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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.72 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2020

    http://dx.doi.org/10.21800/2317-66602020000100014 

    ARTIGOS
    LITERATURA E CIÊNCIA

     

    Jogos de sombras, ecos e refrações: a vilania em matemática

     

     

    Júlio César Augusto do Valle

    Licenciado em matemática, mestre e doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Instituto Superior de Educação de São Paulo e secretário municipal de Educação de Pindamonhangaba, desde janeiro de 2017. Tem desenvolvido pesquisas sobre as relações entre matemática e cultura, além de experiências de políticas públicas educacionais brasileiras

     

     

    "Estudantes dizem que matemática foi vilã na primeira fase da Fuvest" [1] foi a manchete de uma notícia recente do portal G1 elaborada a partir de entrevistas com candidatos que classificaram as questões da disciplina na prova como difíceis e confusas. Enquadrá-la sob a pecha da vilania, contudo, não constitui somente a opinião desses candidatos em relação a esse vestibular, em particular. Tornou-se já lugar comum destacar a complexidade dos conhecimentos matemáticos, como denota manchete do Correio Braziliense: "Medo de matemática tem origem cultural e traz consequências negativas" [2].

    O mesmo encontrei nos sites Recanto das Letras ("Matemática: a grande vilã nas séries iniciais" [3]), Brasil Escola ("O que fazer quando a matemática se torna uma vilã?" [4]) ou ainda Revista Encontro ("Matemática é a grande vilã da alfabetização" [5]). Este último se pautava, inclusive, nos dados oficiais do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), coletados por meio da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), que revelam que 57% das crianças nos terceiros anos das escolas brasileiras apresentaram desempenho inadequado na disciplina em 2014.

    Que a matemática seja considerada como a vilã das disciplinas escolares, então, se compreende diante das dificuldades apresentadas, por exemplo, por milhões de crianças brasileiras que se submeteram à avaliação mencionada acima. Nesse sentido, o que quero dizer é que não me surpreende atribuir traços de vilania à matemática, cujo aproveitamento escolar tem sido tradicionalmente baixo, provocando angústias, bloqueios e retenções. O que me surpreende e instiga, ao invés disso, é a atribuição de características da matemática - ou dos matemáticos - à vilania, que ocorre na literatura.

    Vilãs e vilões frios e calculistas pululam a literatura de alguns contextos, lugares e tempos, mas por que teria lhes sido atribuída essa competência tão célebre do campo dos conhecimentos matemáticos? Pressupondo que responder a essa pergunta pode nos ajudar a compreender os motivos que têm afastado milhões de pessoas do gosto pela matemática, debruçamo-nos sobre o caso de um proeminente vilão da literatura, concebido como professor de matemática para satisfazer aos anseios e propósitos de seu criador - o professor Moriarty, principal vilão e inimigo de Sherlock Holmes.

     

    "UM GÊNIO, PENSADOR ABSTRATO" - MORIARTY

    "Ele é o Napoleão do crime, Watson. É o responsável por metade das ações malignas e quase todos os delitos ocultos nesta grande cidade. É um gênio, um filósofo, um pensador abstrato, dotado de um cérebro de primeira grandeza" - essas são as palavras do detetive Sherlock Holmes que descrevem o professor James Moriarty para seu companheiro de aventuras, o médico John Watson [6, p. 7]. Chamam a nossa atenção sua menção a um "cérebro de primeira grandeza" e, ainda mais, a um "pensador abstrato", genial.

    Como veremos adiante, tantos e tamanhos elogios não são arbitrários. O gênio do crime, professor Moriarty, teria sido o único rival do detetive a cativar sua admiração e o criador de ambos, sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), escritor e médico britânico, teve seus motivos para fazê-los assim. De acordo com o prefácio de José Francisco Botelho ao Livro de Moriarty, o autor "irritava-se com a obrigação constante de inventar charadas e mais charadas para a lupa infalível de Holmes", especialmente porque isso o afastava de outros trabalhos que, segundo Botelho, considerava mais nobres [6, p. 11].

