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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.75 no.3 São Paulo July/Sept. 2023

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230033 

    EDITORIAL

     

    Integração latino-americana e democracia: a união da América Latina em um momento de turbulências e crises é um desafio, mas também uma solução

     

     

    José Vicente Tavares-dos-Santos

    Professor do Departamento de Sociologia, aposentado; professor dos Programas de Pós-graduação em Segurança Cidadã, Sociologia e de Políticas Públicas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, pesquisador do CNPq e editor deste número da Ciência & Cultura

     

     

    A abordagem do tema “Integração Latino-Americana e Democracia” será realizada de um modo multidisciplinar, envolvendo as dimensões ecológicas, econômicas, políticas, científicas e culturais.

    Poderíamos denominar nosso tempo de “A Era da Mundialização de Conflitualidades”, marcada pelo crescimento da produção industrial, o avanço do capital financeiro, o aumento das migrações internacionais, a pós-modernidade como forma cultural, a revolução das tecnologias da informação, a crise do meio ambiente e a crise social mundial. Desde os anos de 1990, novos dilemas e problemas sociais emergem no horizonte planetário, configurando novas questões sociais mundiais que se manifestam, de forma articulada e análoga, mas com distintas especificidades, nas diferentes sociedades.

    A lógica cultural dessa era de modernidade tardia, marcada pela insegurança, repõe a alteridade cultural, pois o culto da liberdade individual e o desdobramento da personalidade passam ao centro das preocupações. Entretanto, rompe-se a consciência coletiva da integração social. Vivemos uma situação de incerteza fabricada, na qual há uma pressão contínua para desmantelar as garantias socialmente construídas. Trata-se de uma ruptura do contrato social e dos laços sociais, provocando fenômenos de desfiliação e de ruptura nas relações de alteridade, dilacerando o vínculo entre o eu e o outro.

    Partimos de um contexto de incerteza mundial, em sistemas políticos complexos. Destaca Alfredo Peña-Vega (EHESS, Paris), em “Welcome à era da incerteza: uma reflexão antropolítica sobre um futuro global”:

    "Encontramo-nos num ponto de viragem decisivo na forma como entendemos e concebemos o nosso destino comum. As policrises globais estão a convergir, mas a sua simultaneidade não é o resultado de uma infeliz coincidência. São semelhantes a todas as outras que marcaram a história. Mas há uma diferença, na medida em que esta é a primeira policrise verdadeiramente global do nosso século. A hipótese central deste artigo é que as incertezas que surgiram na sequência da convulsão planetária da pandemia, da escalada da crise climática e do ressurgimento da guerra no coração da Europa são extremamente abrangentes, mas ao mesmo tempo inesperadas e prescientes. Inesperado, porque, por um lado, revela a necessidade de integrar a dúvida e o erro e a multidimensionalidade dos fenómenos no nosso modo de pensar, que deve ser o sino quo non da investigação, do exame e da reflexão".

    Iniciamos pela análise da integração da América Latina em uma perspectiva econômica. Seria a UNASUL, desde 2007, “uma alternativa econômica viável para que os países sul-americanos, ao se integrarem regionalmente, tenham estabilidade macroeconômica e desenvolvimento econômico e social?”, indaga Fernando Ferrari Filho (UFRGS):

    "A integração é uma etapa de agregação de interesses que leva à formação de ‘blocos econômicos’, que, por sua vez, vão de zona de livre comércio à união aduaneira, ao mercado comum e, finalmente, à união econômica e monetária. Neste sentido, o Mercosul é um processo, por exemplo. Outrossim, a estratégia de integração econômica deve estar aliada a mecanismos de realização da democracia, para gerar uma sociedade pluralista e participante. Do ponto de vista político, a região convive entre formalismos eleitorais e profundas clivagens ideológicas, que provocam uma consistente má qualidade da democracia."

    Permanecem, entretanto, os dilemas do espaço político na América Latina, salienta Benício Schmidt (UnB), em seu texto “América Latina: integração e democracia”:

    "A legitimação dos regimes democráticos também abarca a existência necessária de políticas públicas de proteção social, de formas previstas de participação popular para garantir a cidadania, e assim por diante. Tudo isso exige a conformidade com a contemporaneidade mundial, que tem destacado a emergência de novos processos de formação da opinião pública, com os usos de redes sociais, campanhas políticas com apelo à psicologia comportamental, uso de inteligência artificial partindo de dados publicamente disponíveis sobre perfis dos cidadãos e de grupos, e outros recursos disponíveis pelo acervo das ciências sociais contemporâneas".

    Lembra o autor que, em um contexto marcado também pelo ressurgimento de ideologias caracterizadas por adesão à xenofobia, misoginia e outras virtualidades, realizar a democracia em consonância com políticas de desenvolvimento econômico continua sendo um desafio.

