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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.61 no.1 São Paulo  2009

     

     

    MODA: UMA APAIXONANTE HISTÓRIA DAS FORMAS

     

    Patricia Sant'Anna

     

    "A moda é um todo harmonioso e mais ou menos indissolúvel. Serve à estrutura social, acentuando a divisão em classe; reconcilia o conflito entre o impulso individualizador de cada um de nós e o socializador; exprime idéias e sentimentos, pois é uma linguagem que se traduz em termos artísticos."

    Gilda de Mello e Souza

     

    Definir a moda, do ponto de vista da ciência e da cultura, implica em contextualizar um fenômeno social que possui uma faceta ligada à estética do cotidiano, que dá acesso, nas palavras de Alexandre Eulálio, a "uma apaixonante história das formas" (1). De modo geral, Gilda de Mello e Souza aponta a moda como algo que "abrange as transformações periódicas efetuadas nos diversos setores da vida social, política, na religião, na ciência, na estética" (1) e que tem seu caso exemplar nas mudanças regradas dos estilos de vestuário e ornamentação.

    A vestimenta é definida comumente como proteção que o homem criou contra as intempéries. Esse pode ser o motivo pelo qual a humanidade veio a cobrir-se pela primeira vez, porém, o ato de cobrir o corpo — seja com pele animal ou tecidos rústicos — tornou-se um fator de diferenciação sociocultural. O ato de vestir-se vai além do ato simples e mecânico de proteção do corpo, o ser humano veste e adorna sua corporalidade com símbolos que ele sabe que os outros de sua sociedade saberão ler. Ele escolhe o que vestir. É uma seleção da imagem da pessoa como ser social, conformando uma construção visual frente à sociedade, pois fala aos iguais, aos que pertencem ao mesmo grupo e suas diferenças frente aos outros. O vestuário pode comunicar a respeito de diferentes assuntos culturais, desde a religiosidade até padrões de beleza, passando por preceitos morais, tradições, distinções de gênero, o que possibilita uma gama infinita de leituras.

    Nas sociedades complexas essa "segunda pele" é escolhida e trocada constantemente. Isso porque a escolha no vocabulário vestimentar ocidental é ampla, abrangente e maleável, construída a partir da idéia de novidade. Esta última impulsiona a produção de um imenso espectro de opções de peças, que possam construir composições, as quais suscitam interpretações das mais diversas. O vestuário ocidental possui uma lógica própria que é nomeada como moda. Para nós, as roupas e seus ornamentos, são importantes comunicadores de nossas crenças e ideais a respeito do mundo. Pois, a partir da maneira que um indivíduo manipula essa cultura material, ele expressa o que deseja que a sociedade reconheça nele, os lugares que frequenta; a música que ouve, enfim, seu comportamento. É uma linguagem que — como em qualquer outra sociedade — aloca-o em uma posição sociocultural. Trata-se de uma mensagem para todo mundo, ao mesmo tempo em que é uma mensagem particular do indivíduo para a sociedade, sem esquecer que é esta última quem produz o instrumental pelo qual o primeiro irá falar. Por isso, a moda vai além do vestir, ela adentra no universo de tecnologias da beleza, design de superfície, design de jóias e bijuterias, decoração, gostos de consumo cultural etc. Para defini-la é necessário adentrar tanto em um mundo de cultura material quanto de todos os aspectos imateriais que a envolvem, pois a moda não é mero espelhamento da sociedade e da cultura; antes, faz parte desta, construindo e constituindo-a (2).

    BREVE HISTÓRICO No final da Idade Média o coração da moda já está consolidado em meio às elites. A mudança periódica na forma do vestir não é regra em toda sociedade, mas se manifesta nos grupos sociais dominantes. Um dado importante a se destacar é de que, no período, tanto os homens quanto as mulheres são igualmente ornamentados e competem visualmente entre si. Havia diferenciações na construção da aparência de cada gênero, mas ambos eram ostensivamente elaborados (3). A moda não possuía um caráter feminino, tal idéia começa a emergir somente com a consolidação da burguesia industrial. "O advento da burguesia e o prestígio crescente da carreira desviam o interesse masculino da moda, que passa a ser característica do grupo feminino" (1). A partir do final do século XVIII, a moda se consolida como uma cadeia produtiva que impulsiona o consumo e que tem uma alma capitalista. Por um lado, o vestuário feminino possuía uma incrível liberdade lúdica; por outro, os homens se compunham em uma silhueta alongada e cilíndrica, concluída no uso de cartola, as cores eram econômicas, e a palheta masculina tem tons sóbrios e discretos. "Roupa funcional e liberdade de movimentos eram atributos do vestuário masculino, enquanto a rigidez e a suntuosidade da roupa feminina serviam antes de tudo para exprimir a riqueza do marido" (3).