    Evidência disso, para seu prefaciador e tradutor, seria uma carta que Doyle escreveu para sua mãe, em 1891, em que desabafava: "Estou cansado de ouvir o nome de Sherlock Holmes. Ele pertence a um extrato inferior de criação literária. Como prova de minha resolução, estou decidido a matá-lo" [6, p. 11]. Porém, não seria uma tarefa simples aniquilar o mais popular detetive da literatura inglesa, representante por excelência do raciocínio hipotético-dedutivo. No prefácio de Botelho, lemos:

    Mas como se destrói um ser tão formidável? Apesar de sua fadiga em relação ao personagem, Doyle não deixava de expressar por ele uma deferência cavalheiresca. "Um homem como ele não pode morrer por causa de um arranhão ou um resfriado. Seu fim tem de ser violento e intensamente dramático", escreveu. Em agosto de 1893, Doyle viajou à Suíça com sua primeira esposa, Louise. Grande adepto de caminhadas ao ar livre, ziguezagueou durante dias pelas trilhas dos Alpes, onde visitou as cachoeiras de Reichenbach. "Este será um bom sepulcro para o pobre Sherlock, ainda que eu enterre minha conta bancária junto". Todavia, faltava encontrar um personagem capaz de lançar Holmes no precipício. Foi com o intuito específico de destruir seu detetive que Doyle criou Moriarty - concebido, desde o início, para ser um espelho sombrio de Sherlock. Afinal, era preciso um titã para eliminar outro titã. (...) O embate entre Holmes e Moriarty termina com a queda de ambos nas profundezas de Reichenbach. Após redigir o último parágrafo, anotou em seu diário: "Matei Holmes". (grifos nossos) [6, p. 11-12]

    Não tardou para que o criador de Holmes revelasse que somente um professor de matemática seria capaz não só de acompanhar o detetive, mas também de superá-lo, em seu apurado raciocínio inferencial, hipotético-dedutivo, marca indelével do personagem. Moriarty se caracterizaria, cada vez mais, como "o maior conspirador de todos os tempos, o arquiteto das mais diabólicas maquinações, o cérebro que controla o submundo" [6, p. 15]. Tratava-se de alguém com tanto talento para a matemática que, aos vinte e um anos, teria escrito um tratado sobre o binômio de Newton - o que lhe rendeu uma cátedra numa universidade inglesa onde teria lecionado durante mais de vinte anos.

    A escolha, então, de um professor de matemática como o único capaz de encerrar o fado do criador de Holmes torna-se, sob a nossa perspectiva, bastante elucidativa dos motivos pelos quais competências matemáticas têm sido atribuídas aos grandes vilões da literatura, conforme argumentaremos adiante. Possuidor de tamanha genialidade, capaz de "abrilhantar ou devastar o destino de nações inteiras", a figura de Moriarty desvela-se, no decorrer da obra, como responsável por "maquinar crimes variados enquanto fingia ser apenas um pacato professor de província", fazendo do venerável matemático "a insuspeitada cabeça de uma vasta e sinistra organização, cujos tentáculos de sombra estendiam-se por toda a Inglaterra e ainda além" [6, p. 17].

    Botelho também nos conta que "os próprios asseclas de Moriarty - exceto por um seleto círculo de seguidores mais próximos - ignoravam sua verdadeira identidade", fato coadunado pela percepção de que "no jargão dos malfeitores, o grande chefe da guilda era designado por um solitário e terrível pronome: Ele". Nesse mesmo sentido, somam-se à figura fria e calculista do professor outras competências matemáticas que teriam sido fundamentais à construção de sua imagem: "a disciplina da organização", considerada por Botelho como draconiana; mas, mais do que isso, o fato de que "Ele raramente sujava as mãos: limitava-se a calcular, planejar e organizar" [6, p. 17].

