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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.75 no.3 São Paulo jul./set. 2023

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230044 

    REPORTAGEM

     

    Arte na América Latina: do monumento ao testemunho. A arte permite que histórias locais extrapolem as fronteiras e ajudem a desconstruir histórias nacionalistas

     

     

    Patrícia Mariuzzo

    Divulgadora de ciência e coordenadora de comunicação do projeto HIDS Unicamp (Hub Internacional para o Desenvolvimento Sustentável)

     

     

    Em “Exílios, escombros, resistências”, o fotógrafo argentino Marcelo Brodsky fala sobre memória, exílios, violência e direitos humanos. No Museu Judaico, em São Paulo, a exposição, que fica em cartaz até novembro, traz uma retrospectiva da obra do artista que, para além do registro fotográfico, costuma fazer intervenções nas fotos, ora escrevendo, ora desenhando. Um dos eixos da mostra tem como foco as diversas ditaduras na América Latina, nos anos 1960. Em uma das intervenções, ele pinta as mãos dadas de Leila Diniz, Odete Lara, Normal Bengell e outras atrizes em uma foto de arquivo sobre as mobilizações estudantis contra a ditatura, em 1968, no Brasil.

    Mais do que a contemplação, o conjunto da exposição propõe uma reflexão sobre memória, violência e resistência. A arte aqui se coloca como um caminho para quebrar o paradigma de uma narrativa única e monumental para a América Latina. Um caminho para abandonar uma narrativa linear, homogênea, calcada em um punhado de heróis, sempre brancos, sempre homens e construir novas identidades, a partir de memórias coletivas, como ensinou o sociólogo francês Maurice Halbwachs. O dispositivo estético tem um papel fundamental na divisão da sociedade entre elites dominadoras e subalternizados, explica o curador da mostra, Márcio Seligmann-Silva, pois produz imagens que justamente sustentam os quadros de memória conservadores. Não existe, portanto, um salto para fora da colonialidade e sua terrível continuidade sem uma revolução no campo cultural das imagens. “A arte é coisa seríssima. Não por acaso todos os regimes autoritários a censuram. Basta lembrar da balburdia negacionista racista que marcou a Fundação Cultural palmares entre 2019-2022, numa verdadeira tentativa de apagar a cultura afrodescendente no Brasil”, aponta o professor titular de Teoria Literária na Unicamp.

    "A arte é coisa seríssima. Não por acaso todos os regimes autoritários a censuram."

     

    Apagamentos

    "Depois chegaram os chamados brancos, com a cruz e o arcabuz (...). Já chegam sabendo mais do que nós, sobre o que querem de nós", escreveu o poeta Tiago de Mello (1953) [1]. A gestação da Modernidade dependeu de colônias e de povos colonizados. No caso das Américas, que têm na diversidade um conceito-chave, as centenas de povos que aqui viviam – incas, calchaquíes, tzotziles, olmecas, maias, guaranis, tupis etc. foram chamados de índios, uma palavra que não existia na região. "Se nos documentos históricos europeus eles foram chamados de índios ou negros da terra, em suas próprias línguas não existe nenhuma palavra para se referir a todos os povos que viviam nas Américas", escreveu o arqueólogo e historiador da Unicamp, Pedro Paulo Funari, no artigo "América Latina antiga, patrimônio arqueológico indígena e sua importância para a convivialidade", publicado no livro "Arte e arqueologia da América Indígena" (Editora da Unicamp, 2022).

    O processo de colonização se dá pela imposição de um tipo de pensamento europeu às demais culturas do mundo. “Nesse processo, milhares de línguas, códigos de conduta, modelos de estética, narrativas, histórias e hábitos multicentenários foram sendo apagados. Para além de uma mera terminologia ou de uma referência geográfica, a própria gênese do termo América Latina, que se dá em meados do século XIX, deve ser alvo de reflexão. Em seu livro “La idea de América Latina”, Walter Mignolo [2], semiólogo argentino e professor de literatura na Universidade de Duke, nos Estados Unidos, e um dos principais teóricos decoloniais, explica que:

    "em meados do século XIX, a ideia da América como um todo começou a se dividir, não de acordo com os estados-nação que surgiam, mas segundo as diferentes histórias imperiais do Hemisfério Ocidental, o que resultou na configuração da América saxã, ao norte, e da América Latina, ao sul. Naquele momento, "América Latina" foi o termo escolhido para nomear a restauração da "civilização" da Europa meridional, católica e latina, na América do Sul e, simultaneamente, reproduzir as ausências (dos indígenas e dos africanos) do primeiro período colonial. [...] A "ideia" de América Latina é a triste celebração, por parte das elites crioulas, de sua inclusão nos tempos modernos, quando, na realidade, elas submergiam cada vez mais na lógica da colonialidade" [2].