    Se hoje a moda é vinculada como fenômeno cultural intrínseco ao feminino, essa caracterização se inicia no século XIX. Como bem notou Charles Baudelaire, naquele período, a própria idéia de mulher mistura-se ao de seu traje: "que poeta ousaria, na pintura do prazer causado pela aparição de uma mulher, separar a mulher de sua indumentária?" (4). Nessa época, a liberdade individual torna-se "modo de vida", ou seja, existe uma ideologia e uma prática social que caminham em direção à queda das leis discriminatórias com relação às classes, tornando todos potencialmente consumidores. Nesse cenário, homens burgueses são demasiadamente ocupados em ganhar dinheiro, enquanto suas mulheres preocupam-se com o vestir. Esses dois posicionamentos, que nos parecem antagônicos, são, no entanto, dois lados da mesma moeda: o vestuário feminino significa status para ambos. Além desta primeira, há ainda a correlação que efetuamos no âmbito profissional, pois o fabrico dos produtos de moda também é compreendido como um lócus feminino. Consequentemente, a moda é vinculada ao universo feminino seja por lembrarmos "da dama da sociedade, da funcionária do escritório, da dona de casa, da tecelã e da costureira. Das que chegam pela entrada principal ou pela porta de serviço, com fortunas a gastar ou economias a fazer" (5).

    INDÚSTRIA A moda é conectada, historicamente, ao universo industrial. A própria Revolução Industrial é profundamente ligada à moda, pois foi a partir das máquinas de tecelagem e das conquistas técnicas ligadas ao desenvolvimento de todo o processo produtivo que ela se estabeleceu e desenhou a vida urbana moderna, com sua intensa concentração de pessoas (multidão) e, mesmo novas técnicas de vendas (os grands magazins). A moda é um fenômeno cultural que, como a fotografia e o cinema, pertence ao ambiente urbano da modernidade (2).

     

     

    Ao longo do século XX, a moda se consolida como nós a conhecemos: uma cadeia industrial com alma capitalista. Seus produtos exigem dos indivíduos sentirem e demonstrarem visualmente suas identificações com grupos. Estes possuem seus próprios signos de status, beleza, atitudes e posturas frente à sociedade. A moda explora e investe na formação de grupos consumidores. Ela produz e vende identidades pré-fabricadas. A moda aponta status, porém, este, nas sociedades complexas, não é tão facilmente detectável afinal, cada um pode manipular a sua coordenada de consumo, participando do jogo de escolhas e ostentação ao seu modo (e possibilidade) de demonstrar valores aos seus pares. Como demonstra Sahlins, a moda alimenta tanto o sistema capitalista quanto a sua estrutura simbólica: "em sua dimensão econômica, esse projeto (...) consiste na reprodução da sociedade num sistema de objetos não simplesmente úteis, mas significativos, cuja utilidade realmente consiste em uma significação (...) mera aparência deve ser uma das mais importantes formas de manifestação simbólica na civilização ocidental. Porque é através de aparências que a civilização transforma a contradição básica de sua construção num milagre de existência: uma coesa sociedade de estranhos" (6). Trata-se de uma experiência social em que é necessário compreender tanto a relação entre moda e vestuário quanto o processo histórico no qual ela se formou no mundo capitalista.

