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Ciência e Cultura
Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.59 no.4 São Paulo 2007
FUNDOS SETORIAIS NO BRASIL: UM POUCO DA HISTÓRIA
Newton Muller Pereira
Na academia são realizadas pesquisas cujos resultados são colocados à disposição da sociedade sob variadas modalidades. Além de divulgados por intermédio de artigos científicos, novos conhecimentos, novos produtos e processos são também disseminados em fóruns especializados, em reuniões com interessados em desdobramentos econômicos, em discussões nas agências de fomento à Ciência, Tecnologia e Inovação (C&T&I), dessa forma mostrando a importância, o impacto, o alcance das investigações acadêmicas. Mas a partir desse círculo de iniciados, que bem conhece a centralidade dispensada à comunicação nesse ambiente, os temas científicos vêm se popularizando, ocupando crescente espaço nas mídias de grande penetração na sociedade, que atualmente se abrem ao jornalismo científico.
Apesar do destaque merecido, quando o resultado das pesquisas não é fisicamente observável, não é um processo ou produto das engenharias, nem um algoritmo para a solução de um problema, mas, sim, o desenho de políticas públicas ou de estratégias para implementá-las, pouco se ouve, e se tem documentado, sobre a contribuição da academia em suas proposições. Assim acontece, mais que freqüentemente, com o aproveitamento das idéias concebidas por acadêmicos de ciência e tecnologia, em que pese também divulgarem suas análises e avaliações em revistas e fóruns especializados. Via de regra, suas idéias e formulações são creditadas genericamente a um "processo natural" de implementação e modernização da gestão da coisa pública, que institucionalmente as assumem como novos instrumentos e concepções intrínsecas ao próprio processo.
O presente texto se propõe a resgatar parte da história da concepção da política de fundos setoriais no Brasil. Entretanto, deve ser sublinhado de antemão que não se trata simplesmente de atribuir paternidades a essa política mas, sim, de mostrar que a adoção de uma nova política envolve o concurso de diferentes atores muitas vezes geográfica e institucionalmente distantes, o que não impede de operarem em um mesmo ambiente socioeconômico propício e maduro para sua implantação. Contexto esse que, com as devidas reservas, remete-nos às descobertas múltiplas, ou simplesmente "múltiplo", como são denominadas na respectiva teoria que as investiga, que sustenta nem sempre ser possível atribuir uma invenção a um único inventor, visto que o ambiente já estaria então suficientemente maduro para que viesse a ocorrer por diferentes mãos, em diferentes locais, mais ou menos simultaneamente. À existência de um ambiente favorável é que é atribuída, neste artigo, a concepção da política de fundos setoriais.
Passando-se ao largo de toda uma discussão sociológica a respeito da genialidade do inventor ou da visão determinista da inevitabilidade de uma descoberta, que receberam atenção de autores do quilate de um Kroeber e um Merton, e mais recentemente uma abordagem de Monteiro (1) ao revisitar a descoberta da fotografia, "múltiplo" é considerada a invenção do cálculo por Newton em 1671 e Leibniz em 1676. Múltiplo é considerada a formulação simultânea da teoria da seleção natural por Darwin e Wallace em 1858, exemplos que ilustram o fundamento teórico aqui utilizado.
Emprestando da "teoria do múltiplo" a argumentação que sustenta a inevitabilidade de uma descoberta quando a maturidade socioeconômica é atingida, e por conta dessa maturidade, descobrimentos podem ocorrer simultaneamente em diferentes locais, por diferentes circunstâncias, por diferentes pesquisadores, apresentarei a seguir a minha versão sobre a origem e concepção da política de fundos setoriais, novo instrumento de fomento à ciência, tecnologia e inovação implantado pelo governo brasileiro no final da década de 1990.
Ao ser implementado no Brasil em 1999, o novo instrumento de fomento à CT&I caracterizado como fundo setorial já desfrutava de experiências bem documentadas em outros países, a exemplo do Programa Alvey no Reino Unido, bem como de literatura própria difundida especialmente no âmbito da ciência econômica. Esta abraçava o conceito de setorialidade, desenvolvido pelos precursores Nelson, Winter, Dosi e Pavitt (2).
