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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.75 no.4 São Paulo out./dez. 2023

    http://dx.doi.org/10.5935/2317-6660.20230062 

    REPORTAGEM

     

    A tecnologia a serviço dos biomas: quais são os principais recursos técnicos e tecnológicos utilizados na restauração e na conservação dos biomas brasileiros

     

     

    Paula Gomes

    Escritora, doutora em cinema e especialista em divulgação científica

     

     

    Quando o assunto é a degradação de biomas brasileiros, a primeira imagem que nos vem à mente é a do desmatamento na Floresta Amazônica, ou então, mais recentemente, as queimadas do Pantanal, que ocorreram em 2020. Hoje, no entanto, todos os biomas do país estão em perigo crítico de extinção. É o que afirma a pesquisadora da Fiocruz Mata Atlântica, Andrea Vanini, responsável pelo Levantamento da Flora e Restauração Ecológica: "As savanas e campos cobrem mais de 27% do nosso território e possuem altas quantidades de espécies endêmicas. O cerrado vem sofrendo altas taxas de degradação e nele vivem diversas comunidades tradicionais que dependem da conservação de sua biodiversidade. A Caatinga, que é um ecossistema exclusivamente brasileiro, é pouco mencionado quando se trata de campanhas de conservação e abriga uma população que sofre com a seca no semiárido" (Figura 1).

     

     

    Para restaurar um bioma degradado, é possível aplicar diversas técnicas. A partir da análise das características do bioma, do seu nível de degradação e dos recursos financeiros disponíveis, elabora-se um plano de ação. Andrea Vanini destaca que sempre a primeira medida a ser tomada é eliminar o principal vetor de degradação daquele bioma, como fogo, pastagem, pisoteio de animais ou mineração. Em seguida, aplicam-se as técnicas de restauração. Alguns métodos são de fácil implementação, outros mobilizam mais recursos humanos, financeiros e tecnológicos. Algumas das principais técnicas são:

    Regeneração Natural Assistida: quando deixamos as florestas regenerarem com pouca influência. Este processo está sendo testado em áreas muito extensas na Amazônia e na Mata Atlântica. É muito utilizado também em propriedades rurais, pois o custo de investimento é mínimo para o proprietário - que muitas vezes não tem ou não quer destinar recursos para esse fim.

    Semeadura direta: é o plantio direto da semente no solo, geralmente por meio de "muvuca", que reúne sementes de espécies diferentes. A semeadura direta tem baixo custo, pois pula várias etapas da produção de mudas, mas precisa de uma cadeia de produção de sementes bem estabelecida, o que ainda é um gargalo para a cadeia de restauração.

    Enriquecimento: consiste em plantar em áreas que possuem uma floresta estabelecida, mas com baixa diversidade de espécies, isto é, quando há poucas espécies dominantes. São plantadas espécies de sucessão secundária, endêmicas, frutíferas nativas, ameaçadas e raras.

    Implantação total: quando a área tem baixo potencial de regeneração, é realizado o plantio de mudas, que pode ser em linhas (para isso também há uma distribuição específica das mudas, que são classificadas em duas categorias: diversidade e recobrimento) ou em núcleos.

    Transposição de solo: quando o solo de uma área de floresta é transplantado para uma área e o banco de sementes germina na área restaurada.

    Um fator complicador para a restauração dos biomas é a heterogeneidade, que pode ser observada entre eles, mas também dentro dos próprios biomas. Ana Paula Rovedder, professora do Departamento de Ciências Florestais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e coordenadora da Rede Sul de Restauração Ecológica, explica que mesmo os nossos biomas de menor extensão, como o Pampa e o Pantanal, possuem diferentes tipos de formações vegetais. Essa heterogeneidade exige que técnicas e tecnologias sejam pensadas, experimentadas e adaptadas para regiões específicas dentro dos biomas.

    "Os biomas estão ameaçados pelos empreendimentos imobiliários no litoral, pela soja no centro-oeste e pela indústria madeireira e criação de gado no norte do país. É preciso enfrentar essa realidade."

