embates, a interpretação da memória clássica avança e perpetua um diálogo que jamais se esgota, onde as fontes antigas conferem solidez à formação cultural e à aquisição de linguagens, conceitos, teorias e métodos e, estrategicamente, alimentam a reflexão necessária e dão potência à incidência social das ideias. Nesses processos, atuam modos dinâmicos de pensar o passado, ampliados por metáforas do método: arqueologia, origem, causa e fundamento, para pensarmos a fonte causal portadora de memória, a potência que rege por anterioridade, e gérmen, genética e genoma, para compreendermos que aquela memória codificada pode vir-a-ser a qualquer momento, como fenômeno do mundo atual. A história grega não está soterrada, mas plantada em adubo do tempo, pronta para rebrotar, regada pelas ideias e demandas de cada era.

     

    Homero e a superação de paradigmas

    Por seu compromisso com a memória ancestral, com as formas do mito e com um modelo de sociedade aristocrática, Homero (século IX a.C.) tornou-se o monumento ideal para gerações de vanguarda contraporem-se e formularem novos paradigmas, para gregos e para a humanidade sua herdeira. A primeira grande contestação a Homero foi comportamental e estética, na obra de poetas como Safo (630-570 a.C.), mulher que compôs uma nova música animada por sexualidade autônoma e plena [2]. O núcleo do legado grego é pagão e erótico, e identifica-se com personalidades divergentes, seguras de si e plenas de vitalidade. Esse ethos aparece também nos versos iconoclastas de novos guerreiros, hoplitas, donos de suas armaduras e de seus destinos, como Arquíloco de Paros (712-648 a.C.), prontos para desdenhar as estruturas de poder tradicionais [3]. Nossa relação com a poesia lírica e com aquele mundo de criações admiráveis em todas as artes é ética e estética, com o encanto de obras-primas geradas por mentes e atitudes insurgentes (Figura 1).

     

     

    "A interpretação da memória clássica avança e perpetua um diálogo que jamais se esgota, onde as fontes antigas conferem solidez à formação cultural e à aquisição de linguagens, conceitos, teorias e métodos."

    Foi nessa época arcaica (séculos VII-VI a.C.), entre a obra de Homero e o apogeu clássico (séculos V e IV a.C.), tempo de crise social, que se elaboraram os marcos da revolução cultural grega. Além da nova poesia (erótica ou lírica), desenvolveram-se as religiões de mistérios, movimentos religiosos em contraponto ao credo olímpico, na era que viu surgir a pólis, regida por leis pactuadas, e também novas tecnologias, como a escrita (750 a.C.) e a moeda (século VII a.C.). Nesse cenário de transformações, ergueu-se a fortaleza mais possante da história do conhecimento, a filosofia, em Mileto, onde Tales (dito "o fenício", 625-558 a.C.) predisse com sucesso o eclipse de 28 de maio de 585 a.C.. Fazendo bom uso da fecunda herança oriental, de astronomia e geometria, o primeiro filósofo fez da análise empírica um novo fundamento para o conhecimento, um mudo de evidências, associado ao poder de teorias lógicas. Na escola de Mileto floresceu por séculos o racionalismo especulativo, aplicado a cosmos, cidade e corpo, e da filosofia proveio a etiologia - análise da aitia, causa.

     

    Thauma

    No diálogo Teeteto, e em outras passagens, Platão (427-367 a.C.) faz Sócrates declarar que "o espanto (thauma) é único princípio da filosofia" (155d); Aristóteles (384-322 a.C.), pensando em qual fator gera um filósofo, diz: "todos começam espantando-se de que todas as coisas são como são." [4]. Há no pensar grego o vigor de atos inaugurais, que desvelam conceitos para edificar visões complexas sobre o mundo, a vida, a sociedade, o indivíduo e seus dilemas. Naquela coleção de espantos, lemos a gênese vigorosa de ideias fundamentais, o glossário dos conceitos com que se pode examinar o que importa, em qualquer era. Com a compreensão do princípio de ordem - logos, avançamos para examinar o fundamento que é também origem com poder para ordenar (arché) ou, como fez Anaximandro (610-547 a.C.), movemo-nos para a análise do ápeiron (ilimitado) ou das aporias (perplexidades) que inquietaram Platão em seus diálogos de maturidade. Desde Tales e sua proposta física, tó hydor - a água - para examinar o mundo por critério empírico, aqueles filósofos nos fizeram ver que o conhecimento depende de evidência (tekmérion), para com isso compreendermos o fundamento seguro que desloca o mito em favor de saberes determinados e comprovados. Com esse critério formal, a evidência, nutriu-se o direito, a medicina, a história e todas as ciências beneficiadas pela análise objetiva de fenômenos, em uma sociedade em que a norma (nómos) escrita se impôs como patrimônio coletivo para dar segurança ao convívio e seus conflitos. Que bela lição para nós, que temerariamente recuamos para as fantasias por vezes terríveis do mito, desdenhando o valor elementar das provas e sua análise lógica para estribar cada diagnóstico ou sentença - mormente as que podem alterar o destino de muitas vidas e de uma nação (Figura 2).

