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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.59 no.2 São Paulo Apr./June 2007
A ÁFRICA E OS ESTUDOS AFRICANOS NO BRASIL: PASSADO E FUTURO
Valdemir Zamparoni
Uma das coisas que mais chamavam a atenção no passado e até hoje atrai o olhar de muitos visitantes estrangeiros é a composição racial brasileira, fortemente marcada pela miscigenação da qual em graus variados, a depender da região do país, sobressai a componente de origem africana. Não é preciso ser antropólogo, sociólogo ou acadêmico de qualquer tipo para notar tal característica. É empírica, faz parte do senso comum se propalar que o Brasil é um país de negros e mestiços. Aliás, cada vez mais mestiço de acordo com os dados censitários de 2000 a partir dos quais o IBGE conclui que "nos últimos dez anos, houve redução das uniões entre pessoas da mesma cor" (1). Hoje cerca de 76 milhões de pessoas (cerca de 44%) se assumem oficialmente como "pretas" e "pardas", o que faz com que o Brasil tenha o maior contingente de afro-descendentes do mundo (2). Embora por vezes os acadêmicos sejam cegos e surdos ao senso comum, nesse caso não dava para evitar esta incontornável pedra que se interpunha no caminho, à moda da pedra drumondiana, e a academia brasileira, da medicina à história, passando pelas emergentes ciências sociais, produziu desde meados do século XIX, uma avalanche de teses e argumentos, que por vezes nos soam disparatados, acerca do tema. No passado a produção acadêmica estava interessada na "questão negra", no "problema negro", hoje está interessada nas "relações raciais", o que não deixa de ser a outra face da mesma velha moeda: o que interessou no passado e quase até os dias de hoje foram os negros e mestiços no Brasil com pouca ou nenhuma referência à África. Pode parecer que se esteja aqui fazendo caricatura, mas fica dessa literatura do passado a sensação de que esses negros brasileiros caíram do céu ou brotaram da terra tal qual a cana-de-açúcar que cultivavam nos engenhos. Tênues e raras são as referências à África e às culturas africanas dos quais originaram. Era quase um paradoxo: tínhamos negros e até mesmo africanos mas nada da África.
Há uma década escrevi um texto no qual dizia que a marca da escravatura e a hegemonia branca tinham obscurecido a realidade e criado uma "invisibilidade", uma "farsa de olhar e não ver, ou não querer ver" que se traduzia particularmente no ensino brasileiro no qual, com raras exceções, a presença negra estava restrita a algumas lamúrias nas poucas páginas dedicadas à escravatura e a África e os africanos mas também a Ásia apareciam não como possuidores de historicidade própria mas como meros apêndices na história da expansão européia. Passado esse capítulo da história européia desapareciam misteriosamente, deixavam de "existir".
Qualquer brasileiro que tenha passado pelo primeiro grau certamente já ouviu falar das cidades-Estado gregas, do Império Romano, do Sacro Império Romano-Germânico, das potências aliadas; de Alexandre, Nero, dos vários Luízes, Napoleão, Churchill, Roosevelt, Hitler ou Stálin, mas quem já ouviu falar dos Ashantis, Iorubás, Haussás, Fulas, Bakongos, Makondes, Xhosas, Macuas e Swahílis? E do império do Monomotapa, dos reinos do Daomé, do império Vátua, da Rainha Jinga, de Mussa Keita, de Sundjata, de Chaka e Ngungunhane, Amílcar Cabral, Patrice Lumumba, Julius Nyerere ou Samora Machel? Alguém já estudou a respeito? O que se sabe sobre esses nomes senão algumas palavras superficiais?
Infelizmente, isso não se restringe à história: nas universidades brasileiras poucas são as disciplinas destinadas ao estudo das literaturas ou artes africanas. Estas, em geral se infiltram nas disciplinas dedicadas à literatura e artes portuguesa, inglesa ou francesa, isso na feliz hipótese das pessoas encarregadas das mesmas serem docentes sensíveis a esses assuntos.