    "Nós despertamos para este fato "tarde demais", infelizmente. Mas ainda temos muito a fazer para impedir que esse processo elimine os últimos bastiões da megadiversidade, como é o caso das populações ameríndias, com suas línguas, seus saberes e técnicas que podem nos ajudar a sobreviver às mazelas do modelo monolíngue ocidental", defende Seligmann-Silva.

     

    Identidades plurais

    Ainda na década de 1960, diversos artistas latino-americanos assumiram para si a tarefa de problematizar a ideia de América Latina e, ao mesmo tempo, refletir sobre o efetivo lugar ocupado por essa região no mundo. Uma das representações mais conhecidas é o desenho “El Norte es el Sur”, do artista uruguaio Torres García, de 1935, no qual ele opera uma inversão da posição do mapa do continente sul-americano. Conforme explica a professora Maria de Fátima Morethy Couto, do Instituto de Artes da Unicamp, o desenho deve ser entendido como um gesto simbólico, que acabou por se converter em poderoso instrumento de afirmação de identidade cultural. “Com ele, Torres García não apenas transgrediu a cartografia clássica, revelando que o planeta é estruturado por complexas relações de poder, como também expôs a necessidade de trilharmos caminhos próprios, autônomos”, escreveu em seu artigo “Para além das representações convencionais: a ideia de arte latino-americana em debate” [i]. Para ela, é possível ter uma arte que conteste essas narrativas pautadas por outros interesses e assuntos e que, muitas vezes, querem empregar conceitos que não nos servem de modo mais amplo. Um exemplo é a ideia de uma arte universal, de uma estética regulada por questões ocidentais, que desconsidere por exemplo, no nosso caso, a produção de artistas afro diaspóricos, ou artistas indígenas, ou que possam dar visibilidade a temas que dizem respeito à nossa região ou a fatos que nos marcaram, como, por exemplo, a Revolução Cubana e as ditaduras – tema que compõe a mostra de Marcelo Brodsky no Museu Judaico (Figura 1).

     

     

    Abandonar o paradigma de uma identidade latino-americana abre inúmeras possiblidades de criação e de contribuições, a partir dos países que formam esta entidade geográfica. “No campo das artes, há muitas iniciativas para aproximar esses países, muitas curadorias que tratam, por exemplo e sobretudo em arte contemporânea, de um tipo de arte conceitual voltada a refletir sobre questões políticas”, explica Fátima Couto. Ela se lembra de importante acervo mantido pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). Existe ainda uma iniciativa do Centro Internacional para as artes das Américas (ICAA), do Museu de Belas Artes de Houston (Estados Unidos), que criou e disponibilizou uma plataforma de documentação de arte latina e latino-americana do século XX. Lançado pela primeira vez em 2002, o projeto é uma iniciativa dedicada à recuperação e à publicação de materiais de fonte primária e textos críticos. De acesso aberto, a plataforma tem mais de oito mil documentos de arte dos séculos XX e XXI na América Latina, no Caribe e entre as comunidades latinas dos Estados Unidos. “A arte é responsável por criar espaços de convergência e esse espaço não precisa ser consensual, ao contrário, pode expressar opiniões opostas, estimulando debates e gerando provocações”, complementou. Para a pesquisadora da Unicamp, as artes são essenciais para refletir sobre localidades determinadas, com histórias específicas, para pensar em nossa própria condição humana (Figura 2).

