Apresentação: agricultura como alternativa para crises brasileiras
Maria Leonor Lopes Assad
Professora titular aposentada da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde atuou nos Programas de Pós-Graduação em Agricultura e Ambiente (PPGAA) e em Agroecologia e Desenvolvimento Rural (PPGADR); e editora assistente da Revista Brasileira de Ciência do Solo
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"É hora de lavar os olhos para ver a nossa realidade. É hora de passar o Brasil a limpo, para que o povão tenha vez. No dia em que todo brasileiro comer todo dia, quando toda criança tiver um primeiro grau completo, quando cada homem e mulher encontrar um emprego estável em que possa progredir, se edificará aqui a civilização mais bela desse mundo." [1]
A matéria de capa do jornal Folha de S. Paulo de 31 de janeiro de 2021 estampou "Brasil começa 2021 com mais miseráveis que há uma década" [1]. Infelizmente, em janeiro de 2021, com o fim do auxílio emergencial, 27 milhões de brasileiros (quase 13% da população e maior porcentual desde dezembro de 2014) passaram a viver com menos de R$ 246 por mês (R$ 8,20 ao dia) [2].
A escandalosa desigualdade socioeconômica no Brasil é causa e consequência de muitas crises brasileiras atuais. Na segunda década do século XXI estamos enfrentando crise econômica, particularmente para os pobres; crise ambiental, com crescimento das taxas de desmatamento; crise climática, com aumento de temperaturas e alteração em ciclos de chuva e de seca; crise social que se desenha na população brasileira dividida grosseiramente entre os que usam máscara para se proteger do coronavírus e os que acham que temer a covid-19 é "mimimi"; e crise política, a qual nem vale a pena comentar.
Políticas públicas justas são fundamentais para se enfrentar crises. E todas precisam ser de longo prazo; as muito graves, como a crise sanitária causada pela covid-19, exigem políticas emergenciais. No Brasil, o auxílio emergencial concedido em 2020 pelo governo federal trouxe um alento na renda familiar dos que se inserem na categoria de miseráveis e derrubou por pelo menos cinco meses a porcentagem da população em pobreza extrema [2].
De acordo com dados da Pnad 2015, última publicada com identificação de porcentuais de população rural e urbana [3], 85% da população brasileira vivia em áreas urbanas e a região Nordeste era a que contava com o maior porcentual de população rural (27%). A Pnad Contínua 2019 mostra que o rendimento médio mensal real do trabalho do 1% da população com os rendimentos mais elevados era de R$ 28.659, ou seja, quase 34 vezes o rendimento dos 50% da população com os menores rendimentos mensais (R$ 850) [4].
O setor agrícola brasileiro é uma das causas das crises brasileiras porque também apresenta as discrepâncias de renda observadas no cenário nacional. O acesso à terra está cada vez mais limitado. Dados do Censo Agropecuário de 2017 apontam que 0,6% dos mais de cinco milhões de estabelecimentos (ocupando cerca de 41% da área total do país) foram responsáveis por 53% do valor bruto da produção agrícola, enquanto os agricultores que se encontravam em situação de extrema pobreza (renda de zero a dois salários-mínimos) e ocupavam 69% dos estabelecimentos (dos quais três quartos são de agricultura familiar) foram responsáveis por apenas 4% do valor bruto da produção agrícola nacional [5].
Ainda assim, o setor agrícola brasileiro pode ser solução para crises e contribuir para reduzir a desigualdade [6]. E são muitas as alternativas. Mas para tanto é necessário redefinir nossas prioridades e compreender que não basta aumentar a produção e a produtividade da agropecuária. É preciso focar em sustentabilidade ambiental, social e econômica. E é isto que este Núcleo Temático discute por meio de oito artigos redigidos por pesquisadores de mais de 13 instituições brasileiras e por uma integrante do povo Piratapuya, que vive em Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas.
O artigo que abre esta coletânea, elaborado por José Maurício Quintão, Roberta Cantinho, Eliza Rosário Gomes Marinho de Albuquerque, Leandro Maracahipes e Mercedes Bustamante, mostra que no Brasil as emissões de gases de efeito estufa, principalmente o dióxido de carbono (CO2), estão intimamente relacionadas ao papel da vegetação nativa e sua conversão para usos antrópicos, como agricultura e pecuária. Avanços foram feitos mas, infelizmente, o quadro atual revela um recrudescimento das taxas de desmatamento na Amazônia e na degradação de biomas como o Pantanal, em função de incêndios em proporções históricas.
No segundo artigo, Agostinho Alves de Lima e Silva aborda de forma clara as relações da saúde humana com uso intensivo de fertilizantes e agrotóxicos e com mudanças de uso da terra. Ele mostra como o desmatamento e a intensificação agrícola promovem destruição ou modificação drástica de habitats naturais e de áreas de vida de diferentes espécies, alterando o comportamento de muitos hospedeiros de patógenos, forçando-os a viverem mais próximos do homem e provocando doenças zoonóticas, das quais a covid-19 talvez seja o exemplo mais grave até o momento.