Essa prática ilusionista não é apanágio da dita "história tradicional" ou conservadora. Marxistas ou não, ortodoxos ou adeptos da "história nova" todos parecem ser modernos adeptos de Hegel (3). Naquela mesma ocasião afirmei que o Brasil precisava reconhecer de fato que era herdeiro cultural da África, que a construção da identidade passava "pelo conhecimento da própria história, não no sentido de resgatá-la idealisticamente, mas de fazê-la presente como referência cultural"(4). Pois bem, qual a referência cultural que temos da África e dos africanos no Brasil? Qual a imagem da África e dos africanos que circulam em nossos meios midiáticos e acadêmicos e que ajudam a formar nossa identidade?
A resposta é que o que ainda hoje predomina é a de uma África exótica, terra selvagem, como selvagem seriam os animais e pessoas que nela habitam: miseráveis, desumanos, que se destroem em sucessivas guerras fratricidas, seres irracionais em meio aos quais assolam doenças desvastadoras. Enfim, desumana. Em outra vertente o continente é reduzido a uma cidade, nem mesmo um país. O termo África passa, nesses discursos, a servir para referenciar um lugar qualquer exótico e homogêneo.
Essas imagens não são aleatórias. Foram gestadas na Europa ao longo de séculos e tomaram corpo no Brasil. Recentes estudos mostraram que os nossos homens de ciência, particularmente médicos, participaram ativamente da discussão e produção de conhecimento no âmbito do racismo científico. Mas o ápice dessa discussão ganhou corpo no Brasil justamente no momento em que estava sendo questionada a legitimidade da escravidão.
Finda a escravatura, em 1888, parece que uma amnésia tomou conta do Brasil. Na verdade, não era uma amnésia natural mas proposital. Era preciso extirpar da história pátria aquilo que era considerada uma nódoa prejudicial à nova imagem do Brasil agora cada vez mais europeu devido ao crescente incentivo à migração branca em substituição à força de trabalho escrava. O Brasil não podia ficar de fora da nova moda européia representada pelo positivismo, evolucionismo e darwinismo. Textos de Darwin e Spencer eram popularizados sobretudo na imprensa paulista, representante duma cidade progressista, "científica e laboriosa", suas teses impregnavam nossa emergente literatura naturalista (5). Mas não se tratava apenas de importação equivocada e descontextualizada como a muitos pareceu(6). O declínio irreversível da escravatura como sistema já vislumbrado com a sucessiva legislação abolicionista do último quartel do século XIX exigia repensar o futuro. As idéias do darwinismo social não estavam pois fora do lugar; suas teses passaram a servir como critérios redefinidores das diferenças sociais no momento em que a relação senhor/escravo agonizava. A abolição em 1888, e a instalação da República no ano seguinte, exigiam repensar a identidade nacional. Qual nação? O que fazer com o ex-escravo, agora tornado ao menos oficialmente cidadão da nova república? A nova identidade nacional se fez visando acentuar a diferença e a superioridade brasileira face aos vizinhos latino-americanos, republicanos sim, mas majoritariamente indígenas. Ao Brasil era preciso buscar o caminho para inserir-se no rol das nações ditas superiores, por definição, brancas.
Apesar de sua violência e horror o tráfico criara um fluxo cultural da África para o Brasil e daqui para lá, inclusive com a manutenção ou criação de novos laços familiares dos dois lados do Atlântico como foi o caso das comunidades de "brasileiros" na África ocidental, em especial o caso dos "agudás" no Benin e dos "tabon" em Gana, mas também na Nigéria e Togo (7), a partir de sua extinção, isto paulatinamente desapareceu. Ficaram os laços simbólicos cada vez mais tênues e a África cada vez mais distante. No universo do discurso oficial foi ainda mais grave. Tomemos um singelo exemplo: um livro didático de "História do Brazil" para "uso da infância brazileira", publicado em 1914 dedica três sucintas frases à escravidão: uma menção à chamada "Lei do Ventre Livre 1871; outra à "Lei dos Sexagenários" e outra à abolição. A palavra escravo e escravidão, portanto, são mencionadas somente três vezes. A necessidade de esconder das novas gerações, o nosso passado escravocrata e nossa imensa população de origem africana, era tão forte por parte das classes dirigentes brasileiras que não há ao longo desta obra de "história pátria" nenhuma outra referência à escravidão, que deu existência ao país (8).
