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Ciência e Cultura
On-line version ISSN 2317-6660
Cienc. Cult. vol.68 no.2 São Paulo Apr./June 2016
http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602016000200018
POESIA
Manoel de Barros: ver, rever e transver
Kátia Kishi
"Eu não amava que botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma árvore e podia apreciar melhor os passarinhos", explica o poeta Manoel de Barros em Memórias inventadas: a segunda infância. Manoel nasceu em Corumbá, mas logo foi morar com a família na "capital do pantanal", Corumbá (MS), onde viveu até seus oito anos. Desse local, em que água e terra se confundem, veio a inspiração para seu estilo que não diferencia verso de frase. "Na verdade, ele escrevia uma espécie de mistura entre poesia e prosa. Você olha e tem cara de verso, mas é prosa. E às vezes você lê uma prosa, mas no fundo é verso. É como as águas. As águas misturam as coisas", explica o professor de teoria da literatura e de literatura e cinema, da Universidade Federal Fluminense (UFF), Adalberto Müller Jr.
Essa inventividade foi além da estrutura dos textos para seus conteúdos. Porém, Barros nunca gostou de ser classificado como "poeta da natureza" ou "poeta do pantanal" só por utilizar dessas experiências como recursos textuais e de criatividade. Sua obra é mais que uma bela descrição, afinal poeta lida com palavras e inventa a ponto de levar o leitor a alargar seu olhar. "As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis:/ Elas desejam ser olhadas de azul -/ Que nem uma criança que você olha de ave.", ensina o poeta no Livro das ignorãças. E é nesse jogo, entre a natureza e a linguagem, que se deve ler o poeta. "Ele faz o conteúdo (a natureza) entrar na forma e se confundir com ela, é uma linguagem da natureza e, de outro lado, a natureza da linguagem", esclarece Müller. Segundo ele, Barros opera uma mudança sobre quem é o sujeito das ações, libertando e dando voz às coisas. "É o que acontece no poeminha sobre os caracóis: 'Ah, como serão ardentes nos caracóis os desejos de voar!' Essa é uma perspectiva que vem do caracol. Quem vai imaginar que o caracol quer voar? Fica se arrastando na pedra, na parede... Então Manoel imagina pontos de vista que não são humanos. Isso significa se tornar 'coisal', quando o homem se funde com a natureza", explica o pesquisador.
Aos nove anos, Manoel se mudou para o colégio interno de Campo Grande para concluir o antigo ensino primário. O contato com livros na escola intensificou seu interesse pela literatura. É da obra do padre Antônio Vieira que vem o misticismo presente na poesia de Manoel de Barros. "Ele é um poeta místico, mas não religioso. O místico é alguém que acredita que a transcendência só se realiza na existência. Nas coisas. Na vida...", ressalta Müller. De acordo com ele, o místico está presente na ideia do êxtase ou gozo com o sagrado, as coisas e a linguagem, como quando "O corpo do rio prateia/ quando a lua/ se abre", do poema O livro de Bernardo, e também presente em O guardador de águas quando Manoel de Barros declara que "a lesma influi muito em meu desejo de/ gosmar sobre as palavras/ nesse coito com letras!".
SONHO DE SER "INÚTIL"
Manoel de Barros concluiu o ginásio e o curso de direito no Rio de Janeiro, onde se tornou membro da Juventude Comunista, experiência que marcou toda sua obra. Mas abandonou a organização após o discurso de Luiz Carlos Prestes em apoio ao governo de Getúlio Vargas. Depois disso, viajou para Bolívia, Peru e estudou cinema e pintura por um ano em Nova York. Ao voltar para o Rio, teve várias ocupações, incluindo a de corretor de imóveis, quando conheceu aquela que seria sua esposa, a mineira Stella Leite. O casal se mudou para Corumbá após a morte do pai de Manoel para cuidar da fazenda herdada, isolandose mais ainda das grandes rodas de literatura. Por anos, o poeta morou na fazenda, até conseguir se estabelecer em Campo Grande e realizar seu sonho de ser "inútil", como descrevia a profissão de poeta.
Um dos poetas que mais vendeu livros no Brasil só teve sua obra largamente conhecida quase meio século depois de lançar seu primeiro livro Poemas concebidos sem pecado, publicado com 21 exemplares artesanais, em 1937.
A capacidade de fazer rir de Manoel de Barros fez com que as editoras explorassem em demasia uma imagem de poeta para crianças que só fala da natureza, o que acabou ofuscando o aspecto político da sua obra. "O Manoel de Barros era profundamente político. Não que ele apoiasse candidato A ou B, mas ele vinha de uma formação, não só ligada ao Partido Comunista, mas de uma leitura mística de Marx", aponta Müller. O professor da UFF compara a poesia de Manoel com a ideia básica de São Francisco de Assis, de amor à natureza e a qualquer criatura, na busca por uma sociedade mais justa. "Isso é o mais profundo da poesia de Manoel de Barros, ele fala de 'inutensílio', de uma poesia que cuida daquilo que a sociedade capitalista jogou fora.
Tanto do sapato velho descartado, quanto das pessoas que foram descartadas pelo sistema. Então ele fala do andarilho... o andarilho o que é? A pessoa que não se enquadra em lugar nenhum no sistema capitalista. Quando Manoel de Barros fala do ínfimo, do descartado, do desnecessário, claro que é político", completa Müller.
ALÉM DOS LIVROS
O processo de criação de Manoel de Barros era singular. Ainda segundo Muller, ele mesmo fabricava seus caderninhos sem pauta, geralmente com uma pintura que gostava na capa, e começava a escrever a mão. Normalmente juntava três e publicava um livro, daí as divisões em suas obras, que na verdade não existem. Para Muller, podese considerar todos seus livros uma só obra.
As entrevistas escritas que concedia também são uma rica fonte para conhecer o poeta. "Ele escrevia com as mesmas técnicas que usava para escrever os poemas", explica Müller, que reuniu todas as entrevistas concedidas até 2003 no livro Encontros. Os textos do poeta também foram adaptados para o cinema, no documentário Só dez por cento é mentira (2008) de Pedro Cézar, e os curta-metragens Caramujo-Flor, de Joel Pizzini e Wenceslau e a árvore gramofone, de Adalberto Müller Jr. Também inspiraram peças de teatro, exposições e música, como o álbum Música de sobrevivência, de Egberto Gismonti. "Manoel de Barros é intraduzível. Tudo que a gente pode fazer é tentar entender a linguagem dele, se apropriar dessa linguagem e criar um outro meio, como em outra mídia, algo de equivalente", finaliza Müller.
Manoel de Barros, que completaria 100 anos em 2016, faleceu aos 98 anos, no dia 13 de novembro de 2014. Muitos números para alguém que, ao invés de contar ou medir, escolheu ver, rever e transver o mundo.