     

     

    MODA E APARÊNCIA O foco ocidental na individualidade exige liberdade de expressão, e revela a tensão do ato de vestir-se: ser individual X ser social.  É uma associação intencional de elementos que, segundo Simmel (7) conjuga, portanto, a idéia de uniformidade e pertencimento. Trata-se de uma linguagem que está intrinsecamente ligada à idéia de uma sociedade organizada em grupos. As pessoas manipulam "idiomas" diversos e específicos do código do vestuário e, ao elaborar sua própria aparência, esta é reconhecida pelos vários grupos em que transita. A "rotulação" faz-se necessária para se ler os passantes, porém, esta é falível. Deste modo, as pessoas podem ser, em um primeiro momento, classificadas e definidas de uma maneira e serem para além delas, já que a identidade "é produto de um processo que envolve respostas de outras pessoas ao comportamento" (8). A aparência que a moda constrói é feita para residir nos olhos dos outros.

    Nota-se que é fundamental atentarmos para a moda como espaço expressivo poderoso, já que há uma potencialidade sociocultural e poética nos vestuários que as pessoas ostentam (9). Ao nos vestirmos revelamos um mapa dos significados contemporâneos, tanto de nossos processos de construção de identidade quanto de compreensão de como os indivíduos interagem conosco socialmente através das aparências. A escolha de vestes indica o que, onde (no sentido temporal e local da palavra), quem e, até mesmo como a pessoa vestida coloca-se frente à sociedade, aos grupos com os quais interage e a si mesma. Como bem demonstra Sahlins, o sistema de vestuário é um "esquema muito complexo de categorias culturais e de relações entre elas, um verdadeiro mapa — não é exagero dizer — do universo cultural" (6).

    A moda é uma linguagem baseada em um código simbólico aberto, onde o significado é dado, em princípio, pelos produtores (estilistas, indústria de moda, jornalismo especializado), mas onde os consumidores possuem uma enorme possibilidade de remanejamento e rearticulação do símbolo, ressemantizando-o constantemente. É ingênuo pensar que a demanda é estabelecida a partir da oferta, e que o simples movimento de inversão dessa equação dar-nos-ia a resposta "certa". A moda não é simplesmente imposta, o que ocorre é uma dinâmica entre produtor-produto-consumidor.

    A criação cotidiana que cada um faz ao escolher quais peças de roupa irá usar é, também, parte da idéia de "criar" em moda. Já que se trata de dar uma nova composição (cor, textura, caimento e forma) aos elementos já pré-existentes em nosso guarda-roupa. Porém, se deve fazê-lo de maneira que seja compreensível àqueles com os quais desejamos nos comunicar. Enfim, nos vestimos para os nossos pares. Daí, uma das maiores aventuras e enfrentamento crítico que podemos sofrer são nossos diários confrontos com o espelho. Pois o que vemos na superfície vítrea não é nosso mero reflexo, mas um estranho, o qual se examina com escrutínio. Nesse ponto, percebemos que a idéia de que a moda é antagônica à tradição é um equívoco, pois ela lida, o tempo todo, com o repertório precedente de seu receptor, isto é, com sua memória. A moda, enquanto território da idéia de novidade, não se contrapõe aos costumes e à tradição, o que cria uma dinâmica comum a qualquer outra manifestação cultural, já que ela manipula aspectos sincrônicos e diacrônicos de sua existência. Costumes e tradições são elaborações culturais que se modificam, e o fazem a partir da participação social. Dessa maneira, a moda é um tipo de manifestação cultural que também passa por eventos de atualização e efetivação e seus preceitos regem a forma sensível da vida cotidiana.

    As mudanças e características da moda nos apontam para transformações mais vastas e complexas ligadas ao modo de ser, sentir e pensar de uma sociedade, ela nos dá acesso a como, por exemplo, influências advindas do exterior são consumidas, apropriadas e ressemantizadas no interior de nosso país, não sendo assim uma simples contaminação, mas um legítimo diálogo. Outro importante ponto de caracterização da moda é que é um fenômeno que está imerso na idéia de arte da era industrial, já que sua concepção nasce de uma criação que leva em conta a repetição, a publicidade e o consumo. Porém, como qualquer artista, o estilista — ou designer de moda — procura uma forma visual. Da mesma maneira como Focillon (10) atenta sobre a prática dos pintores e escultores e sua busca pela forma, como medida no espaço, que resolva o problema plástico enfrentado, o criador de moda busca harmonizar fatores como caimento do tecido, textura, cor e design de superfície, para descobrir qual é a "melhor forma", seguindo os valores estéticos vigentes no momento.