O momento seguinte em que vai emergir novamente a necessidade de se discutir a identidade nacional se deu com a Semana de Arte Moderna de 1922, cuja existência está associada não só à circulação das novas idéias artísticas européias mas, principalmente, à emergência no cenário nacional de novas classes sociais em particular a chamada "classe média" urbana cuja expressão política foi o chamado movimento tenentista. A Semana de 22, se propunha a repensar nação, a brasilidade, em oposição à Europa com base na exaltação nas artes e literatura das nossas florestas, o nosso falar, a nossa comida, o nosso jeito de ser, o nosso folk-lore, a nossa gente, movimento que lançou as bases para o mito das três raças, como componentes essenciais da nossa formação, que será amplamente explorado após a Revolução de 30 e particularmente durante o Estado Novo. Nesse momento foi preciso recolocar os negros na existência nacional. Mário de Andrade viajou pelo interior do Brasil em busca de nossas "raízes" e coletou práticas culinárias, cantos de trabalhos e contribuições culturais de diversas origens africanas; os negros foram pintados particularmente por Portinari que ao retratar um "lavrador de café" escolheu com o modelo um negro, acentuando-lhe os traços fenotípicos, e não um dos imigrantes europeus que foram justamente trazidos para a lavoura cafeeira ou descritos, ainda que de maneira paternalista e caricata por Monteiro Lobato.
No âmbito acadêmico a resposta à necessidade de se repensar o lugar do negro na identidade brasileira veio à tona com o I Congresso Afro-Brasileiro realizado em Recife, em 1934 e a segunda edição em Salvador em 1937, com Gilberto Freyre, Edson Carneiro, Manuel Querino. Nesses eventos a África não era objeto próprio de estudo. Era tão somente referida. O que se queria efetivamente era compreender a dita "questão negra", para a constituição de uma imagem de povo, para a formação do caráter nacional brasileiro, aliás título de famoso livro (9). Em que pesem as diferenças interpretativas, esse grupo rompeu com as teses de Nina de Rodrigues e passou a encarar a mulatidade brasileira como positiva. O mulato, e o mestiço em geral, deixou de ser visto como o ser degenerado e passou a simbolizar, em sentido positivo, a síntese cultural brasileira. Já em 1923, o jurista negro Evaristo de Moraes no artigo "Brancos, negros e mulatos"(10) dizia que a "fusão étnica" era essencial e traria benefícios para a civilização. A disseminação distorcida dessa formulação, que alguns creditam a Gilberto Freyre, seu mais conhecido apologista, levou paulatinamente à definitiva consolidação do mito das três raças e a instituição de outro, este sim da lavra de Freyre: o de que o Brasil era sui generis pois, contrariamente a outras experiências escravocratas no mundo, era uma democracia racial. Todos quantos conhecem a obra de Freyre sabem que ele assentava suas teses sobre a premissa de uma especificidade colonial portuguesa. Para ele a alma portuguesa devido ao caráter miscigenado do próprio povo português e ao cristianismo era inatamente aberta à miscigenação e avessa a qualquer forma de racismo.
No Brasil, antes que o mito da democracia racial se propagasse, as imagens de que a África era sinônimo de atraso e barbarismo contaminou até mesmo os próprios negros brasileiros que buscavam distanciar-se da mesma, conforme apontava artigo publicado pelo Getulino, um jornal negro:
"Segundo doutrina de um 'cara' qualquer 'yankee' a América é para os americanos. Nesta conta não entrou o negro, o chim, o nippon etc., ainda que nascidos ali. Deste, porém, o negro é o que mais é tido como indesejável. E, naturalíssimo, portanto, que essa gente assim oficialmente repudiada trate de dar o fora da terra madrasta onde tiveram a felicidade de nascer. Que vá para a África, expulse, se puder, os donos daquela 'pinóia', banque o domador de feras, aprenda o idioma indígena, ou faça prevalecer o seu, vista uma tanga ou faça com que o preto indígena vista casaca e as pretinhas, também indígenas, usem pó de arroz e carmim, ou que as que vão metam-se em tangas Tudo isso está muito bom, mas, que preto brasileiro pense em aderir a essa idéia, eu reputo o máximo de absurdo no mínimo de tolerância