     

     

    Arte e testemunho

    A arte e a cultura podem ser instrumentos de combate ao autoritarismo e de defesa dos direitos humanos. Como isso se dá? Para Márcio Seligmann-Silva, a palavra-chave aqui seria criar uma cultura do testemunho. “Refiro-me a uma cultura que se abrisse para as diversas narrativas, para diversas línguas e histórias, para além dos textos canônicos que têm servido de muro e barragem a essas outras narrativas. Construir uma história crítica implica nessa abertura a outras vozes e nos levaria a escovar nossa história a contrapelo”, afirma. Segundo ele, é importante permitir que histórias locais e pesquisas que extrapolem as fronteiras nacionais ajudem a desconstruir histórias nacionalistas e voltadas para o enaltecimento de um suposto “povo” homogêneo com uma suposta história única de suposto triunfo e progresso. “Na verdade, do ponto de vista das populações espezinhadas por esse longo processo da Modernidade, o progresso é a catástrofe e a catástrofe é o progresso”, complementou.

    Para Andrea Califano, professor do programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), nós precisamos de uma defesa que esteja baseada nas especificidades históricas e culturais da região – o que inclui as linguagens e as expressões artísticas. “É uma defesa dos direitos humanos que passa pelo reconhecimento dos sujeitos históricos que foram brutalmente subjugados no processo de constituição dos estados nacionais dependentes dos centros do sistema capitalista mundial. E isso é um processo histórico típico de todos os países da região”, pontua.

    “É uma defesa dos direitos humanos que passa pelo reconhecimento dos sujeitos históricos que foram brutalmente subjugados no processo de constituição dos estados nacionais dependentes dos centros do sistema capitalista mundial.”

    A cultura do testemunho abre caminhos para o que Seligmann chama de arte testemunhal, na qual não há uma separação entre o artista, a construção de sua subjetividade e a de suas obras. Em artigo publicado no “Suplemento de Pernambuco” [ii], o autor explica que o corpo do artista é mobilizado no fazer artístico. Nesse novo contexto das artes e da literatura, tornou-se necessária a relação entre a produção artística e a identidade étnica racial, sobretudo quando se tratava de um artista com origem afro. A obra de Carolina Maria de Jesus não poderia ser compreendida sem se pensar em seu elemento testemunhal. A obra de Conceição Evaristo e sua “escrevivência” também expressa essa virada. O testemunho nessas escritoras faz com que séculos de literatura pensada como produtos de gênios (na maioria homens brancos), que manteriam uma relação de distância com seu estrato histórico, sejam abalados e revistos. As noções de literatura e de artes são redelineadas a partir dessa virada testemunhal. Essas autoras fazem com que, finalmente, compreendamos que também aqueles autores do cânone tradicional testemunhavam: eles eram testemunhas de culturas machistas e coloniais (Figura 3).

     

     

    Segundo Márcio Seligmann-Silva, o testemunho constitui uma força propulsora de contra imagens e agencia um encontro “face a face” com aquele que porta histórias e experiências que, ao serem compartilhadas, promovem uma identificação positiva. “No Brasil, seria muito importante se nossos alunos estudassem a história dos povos ameríndios e dos povos vindos da África e de seus desdobramentos no Brasil, primeiro como escravizados, depois como uma população que luta pela sobrevivência em meio a uma cultura estruturalmente racista. Para além desse estudo histórico, seria genial se, em nossas escolas, os alunos pudessem optar por estudar línguas ameríndias. Assim como nas escolas indígenas o ensino é bilíngue, ou multilíngue, o mesmo poderia acontecer no Brasil com a introdução de línguas indígenas em nosso currículo. Isso promoveria uma mudança na nossa relação com nossas histórias de opressão e violência contra os indígenas e a abertura para uma construção de outras identidades transversais e dialógicas”. Ele se lembra de que são justamente os saberes ameríndios, por exemplo, que impedem hoje que a Amazônia se transforme em deserto. O mesmo vale para saberes quilombolas e se repete em outros países das Américas, na África ou na Ásia, onde vozes até há pouco amordaçadas se manifestam e ganham espaço nas sociedades.

     

    Notas

    [i] COUTO, M. de F. M. Para além das representações convencionais: a ideia de arte latino-americana em debate. Pós: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes - EBA/UFMG, Belo Horizonte, v. 7, n. 13, mai./ out. 2017.

    [ii] SELIGMANN-SILVA, M. O testemunho histórico como fundamento ético da arte. Suplemento Pernambuco, Recife, n. 210, ago. 2023.

     

    Referências

    1. MELLO, T. 1953.

    2. MIGNOLO, W.