Mais recentemente, apoiado nesses autores, Malerba (3) sustenta que o conceito de setorialidade deve ser entendido a partir de uma visão multidimensional, integrada e dinâmica dos diversos setores da economia. Reconhece sistemas setoriais de inovação e produção como constituídos por uma gama de produtos e agentes direta ou indiretamente relacionados ao mercado, que possuem uma base específica de conhecimentos, institucionalidades, tecnologias, insumos e demandas, base essa que se transforma a partir da co-evolução desses próprios elementos.
Assim, para Malerba, as vantagens de uma visão sistêmica setorial residem na possibilidade de maior conhecimento da estrutura e das fronteiras de cada qual, de seus agentes e interações, de seus processos de aprendizado de inovação e de produção, de sua dinâmica de transformação, e dos fatores que determinam as performances das firmas e dos países em que se localizam. Em outras palavras, a atuação setorial permite otimizar o investimento em CT&I.
Não obstante as vantagens apontadas na literatura, o financiamento setorial introduzido no Brasil se pautou, fundamentalmente, na oportunidade de vincular recursos ao setor de ciência e tecnologia, como escreveu o então secretário executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia, Carlos Américo Pacheco, personagem central no que diz respeito à concepção e implementação da política de fundos setoriais (4).
Contudo, ao se aceitar a proclamação que a vinculação de recursos conduziu à política de fundos setoriais não se pode esquecer que fatores estruturais também muito corroboraram para sua instituição, tais como as privatizações impostas à infra-estrutura do país. Pode-se mesmo afirmar que os fundos setoriais vieram também para garantir que a pesquisa científica e tecnológica, em setores privatizados ou abertos à concorrência nos anos 1990, não tivesse solução de continuidade, o que colocaria em risco a capacitação já alcançada no país (5).
A perda de investimentos em ciência e tecnologia e, conseqüentemente, de capacidade tecno-científica ao serem privatizados determinados setores industriais, especialmente dos que lidam com infra-estrutura, já havia sido motivo de investigações por André Furtado e Newton Pereira, ambos professores do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por ocasião dos respectivos pós-doutoramentos.
O professor Furtado estudou, em 1994, o setor petrolífero da França, tendo apontado a solidez desse setor quando comparado ao brasileiro, o que se devia ao maior número de atores constituintes da cadeia industrial, inclusive com centro de pesquisa (IFP) forte e independente da Elf, empresa cuja privatização não deveria acarretar desinvestimentos importantes em P&D do setor (6).
Professor Pereira estudou, também em 1994, a privatização do setor energético do Reino Unido, investigação que lhe permitiu apontar, em conferência proferida no II Congresso Brasileiro de Planejamento Energético, ocorrido nesse mesmo ano em Campinas, e depois publicar nos Cadernos do IG, os números que demonstravam o desinvestimento em ciência e tecnologia ocorrido após a privatização total do setor energético promovido por Margareth Tatcher (7).
Em meio às privatizações no Brasil, o Ministério de Minas e Energia contratou a Universidade Estadual de Campinas, em 1996, para executar o Projeto Modelagem Institucional e Funcional da Agência Nacional do Petróleo, posteriormente instituída pela Lei 9.478 de 06 de agosto de 1997, que também abriu à iniciativa privada a exploração e produção de petróleo e gás natural no território nacional. Projeto aquele que por sua envergadura congregou equipe da Faculdade de Engenharia Mecânica, do Instituto de Economia e do de Geociências, respectivamente lideradas por Osvair Trevisan, Luciano Coutinho e Newton Pereira.
Em que pese o projeto ter sido interrompido em 1997, quando o primeiro diretor geral da Agência Nacional do Petróleo foi empossado, o esboço do termo de referência que pautaria a institucionalidade e funcionalidade dessa Agência já havia sido devidamente entregue ao MME pela equipe da Unicamp. No documento estava a preocupação de Furtado e Pereira com os desinvestimentos na ciência e tecnologia do petróleo, setor não mais monopolizado pela Petrobras, ao ser disposto entre os objetivos da ANP o de estimular a pesquisa e a adoção de novas tecnologias na exploração, produção, transporte, refino e processamento; texto transferido ao inciso X, artigo 8 da Lei 9.478, conforme testemunho de Eloi Fernandes y Fernandes, um dos diretores responsáveis pela implantação da agência reguladora do setor petróleo e gás no Brasil.