possível. A África é para os africanos, meu nego. Foi para o teu bisavô cujos ossos, a esta hora à terra reverteram e em pó se tornaram. A África é para quem não teve o trabalho de cultivar e dar vitalidade a um imenso país como este. A África é para quem quiser, menos para nós, isto é, para os negros do Brasil que no Brasil nasceram, criaram e multiplicaram. Nem por brincadeira, se pense que negro brasileiro faça alguma cousa que preste em África. / / Não seria melhor que tu fosses mais brasileiro, isto é, que tu fosses patriota em benefício desta terra bendita que te viu nascer, que te acolhe como mãe carinhosa, esta terra que é nossa / / é nossa já ouviu? Nossa porque fomos nós que a edificamos, nós que lhe demos tudo, até o sangue, para lhe garantir a integridade quando das invasões de estrangeiros. O Brasil é para os brasileiros, que quer dizer é para os negros, já ouviu?/ / nós estamos em nossa casa" (11)
IDENTIDADE BRASILEIRA Em que pese a negação em se aproximar da África, o discurso é de uma lucidez ímpar. Eram cientes de que a volta para África impunha dois caminhos: adaptar-se aos hábitos da terra ou tornar-se opressor dos povos locais, como fizeram os negros norte-americanos na Libéria. Não reivindicam nenhuma pertença identitária à África, mas ao Brasil, terra que ajudaram a construir. Reconhecem-se enquanto brasileiros e sabiam claramente que esta era sua terra. Isso poderia ter tido desdobramentos políticos na medida em que não transferiam a satisfação de suas necessidades nem a resolução de seus problemas para uma terra distante.
Logo após a Revolução de 30 surgiu em São Paulo, em 1931, a Frente Negra Brasileira, como uma organização inspirada no espírito nacionalista então em voga. A forma organizativa e o discurso era extremamente próximo do Movimento Integralista que preconizava, à direita, a defesa dos valores nacionais. O slogan dos integralistas era "Deus, Pátria e Família" e da Frente Negra era "Deus, Pátria, Raça e Família". Para termos uma idéia de como se posicionavam em relação ao tema da raça então em ebulição, tomemos trecho de artigo de seu órgão oficial, A Voz da Raça: "Que nos importa que Hitler não queira, na sua terra, o sangue negro! Isso mostra unicamente que a Alemanha Nova se orgulha da sua raça. Nós também, nós brasileiros, temos raça. Não queremos saber de arianos. Queremos o brasileiro negro e mestiço que nunca traiu nem trairá a Nação" (12) Este discurso claramente se opõe ao arianismo em moda sem ultrapassar entretanto a definição de raça então aceita como critério identitário. A África e os africanos não jogam aqui qualquer papel na constituição da identidade negra brasileira.
Pós Segunda Guerra Mundial e com a falência dos regimes defensores do racialismo, emergiu no ambiente acadêmico brasileiro uma nova geração que não pactuava com Freyre e que claramente se distanciava do discurso racialista. Caio Prado Jr, Florestan Fernandes e depois Otávio Ianni entre outros discípulos de Roger Bastide, começaram em São Paulo a estudar o negro sob perspectivas novas, fossem inspiradas por Weber, fosse por Marx: os temas passaram a ser a escravidão enquanto sistema de opressão e alienação e os modernos conflitos raciais, relações de classe. A África e os africanos, contudo, continuaram ausentes.
A África só re-emergiu no Brasil, numa perspectiva das relações internacionais e anticolonialista com José Honório Rodrigues(13) em obra que coincidiu com o desencadear da luta armada de libertação nacional na Guiné-Bissau e Angola e com a chamada política externa independente levada a cabo pelo governo Jânio Quadros. É desse período a criação de três centros de estudos africanos existentes ainda hoje no Brasil. Em 1959 foi fundado o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) na Universidade Federal da Bahia; em 1961 o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos (IBEAA) ligado à presidência da República, fechado com o golpe militar; em 1963, o Centro de Estudos e Cultura Africana, junto à Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, hoje denominado Centro de Estudos Africanos (CEA) e, em 1973, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) do Rio de Janeiro, uma espécie de herdeiro do IBEAA.