     

     

    Nómos e isonomia

    O exame do nómos - norma, convenção ou lei (também modo musical) - leva-nos ao quadro histórico mais importante do mundo grego, a elaboração de juízos sobre a natureza da lei e suas transformações na vida em sociedade. Partimos, então, da crítica social aguda, apresentada pelo último épico, Hesíodo (século VII a.C.), em "Os trabalhos e os Dias" [5]. Escrito em era de luta civil e penúria, o texto mostra a indignação do autor com seu irmão, Perses, e com reis-juízes "comedores de presentes" (doróphagoi), cuja iniquidade produz mal para todos - inclusive para quem julga beneficiar-se de injustiças. Então o poeta antepõe o prefixo dys (torto, deformado) e forma a palavra que expressa a lei deturpada, de juízes corruptos e homens indevidamente ambiciosos, a disnomia, grande mal moral e social. Algumas décadas após Hesíodo, Sólon de Atenas (638-558 a.C.), legislador (nomotheta) que encaminhou Atenas para sua modernização política, retomou a palavra nómos para pensar a boa norma que poderia conter a arrogância (hybris) dos poderosos e levar ao equilíbrio na polis, a eunomia, boa norma (prefixo eu), nome de um de seus poemas, em que se cantava e dançava regra amigável para a pólis [6] (Figura 3).

     

     

    Duas gerações após as reformas de Sólon (594 a.C.), quando Atenas superou a tirania e avançou para sua revolução política, na reforma de Clístenes (510-508 a.C.), agregou-se a nomos o prefixo iso para designar o regime em que se trataria da equalização da sociedade por via jurídica - a isonomia, termo com que os gregos designaram o que nós chamamos democracia, e tomamos por modelo sem lhe observar corretamente fundamentos e potências. A palavra democracia, utilizada pela primeira vez somente em 424 a.C., quando o regime já vivia crises severas, designava soberania popular, motor da isonomia. Esta palavra, contudo, além da matriz jurídica, implicava também a dimensão política da assimetria econômica, os conflitos entre ricos e pobres, e o imperativo de achar-se solução harmônica, para o bem de todos, na pólis. É preciso pensar a natureza e o poder de boas leis (eunomiai) para reformas sociais que solucionem conflitos, e não para regras deformadas que ampliem iniquidades (disnomia), como ocorre nas manipulações ideológicas em se agravam a violência e a miséria.

    Da isonomia (democracia) clássica, resta-nos aprender o modo ousado com que mobilizavam o conjunto de cidadãos, por meio de sorteios e muitas atribuições cívicas para todos, algo que tangenciamos, no Brasil, na experiência do orçamento participativo, a partir de 1989 em Porto Alegre, aliás insuflado pelo mesmo Castoriadis (aqui citado em epígrafe) [7]. Carecemos igualmente de versões atualizadas do principal foro judiciário ateniense clássico, a heliaia, tribunal popular. À falta deste ou de formas de controle popular da prática judicial, expomo-nos a situações penosas, como os casos de lawfare recentemente evidenciados, ou vemos o risco da alienação de classe, cevando-se oligarquia no seio da democracia.

    Respondamos, ainda, às críticas vulgares à democracia clássica: seus males, escravismo, ginecofobia e xenofobia, são conhecidos e hoje facilmente combatidos; não há por que descartar o exame das relações entre aquela experiência e nossas condições históricas, como o fez, admiravelmente, o historiador inglês Moses Finley, nas obras "Democracia antiga e moderna" [8] e "Escravidão antiga e ideologia moderna" [9], avatares no trato da recepção política de memória e história clássicas. Mais que herdar palavra, precisamos compreender o fenômeno histórico, e dar à sua memória genética as mutações necessárias em nossa era [10] (Figura 4).