]]> E para mostrar que é possível fazer diferente, este Núcleo Temático traz um texto escrito pelo Coletivo Folhas Compostas sobre sistemas agrícolas tradicionais no Brasil. Rico em informações, saberes e formas de existir de pessoas, em diferentes paisagens brasileiras, o texto apresenta práticas extrativistas e agroflorestais, sempre vinculadas a um território e, portanto, a um sistema cultural específico. Trata-se de um trabalho que nos leva a refletir sobre as inúmeras possibilidades de resistência e alternativas à erosão da biodiversidade provocada por sistemas intensivos que rompem as relações de agricultores e agricultoras com o ambiente.No texto seguinte, e apoiado em larga experiência com políticas públicas para o setor agrícola conciliadas com o ambiente, Eduardo Assad retoma a discussão do impacto da agricultura e da mudança de uso da terra sobre o clima no planeta. Ele apresenta alternativas viáveis para a adaptação da agricultura às mudanças climáticas em curso e que permitirão reduzir as desigualdades existentes no cenário rural brasileiro.
O quinto texto, escrito por Lucas Carvalho Gomes e Irene Maria Cardoso, mostra que sistemas agrícolas da agricultura familiar geralmente possuem uma maior diversidade de plantas com maior produção de biomassa e proteção dos solos e, justamente por isso, são considerados mais sustentáveis e importantes na mitigação dos impactos das mudanças climáticas. Por meio de dois exemplos - produção de café em sistemas agroflorestais e quintais na zona da mata de Minas Gerais - os autores mostram que sistemas de produção de base familiar promovem aumento do sequestro de CO2 da atmosfera e são mais adaptados e resilientes às mudanças climáticas.
O sexto texto, de autoria de Miguel Calmon, é uma rica fonte de informações sobre as múltiplas possibilidades do Brasil para ocupar a liderança global na restauração de paisagens na Década da Restauração de Ecossistemas, que se inicia neste ano de 2021. O autor mostra que inúmeras iniciativas estão sendo implantadas em diferentes locais, lideradas pelos setores público - federal, estadual e municipal - e privado, por organizações não governamentais e pela sociedade civil organizada, visando a restauração da vegetação nativa, com geração de renda para o agricultor e manutenção de serviços ecossistêmicos essenciais para a qualidade de vida.
No penúltimo texto, Islândia Bezerra e Maria Alice Araújo Oliveira trazem a essencial e urgente discussão sobre o atual sistema alimentar - apoiado em produtos comestíveis e não em alimentos - e suas consequências para a saúde dos seres do planeta. Com base na relação direta entre qualidade da produção e qualidade do alimento, as autoras relatam duas experiências práticas intituladas "Eu escolho sem veneno", uma da Universidade Federal do Paraná e outra da Universidade Federal de Alagoas, que permitiram levar a consumidores de Curitiba e de Maceió alimentos saudáveis produzidos por sistemas agroecológicos.
Para encerrar esse passeio por olhares, inquietações e alternativas, Ricardo Abramovay nos proporciona a leitura de um texto provocativo e questionador. Focando principalmente a produção de carne pela agroindústria, o autor conduz o leitor a refletir sobre a chamada civilização carnívora, a partir de diferentes ângulos e com base em variada documentação. Abramovay fecha este Núcleo Temático com perguntas, que a rigor envolvem outras, tanto de caráter ético quanto científico, e nos estimula a continuar refletindo sobre o que produzimos na agropecuária brasileira e sobre o que consideramos alimento. Boas leituras a todos!
NOTAS E REFERÊNCIAS
1. Ribeiro, D. Apresentação. In: Brasil aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. Editora Guanabara, Rio de Janeiro (RJ). 1985.
]]>2. Canzian, F. "Brasil começa 2021 com mais miseráveis que há uma década". Folha de S. Paulo (versão impressa), 31 de janeiro de 2021.
3. Conheça o Brasil - População: população rural e urbana. Disponível em https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18313-populacao-rural-e-urbana.html. Acesso em 01/02/2021.
4. Agência IBGE Notícias. "PNAD Contínua 2019: rendimento do 1% que ganha mais equivale a 33,7 vezes o da metade da população que ganha menos". Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27594-pnad-continua-2019-rendimento-do-1-que-ganha-mais-equivale-a-33-7-vezes-o-da-metade-da-populacao-que-ganha-menos. Acesso em 01/02/2021.
5. Vieira-Filho, J. E. R. "100 anos de censo agropecuário no Brasil". Revista Política Agrícola, v. 29, n.1, p 133-135, jan/fev/mar 2020.
6. Hoffmann, R. "Distribuição da renda agrícola e sua contribuição para a desigualdade de renda no Brasil". Revista de Política Agrícola, v. 20, n. 2, p. 5-22, abr./maio/jun. 2011.
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