Após o golpe militar de 1964, novamente o Brasil afastou-se da África e voltou a subordinar sua política externa africana aos interesses colonialistas portugueses. Principalmente após o AI-5 (1968) os militantes portugueses e africanos exilados no Brasil foram perseguidos e, por alguns anos, falar de África, principalmente das colônias portuguesas onde os movimentos nacionalistas assumiam paulatinamente sua opção socialista, constituía tabu e motivo para prisões. Mas, aos poucos, nos anos 1970 com a expansão da luta armada nas então colônias portugueses, a África voltou à cena, agora não mais restrita aos meios acadêmicos mas como uma nova força na constituição identitária brasileira em particular entre a comunidade negra. Muitos eram militantes de organizações clandestinas de esquerda e tinham a convicção de que a luta dos negros brasileiros deveria ser inspirada mais na luta travada na África do que no movimento negro norte-americano. Mas essa não era uma posição unânime o que levou a dissidências (14). Por fim, em 1978 foi criado o Movimento Negro Unificado. Sob um regime ditatorial, e como os temas mais candentes da realidade brasileira não podiam emergir, houve de uma maneira catártica, certa apropriação pela esquerda brasileira dos temas levantados pelos movimentos de libertação africanos. Aos poucos, contudo, e à medida que esfriavam as notícias sobre as ex-colônias, a presença dos temas "africanos" foi perdendo espaço para uma agenda das questões raciais muito mais pautada pela experiência da discussão das relações raciais norte-americanas.
A partir de 1972/73 o próprio regime militar começou a perceber a irreversibilidade dos processos de independência, e que se manter em oposição aos mesmos era franquear os promissores mercados a outros parceiros e desenhou-se aquilo que será conhecida como ação diplomática pragmática. Já não importava a cor física ou ideológica dos parceiros, desde que comprassem produtos brasileiros. Essa política gestada numa das fases mais repressivas da ditadura militar brasileira sob comando do general Garrastazu Médici, foi seguida por seu sucessor general Geisel; o Brasil passou à ofensiva reconhecendo a declaração unilateral de independência proclamada pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e foi um dos primeiros países ocidentais a reconhecer o governo do Movimento Popular para Libertação de Angola (MPLA). Para se ter idéia de tal pragmatismo coube a um general Figueiredo ser o primeiro presidente brasileiro a visitar a África.
Os anos 1980 foram marcados por um refluxo nas atividades voltadas para África, talvez como um reflexo de igual refluxo nas relações econômicas entre o Brasil e aquele continente, igualmente afetados pela crise, mas principalmente porque com a "Abertura" política pôde-se finalmente resgatar os estudos acerca das relações raciais brasileiras, agora com a perspectiva de constituição de uma sociedade democrática.
Mas qual o lugar da África no atual cenário brasileiro? Com certa simplificação, podemos dizer que de, maneira geral, prevalece em um polo certa imagem hegeliana, e no outro, não menos exotizante, uma "Mama África", originária, profunda, virgem, paradisíaca, que serviria de inspiração para uma política anti-racista no Brasil: persegue-se uma história da "verdadeira África", de um tempo na qual esta viveria num paraíso, conspurcado pelo colonialismo. Os africanos e a África que se busca sob esta perspectiva é aquela colocada num freezer, onde a cultura se inscreve num tempo mítico, que se repete, onde não há criação, nem história (15). Essa imagem mitificada da África tem dado lugar a usos e abusos (16). Nessa mesma ótica cria-se um tipo "o africano", uma cultura "africana" que supostamente corresponderia ao continente. É difícil crer que essa busca de inspiração, a-histórica, na história, possa efetivamente ajudar de maneira sólida na formação de uma consciência política e social anti-racista.