    A cooperação econômica regional ressurge na reportagem de Bianca Bosso, pois mesmo com o avanço de regimes democráticos na América-Latina, a situação política dos países ainda se mostra como um dos dilemas a serem superados. Acresce-se a questão crucial do desenvolvimento sustentável, explica a matéria de Mariana Hafiz: a necessidade de implementar políticas públicas para segurança alimentar e nutricional, o combate ao desmatamento ilegal e a conservação do patrimônio genético da floresta. Também se destacou a importância de incluir os povos originários em todos os debates, envolvendo o desenvolvimento sustentável da Amazônia nos próximos anos, incluindo mulheres e amazônidas urbanos. Cita o projeto de Alfredo Wagner (UFMA) que trata de garantir o desenvolvimento sustentável e levantar ações para combater mudanças climáticas, criando condições para os povos que habitam a região promoverem as suas próprias formas de proteção e defesa dos territórios, e de áreas preservadas, incluindo as terras e os rios da região. 

    "Vivemos uma situação de incerteza fabricada, na qual há uma pressão contínua para desmantelar as garantias socialmente construídas."

    A Era da Mundialização de Conflitualidades e das incertezas repõe a literatura e a arte como reflexões sobre a sociedade, a ciência e a política. Na América Latina, desde o século XVI, sucederam-se três modos de representação: o discurso da abundância, o discurso da carência e da violência e o discurso do futuro virtual [1]. Neste século XXI, ainda que os outros persistam, assoma-se a forma da violência [2]: as metamorfoses do romance histórico, do romance testemunho, do romance policial ou do romance da violência vêm a expressar tais figurações e hibridismos [3].

    "Em um contexto marcado também pelo ressurgimento de ideologias caracterizadas por adesão à xenofobia, misoginia e outras virtualidades, realizar a democracia em consonância com políticas de desenvolvimento econômico continua sendo um desafio."

    Escreve Enio Passiani (UFRGS), em “Memória, trauma e ditadura no Brasil: a literatura testemunhal de Renato Tapajós”, que a violência política exige a restauração da memória contra a indiferença:

    "Tal política da memória, por conseguinte, mantém abertas feridas traumáticas e instala um luto insuperável, contribuindo para que o passado não passe, comprometendo o nosso futuro, mesmo quando essa política é invocada em nome da conciliação e da superação em prol da transição (supostamente) harmônica e saudável dos regimes autoritários para os democráticos".

    Precisa o objeto de seu estudo:

    "O romance testemunhal, como é o caso do livro de Renato Tapajós, não deixa de representar uma espécie de trabalho coletivo de elaboração do passado traumático uma vez que permite e amplia a circulação social de um conjunto de experiência dolorosas vividas individualmente, mas que são o produto de condições sociais e históricas que ressoam coletivamente, possibilitando o reconhecimento da dor alheia".

    Também o estudo das memórias e das trajetórias de mulheres exiladas da América Latina e do Cone Sul, no período ditatorial das décadas de 1970 e 1980, exige uma abordagem das práticas repressivas estatais e paraestatais, bem como recordar as trajetórias ideológicas.

    O texto de Nília Viscardi (UDELAR, Uruguay), em “Exilios y resistencias de militantes uruguayas: arte, cuerpo y género a 50 años del golpe de estado” evoca a memória de uma dançarina, Ema Haberli, expressando uma combinatória corpo-solidariedade-trabalho-dança contemporânea e militância ecológica:

    "A revisão das biografias de mulheres no exílio centra-se nas diferenças a partir de uma perspectiva de gênero para compreender a memória e reconstruir a própria história oral. A forma como o exílio é percebido e como se dá a resposta às situações de vida que nele surgem mostram diferenças entre homens e mulheres expressas nos problemas de vida que são abordados nas biografias".

    Afinal, trata-se de reconhecer heranças, sofridas e afetuosas, a palmar o futuro, nos versos da cientista poeta Ângela Wyse, neurocientista (UFRGS):

    "Ouço alguém pisando o chão

    Vejo marcas positivas deixadas no

    Caminho de quem muito andou

    E passos na terra deixada por quem plantou" [4].

    No plano das virtualidades futuras, as lutas sociais, os sindicatos e os movimentos sociais traçam, juntamente com segmentos da intelectualidade universitária, uma agenda política para o aprofundamento da democracia na América Latina.

    As forças democráticas defendem o papel central das universidades na produção de conhecimento, ciência e tecnologia, seja nos processos de fabricação ou nas tecnologias sociais e, em particular, na construção da cidadania. Inclusive, ressaltam o papel fundamental das associações científicas – como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – nessa empreitada.