     

     

    Emancipação

    Grau maior de nossa vida no pensamento grego realiza-se quando passamos a especular com palavras helênicas e com elas criar conceitos atuais, modernos e enraizados no fecundo território clássico. É o que fez Immanuel Kant (1724-1804) em sua "Fundamentação da metafísica dos costumes" [4], quando partiu do conceito antigo de autonomia, antes usado para designar a cidade que vive pelas próprias leis [11,12], para passar a referir a independência moral do indivíduo. Foi neste contexto que Kant cunhou o neologismo complementar e oposto, heteronomia, que funde heteros (o outro) e nomos (regra), para designar os casos em que a norma é imposta de fora para dentro, pelo Estado ou pela religião, à custa da aquisição ética dos princípios por opção ou determinação do indivíduo. Desta matriz evoluiu um dos mais percucientes conceitos de ética e filosofia política, tratado especialmente por Marcel Gauchet [13] para pensar religião, sociedade, poder, Estado e liberdade, do mundo antigo ao atual. Esta discussão se atualiza no momento em que cresce o poder da tutela religiosa e de outras fontes de informação manipuladoras na sociedade contemporânea, à custa da liberdade individual e da democracia, exposta a um contrabando de princípios que pode feri-la letalmente. Resta-nos recuperar e renovar, a cada geração, o vigor das fontes do pensamento grego, para muitas e nobres finalidades, na necessária missão de ampliarmos os caminhos para a emancipação e a felicidade.

    "Da isonomia (democracia) clássica, restanos aprender o modo ousado com que mobilizavam o conjunto de cidadãos, por meio de sorteios e muitas atribuições cívicas para todos, algo que tangenciamos, no Brasil, na experiência do orçamento participativo."

    "Esta discussão se atualiza no momento em que cresce o poder da tutela religiosa e de outras fontes de informação manipuladoras na sociedade contemporânea, à custa da liberdade individual e da democracia, exposta a um contrabando de princípios que pode feri-la letalmente."

     

    Referências

    1. CASTORIADIS, C. A pólis grega e a criação da democracia. In: As encruzilhadas do labirinto 2 - os domínios do homem. Rio de Janeiro (RJ): Paz e Terra, p. 268-275, 1987.

    2. SAFO. Poemas e fragmentos. Traduzido por Joaquim Brasil Fontes. São Paulo (SP): Editora Iluminuras, 2003.

    3. CORREA, P. C. Armas e Varões: a guerra na lírica de Arquíloco. São Paulo (SP): Editora da Unesp, 1998.

    4. KANT, I. Fundação da Metafísica dos Costumes. Coimbra: Edições 70, 2009.

    5. HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Introdução, tradução e comentários de Mary Camargo Neves Lafer, 3ª ed. São Paulo (SP): Iluminuras, 1990.

    6. BARROS, G. N. M. Sólon de Atenas. A cidadania antiga. São Paulo (SP): Humanitas FFLCH/USP, 1999.

    7. CASTORIADIS, C. O futuro da democracia [YouTube]. Conferência proferida em Porto Alegre em setembro de 1991. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zdey-q6hDHo&feature=share&si=ELPmzJkDCLju2KnD5oyZMQ. Acesso em: 03 nov. 2022.

    8. FINLEY, M. I. Democracia antiga e moderna. Rio de Janeiro (RJ): Graal, 1988.

    9. FINLEY, M. I. Escravidão antiga e ideologia moderna. Rio de Janeiro (RJ): Graal, 1991.

    10. FINLEY, M. I. Uso y abuso de la historia. Barcelona: Ed. Crítica, 1984.

    11. SCHNEEWIND, J. B. The invention of autonomy: a history of modern moral philosophy. New York: Cambridge University Press, 1998.

    12. SWAINE, L. The origins of autonomy. History of Political Thought, 37(2), p. 216-237, 2016.

    13. GAUCHET, M. A dívida do sentido e as raízes do Estado. In: CLASTRES, P. et al., eds. Guerra, religião e poder. Coimbra: Edições 70, 1980.