A Nova Lei do Petróleo, como ficou conhecida a Lei 9.478, também dispôs sobre a distribuição de royalties a serem recolhidos à União por conta da produção de petróleo e gás natural, dos quais 25% do que vier a exceder a 5% da produção deverá ser transferido "... ao Ministério da Ciência e Tecnologia para financiar programas de amparo à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico aplicados à indústria do petróleo", o que viabilizou o objetivo traçado no inciso acima aludido.
Assim, para a captura e aplicação dos royalties do petróleo e gás, foi criada uma rubrica específica junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que viabilizou a elaboração do Plano Nacional de Ciência e Tecnologia do Setor Petróleo e Gás Natural, também conhecido como Fundo Setorial do Petróleo e Gás ou ainda pelo acrônimo CTPetro. A disponibilidade de novos recursos(8) para aplicação em CT&I, originários da contribuição de intervenção no domínio econômico CIDE, da compensação financeira sobre o uso de recursos naturais, dentre outros, proporcionou o ambiente favorável, a oportunidade anteriormente referida por Pacheco, para criar inicialmente cinco fundos setoriais aos moldes do de Petróleo e Gás, conjunto que deu então origem ao que hoje pode ser referido como Política de Ciência, Tecnologia e Inovação por intermédio de fundos setoriais.
Contada dessa maneira, nessas poucas palavras, a história dos fundos setoriais parece se resumir a poucos protagonistas, o que de fato é um reducionismo imperdoável, mesmo que o autor empregue neste relato a acepção fotográfica do termo redução, que significa adicionar contrastes. Enquanto o contraste adicionado favoreceu personagens, esmaecidas ficaram as instituições envolvidas no processo de criação e implementação, os demais membros das equipes que participaram nas formulações, as experiências inter-cambiadas, os conhecimentos difundidos para que a nova política se concretizasse. A verdade, de fato, é que mais do que a genialidade de um inventor, o conjunto desses atores é que tornou o ambiente favorável, maduro a esse tipo inovação, maduro para receber a política de fundos setoriais. Esta, sob a ótica do múltiplo, estava pronta para acontecer. Seria mesmo inevitável!
Newton Muller é professor associado do DPCT; integra os seguintes grupos de pesquisa do CNPq: Exploração e Produção de Petróleo e Mudança Tecnológica, Energia e Meio Ambiente, ambos da Unicamp.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Monteiro, R. H. "Brasil, 1983: A descoberta da fotografia revisitada". Dissertação de mestrado de Unicamp,1987.
Nelson, R.; Winter, N. An evolutionary theory of economic change. Cambridge, Mass: Harvard Univ. Press, 1982. Dosi, G. Technological paradigms and technological trajectories: a suggested interpretation of the determinants and directions of technical change. Research Policy, v.11, 147-171, 1982. Pavitt, K. "Sectoral patterns of technical change: towards a taxonomy and a theory. Research Policy", v.13, p.343-373, 1984.Dissertação de mestrado, Unicamp,1987.
Malerba, F. Sectoral systems of innovation and production. Research Policy, v. 31, p. 247-264, 2002.
Pacheco, C. A. As reformas da política nacional de ciência, tecnologia e inovação no Brasil (1999- 2000). Cepal, 2003.
Pereira, N. M. Fundos Setoriais: estratégias de implementação e gestão. Brasília: IPEA, Série Textos para Discussão nº1136, novembro de 2005.
Furtado, A.T. Le système dinnovation français dans lindustrie pétrolière. Paris: Cired, Junho de 1994.
Furtado A. T. "Política tecnológica setorial e planejamento energético: algumas lições de um estudo comparativo entre França e Brasil na indústria do petróleo", in Revista Brasileira de Energia. Rio de Janeiro: V. 4 nº 2 p. 7-37 jul/dez 1995.
Pereira, N.M. "Energy policy in the United Kingdom: from nationalisation to privatisation". Research Report, SPRU, September 1994. 26p.
Pereira, N. M. "Repercussões da privatização na matriz energética no Reino Unido". Cadernos do IG, v.7, n.1/2, 1997.p.57-78.
Lei 10.197, de 14 de fevereiro de 2001