    Da mesma forma, há necessidade de se garantir o financiamento adequado das universidades públicas e dos sistemas de ciência, tecnologia e inovação, inclusive para propiciar aos jovens uma presença relevante no futuro da sociedade. Acelera-se, ainda, a combinação de práticas de democracia representativa com a democracia participativa (e o orçamento participativo), assim como a democracia deliberativa (em conselhos, por exemplo) [5].

    Foi possível, então, formular uma agenda para a democratização profunda das sociedades da América Latina, para além das especificidades nacionais [6]:

    "Há necessidade de se garantir o financiamento adequado das universidades públicas e dos sistemas de ciência, tecnologia e inovação, inclusive para propiciar aos jovens uma presença relevante no futuro da sociedade."

    • Implementar um marco legal para a ciência, tecnologia e inovação;

    • Revitalizar o ensino secundário, combinando a cultura humanista com a educação científica e tecnológica;

    • Garantir o papel central das universidades na produção de conhecimento, ciências, produção e tecnologias; em particular, na construção da cidadania. Portanto, o retomar do financiamento adequado das universidades públicas e dos sistemas de ciência, tecnologia e inovação, inclusive para proporcionar aos jovens papel relevante no futuro da sociedade;

    • Efetivar uma série de medidas contra a exclusão social e o desemprego, com a redução da pobreza e o aumento real dos salários-mínimos, acentuando a expansão do empreendedorismo, a participação da mulher e a geração de emprego e renda, a fim de ampliar a inclusão social;

    • Disseminar a inclusão digital em todos os espaços sociais;

    • Garantir do Estado Democrático de Direito;

    • Combinar as formas da democracia representativa com as formas da democracia participativa e deliberativa;

    • Retomar o crescimento económico, com a afirmação da Quarta Revolução Industrial, a economia digital, o fortalecimento da produção industrial e do setor dos serviços, e a expansão das micro e médias empresas;

    • Expandir a Reforma Agrária ampla e geral e assegurar um papel relevante aos produtores familiares;

    • Afirmar o modo de produção da segurança cidadã, como possibilidade de superação das violências e da violência de gênero;

    • Garantir os territórios, a economia e a cultura dos povos originários;

    • Preservar o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável;

    • Assegurar a produção da diversidade cultural, da democratização dos meios de comunicação e da valorização da multiplicidade de conhecimentos, em um diálogo crítico entre o senso comum, os pontos de vista tradicionais e o conhecimento científico, reafirmando o hibridismo como contribuição universal;

    • Reconhecer a diferença, afirmando os direitos humanos coletivos, garantindo os direitos das mulheres, reconhecendo a juventude, e promovendo a diversidade étnica e as ações afirmativas;

    • Renovar o multilateralismo nas relações internacionais, afirmando as interfaces Sul-Norte e Sul-Sul, e propondo o desenvolvimento sustentável, em um novo horizonte de cooperação latino-americana;

    • Afirmar a paz como direito universal.

    Este número da Ciência & Cultura insere-se em um contexto de imaginação econômica, política, científica e cultural, vislumbrando virtualidades para a América Latina do futuro. Pois, segundo o antropólogo Caleb Alves (UFRGS):

    "A leitura invade as linhas da mão e procura na indiferença dos pares qual destino ainda tem forças para resgatar tua humanidade."

     

    Referências

    1. ORTEGA, J. El sujeto dialógico: negociaciones de la modernidad conflictiva. México: FCE, 2010.

    2. ADORNO, S. Préface de la violence dans l’imaginaire latino-américain. In: CORTEN, A.; CÔTÉ, A. E. La violence dans l’imaginaire latino-américain. Québec: Presses de l’Université du Québec, 2008.

    3. TAVARES-DOS-SANTOS, J. V. Figuraciones de la violencia (sociología de novelas latinoamericanas). Buenos Aires: Teseo, 2022. / TAVARES-DOS-SANTOS, J. V. O romance da violência: sociologia das metamorfoses do romance policial. Porto Alegre: Tomo, 2020. / TAVARES-DOS-SANTOS, J. V.; VISCARDI, N. Apresentação. In: TAVARES-DOS-SANTOS, J. V.; VISCARDI, N. O público e o privado - literatura, sociedade e violência: um estudo em sociologia da conflitualidade. Fortaleza, CE: EdUECE, v. 21, n. 44, 2023.

    4. WYSE, A. Neuropoesia. Porto Alegre: Tomo, 2016.

    5. FEDOZZI, L. Orçamento participativo: reflexões sobre a experiência de Porto Alegre. Porto Alegre: Tomo, 2001. / SINTOMER, Y. O poder ao povo: júris de cidadãos, sorteio e democracia participativa. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

    6. TAVARES-DOS-SANTOS, J. V. Autoritarismo y crisis de la democracia: el neoliberalismo dependente conservador en Brasil. In: TORRES-RUÍZ, R.; SALINAS, D. Crisis política, autoritarismo y democracia. México: Siglo XXI, 2022.