    Em relação à conservação dos biomas, Lucas Ferrante, pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), elenca duas tecnologias que vêm auxiliando nessa frente: o monitoramento via satélite e as análises genéticas. Com os dados fornecidos por satélites, é possível identificar áreas prioritárias para a conservação, processos de invasões e desmatamento, e até dinâmicas climáticas que ocorrem em determinadas regiões. Já as análises genéticas auxiliam muito na conservação de espécies ameaçadas. "Em muitas pesquisas temos que combinar diferentes tipos de tecnologia. Em um artigo recente, publicado no periódico Conservation Biology, identificamos, por meio de análises genéticas, as diferentes populações da espécie de sapo ameaçada de extinção Hylodes sazimai. Posteriormente, mediante análises com imagens do projeto GRACE da NASA, identificamos a origem das chuvas e das anomalias climáticas que impactam a atividade e as dinâmicas populacionais dessa espécie", explica.

     

    Tecnologia ancestral

    Muitas tecnologias que podem ser utilizadas na conservação de biomas já existem há muito tempo. São os casos das "tecnologias sociais": um conjunto de técnicas resultantes da interação entre o saber popular e o científico que apresenta resultados efetivos para aquela comunidade. As práticas e os saberes indígenas sobre a floresta são considerados tecnologias sociais (Figura 2).

     

     

    Esses conhecimentos, apesar de gozarem de pouco prestígio cultural e serem constantemente desvalorizados por vários setores da sociedade, são responsáveis pela conservação de muitos territórios brasileiros. "Apontamos na Science, em 2020, que mais de 24% do território Amazônico é protegido pelos territórios indígenas, e com extrema importância para preservar serviços ecossistêmicos, como os rios voadores", explica Lucas Ferrante. Em outro estudo do pesquisador, publicado em 2021, na revista Land Use Policy, foi demonstrado que terras indígenas apresentam uma maior proteção da floresta quando comparadas a unidades de conservação. "Isso devido aos saberes, tecnologias e modo de vida dos povos tradicionais que mantêm a floresta em pé, conservando seus serviços ecossistêmicos em meio a um modo de vida sustentável", enfatiza.

     

    Proteção é prioridade

    Os esforços empregados na restauração e conservação de nossos biomas só trarão resultados se aliados a outra frente de trabalho: o da proteção de territórios ameaçados. "Os biomas estão ameaçados pelos empreendimentos imobiliários no litoral, pela soja no centro-oeste e pela indústria madeireira e criação de gado no norte do país. É preciso enfrentar essa realidade", elenca Andrea Vanini.

    Um dos primeiros passos para enfrentar esse problema seria restabelecer o diálogo entre a comunidade científica e o governo. Contudo, para Lucas Ferrante, esse cenário parece distante. O pesquisador demonstra preocupação com a tendência, tanto dos governos antigos quanto da atual gestão, de ignorar os alertas dos cientistas sobre ações e empreendimentos com alto potencial de degradação aos biomas: "É necessário que os tomadores de decisão revejam grandes empreendimentos que podem levar a Amazônia ao ponto de não retorno, como é o caso da rodovia BR-319, abordado em uma publicação nossa na Science de 2020. Também é necessário que o governo reveja a exploração de petróleo na foz do Amazonas, como apontado na Nature este ano. É crucial que seja instituída uma política de desmatamento zero ainda este ano para a Amazônia, e inúmeros estudos científicos respaldam essa necessária tomada de decisão", alerta.

    Já Ana Paula Rovedder acredita que houve avanços no atual governo: "Estamos sendo bastante valorizados no momento pelas políticas públicas do Ministério do Meio Ambiente. A voz desses biomas e de suas especificidades precisa ser ouvida para traçar as políticas públicas. É isso que esperamos com a retomada da PROVEG (Política Nacional para Recuperação da Vegetação Nativa) pelo Ministério. Todas as redes de proteção dos biomas foram chamadas para serem ouvidas e esperamos que continue assim".

    "Saberes, tecnologias e modo de vida dos povos tradicionais mantêm a floresta em pé, conservando seus serviços ecossistêmicos em meio a um modo de vida sustentável."

    Andrea Vanini reforça que a complexidade do problema de proteção territorial no Brasil exige que os esforços nesse sentido sejam articulados em rede, com o suporte de várias instituições de ensino e pesquisa, organizações governamentais, não governamentais e comunidades tradicionais e locais. "São necessários financiamentos interno e externo, políticas públicas e investimento em tecnologias sociais", conclui.