Temos já desde 2002 uma lei federal (10.639) que torna obrigatório o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira do ensino fundamental ao médio, mas o desafio fundamental que encontramos é capacitar pessoas para que ambas os pólos dicotômicos sejam superados. O que fazer diante desse quadro? Minha contribuição e de meus colegas, poucos ainda é verdade, tem sido no sentido de batalhar para que os estudos africanos ampliem espaço no Brasil, principalmente através da introdução de cursos nas universidades que capacitem, mesmo que superficialmente, novos formadores sociais. E nisso temos tido certo êxito. Há vinte anos havia no Brasil cerca de meia dúzia de disciplinas voltadas para os estudos africanos em universidades brasileiras, hoje seu número é incontável e continua a crescer. Nestes últimos anos tem sido realizados dezenas de concursos públicos para professores de estudos africanos em universidades públicas. As instituições privadas seguem caminho semelhante. Multiplicam-se pelo país afora cursos de "especialização", de extensão e de "capacitação" de professores. Surgiu finalmente no país um programa de pós-graduação em estudos africanos e as agências de fomento científico e acadêmico, federais e estaduais, parecem finalmente despertar de sua letargia quanto ao tema e ainda que timidamente, ensaiam passos para apoiar iniciativas e novos liames entre a as comunidades acadêmicas brasileira e africanas. Enfim, há um onda crescente que envolve também a publicação de livros e materiais didáticos diversos. Tudo isto nos parece extremamente importante pois enquanto a África permanecer desconhecida dos brasileiros, tanto à direita, quanto à esquerda, tanto os reacionários racistas, travestidos de liberais, quanto os que labutam arduamente para sua extinção, vão continuar prisioneiros de uma visão da África que foi criada para dominar.
Valdemir Zamparoni é pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) e docente da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/26122003censofamiliashtml.shtm.
2. População total: 169.872.856 sendo branca: 91.298.042 (53,75%); parda: 65.318.092 (38,45%); preta: 10.554.336 (6,21%); amarela: 761.583 (0,44%); indígena: 734.127 (0,43%). Cf. www.ibge.gov.br/home /estatistica/populacao/ censo2000/populacao/cor_raca_Censo2000.pdf.
3. Hegel, G. W. F..Lecciones sobre la filosofia de la história universal. Buenos Aires, Revista de Occidente, 1946.
4.. Zamparoni, V. "Estudos africanos no Brasil: Veredas". In Revista de Educação Pública, v.04, n.05, pp. 105-124, 1995.
5. Scwarcz, L. M. O espetáculo das raças. São Paulo, Companhia das Letras, p. 32. 1993.
6. Skidmore, T. Preto no branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
7. Guran, M. "Da bricolagem da memória à construção da própria imagem entre os Agudás do Benim". In Afro-Ásia, 28, pp. 45-76, 2002 e do mesmo autor Agudás os brasileiros do Benim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Gama Filho, 2000; Amos, A. M. "Afro-brasileiros no Togo: a história da família Olympio, 1882-1945", In Afro-Ásia, 23, pp.173-194, 1999 e Amos, A. M. e Ayesu, E. "Sou brasileiro: história dos tabom, afro-brasileiros em Acra, Gana", In Afro-Ásia, 33, pp. 35-65, 2005 e ainda Law, R. "A comunidade brasileira de Uidá e os últimos anos do tráfico atlântico de escravos, 1850-66." In Afro-Asia, 27, pp.41-77, 2002.
8. Lacerda, J. M. de. Pequena História do Brazil, por perguntas e respostas para uso da infância brazileira. [Revista e aumentada por Luiz Leopoldo Fernandes Pinheiro], Rio de Janeiro, Francisco Alves & Cia, 1914, pp. 129-130.
9. Para uma análise do significado de tal postulação ver o pioneiro: Moreira Leite, D. O caráter nacional brasileiro: história de uma Ideologia. 4ª ed., São Paulo, Pioneira, 1983. (1ª edição é de 1954).
10. Getulino, Ano I, n. 23, 30/12/1923.
11. Getulino, ano II, n. 64 de 20/12/1924.
12. A voz da raça, Apud Bastide, Roger. "A imprensa negra do estado de São Paulo", Estudos Afro-brasileiros, São Paulo, 1983, p. 133.
13. Rodrigues, J. H. Brasil e África outro horizonte. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1961.
14. Esses grupos estavam reunidos no Rio de Janeiro e em 1972 em decorrência de discordância um grupo criou a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba). Em 1975 o grupo se reunificou e criou o Instituto de Pesquisa da Consciência Negra (IPCN). Cf. http://arv_afrobrasileiras.blig.ig.com.br/, em 10/12/2003.
15. Mudimbe, V. Y.The idea of Africa. Bloomington, Indiana University Press; London, James Currey, 1994.
16. Sansone, L. "Da África ao afro: uso e abuso da África entre os intelectuais e na cultura popular brasileira durante o século XX". In Afro-Ásia, v. 27, pp. 249-269, 2002.