    CENÁRIO DE PESQUISAS As pesquisas sobre moda podem partir de diversos pontos, da história da arte e antropologia até o universo da engenharia têxtil e de produto. No entanto, há algo em comum a todas: a consciência de que se trata de um fenômeno sociocultural. Fenômeno no qual todos estão imersos, e que suscita reflexões, questionamentos e pesquisas desde o século XIX. Célebres autores dedicaram-se aos estudos de moda, dentre eles: Oscar Wilde, Charles Baudelaire, Honoré de Balzac, Thornstein Veblen, John C. Flügel, Georg Simmel, Gabriel de Tarde, Edward Sapir, Ruth Benedict, Roland Barthes, C. Willet Cunnington, Richard Martin, James Laver, Pierre Bourdieu, Mike Featherstone, Germano Cellant, entre outros.  E, no Brasil, destacamos os escritos e pesquisas de Gilberto Freyre, Alexandre Eulálio e Gilda de Mello e Souza. Nos anos 1990, no Brasil, iniciou-se um verdadeiro boom de pesquisas dedicadas ao universo da moda, com foco desde aspectos artísticos e socioculturais (psicológicos, antropológicos, sociológicos, históricos, estudos de design, artísticos, estéticos) até as engenharias (químicas, têxtil e de produção). A produção acadêmica brasileira é tão substancial que no I Congresso Internacional de Moda, ocorrido em Madri, Espanha, de 22 a 24 de outubro de 2008, das 32 comunicações selecionadas e proferidas, 14 eram de brasileiros que possuem pesquisas em andamento tratando de diferentes aspectos da moda, suplantando a representação de outras nacionalidades em larga escala (11).

    APONTAMENTOS FINAIS Em um universo cultural onde comprar, consumir e adquirir são ações de relevância, a moda é um dos mais importantes fenômenos socioculturais a ser tratado tanto pela comunidade acadêmica quanto por políticas públicas. Em especial, porque nos dá acesso à diversidade cultural brasileira, e dialoga com valores culturais locais, nacionais e internacionais. É uma manifestação que transita do popular ao erudito, do artesanal ao industrial, do material ao imaterial, é, assim, um meio de expressão cultural, pois a moda joga cotidianamente com complexas formas e valores culturais, que são construídos de amálgamas que fundem, a um só tempo, elementos dos mais regionais e enraizados em questões identitárias locais, aos mais internacionais e mesmo pasteurizados (12). Trata-se, portanto, de uma manifestação cultural que tem potencialidades múltiplas no que se refere a uma geração de uma integração socioeconômica de todo o país, levando em consideração a dialética da diversidade/identidade como motor de sínteses simbólicas e estéticas que orientam, fomentam e criam as sensibilidades culturais brasileiras.

     

     

    Patricia Sant'Anna é antropóloga e historiadora da moda, doutoranda em história da arte no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas(IFCH) da Unicamp. É docente na Universidade Anhembi Morumbi. Email: patsant@gmail.com 

     

     

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    1. Souza, G. de M. e. O espírito das roupas. A moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

    2. Sant'Anna, P. "O desfile de imagens: um estudo sobre a linguagem visual das revistas de moda (1990-2000)". Campinas: dissertação de mestrado em Antropologia Social, IFCH, Unicamp, 2002.

    3. Lipovetsky, G. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas.  São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    4. Baudelaire, C. Sobre a modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

    5. Duran, J. C. Moda, luxo e economia. São Paulo: Babel Cultural, 1988.

    6. Sahlins, M. "La pensée bourgeoise – a sociedade ocidental enquanto cultura". In: Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

    7. Simmel, G. Cultura femenina y otros ensayos. Ciudad del México: Espasa Calpe, 1961.

    8. Becker, H. S. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.

    9. Celant, G. "Cortar é pensar: arte & moda". In: Kant, crítica e estética na modernidade. São Paulo: Editora Senac, 1999.

    10. Focillon, H. A vida das formas. Lisboa: Edições 70, s/d.

    11. Museu Del Traje/Centro de Investigación Del Património Etnológico. Actas CIM – Congreso Internacional de Moda: La moda, un espacio de innovacion y cultura. Madrid: Museo Del Traje, 2008.

    12. Sant'Anna, P. Diagnóstico do segmento cultural de moda – plano nacional de cultura. Brasília: Ministério da Cultura, 2006.