    Frio, calculista, planejador inequívoco, fatalmente preciso e cruelmente rigoroso, Moriarty encerra em si toda a vilania edificada sobre as bases matemáticas de sua personagem, necessárias e suficientes para conduzir Holmes a seu beco sem saída, como faz magistralmente o bom enxadrista em um conto denominado - quase que ironicamente considerando a finalidade deste ensaio - "O problema final".

    Ao compará-lo com Iago, "outro mestre das artes conspiratórias", Botelho afirma que "ambos são maquinadores magistrais (...) mas o personagem shakespeariano é um vilão de retórica exuberante, um exibicionista do Mal, enquanto Moriarty é uma figura discretamente terrível, que só conseguimos enxergar de esguelha" [6, p. 7]. Sua terrível discrição também pode acompanhar esse rol de características que, às vezes de forma estereotipada, caracterizam os professores de matemática. Além dela, concordamos e sublinhamos a leitura do prefaciador e estudioso da obra quando afirma que "a vilania do temível professor é um jogo de sombras, ecos e refrações: sua voz se ouve apenas à distância e sempre em segunda mão" [6, p. 8].

    Afinal, esse trecho - tanto quanto o seguinte - evidencia certa capacidade de Moriarty, muito nítida em seu ser matemático, de interpretar a realidade com tamanha precisão e facilidade que seria possível coordená-la, controlá-la, predizê-la para atingir suas terríveis finalidades. Como a imagem que muitas vezes alunas e alunos guardam da matemática escolar, o próprio Moriarty "aparece e some com mínimas explicações, deixando atrás de si um rastro de reticências", tornando-se, nas palavras de Botelho, o "protótipo do vilão cerebral e manipulador".

     

    O MEDO DA MATEMÁTICA E DE SUA VILANIA

    A maior parte das razões que me levaram a escrever este livro podem ser referidas a uma ocorrência do século XVIII, no dia em que o grande matemático alemão Leonhard Euler se encontrou com o eminente intelectual francês Denis Diderot, ateu convicto, a quem apresentou uma prova matemática, espúria da existência de Deus. Segundo parece, Euler aceitara um convite de Diderot, que ao tempo se encontrava na corte do czar russo. No dia de sua chegada, Euler procurou Diderot e proclamou: "Monsieur, (a + bn)/n = X, donc Dieu existe; répondez!" [Cavalheiro, (a + bn)/n = X, portanto, Deus existe; responda!] Anteriormente, Diderot tinha já eloquente e vigorosamente refutado numerosos argumentos filosóficos para a existência de Deus, mas neste momento, incapaz de compreender o significado da equação matemática que Euler lhe apresentara, sentiu-se intimidado e não proferiu palavra. [7, p. 9]

    Para o autor acima, a história ilustra bem como se relacionam matemáticos e não matemáticos em nossa sociedade. Mesmo alguém proeminente como Diderot teria silenciado diante do que o matemático estadunidense Michael Guillen caracterizou como "aquele pavor patológico e a humilhação confusa que a matemática provoca em centenas de milhões de pessoas" [7, p. 10], o famigerado medo da matemática - uma constante ao longo da história em sua opinião. Conforme afirma adiante, "o medo da matemática é, na verdade, não um, mas o conjunto de vários males, cada um dos quais proveniente de determinada ideia errada acerca da matemática". Sob essa perspectiva Guillen elucida que, "em primeiríssimo lugar, o medo da matemática deriva do desconhecimento dos limites da mesma matemática".

    De acordo com essa chave interpretativa, "Diderot ficou muito atrapalhado com a interpelação de Euler, porque ignorava que a matemática ainda não se tinha lançado sequer na abordagem dos problemas do infinito, quanto mais dos de Deus" [7, p. 11]. O desconhecimento dos limites da matemática tem, portanto, assustado, silenciado e afastado de seus domínios numerosos "Diderot" desde o acontecimento narrado e é justamente sobre esse desconhecimento acerca de seus potenciais - mas, mais ainda, de seus limites - que se edificam também numerosos vilões criados pela literatura. Tudo funciona como se - assim como na história do encontro de Euler e Diderot - conhecer profundamente a matemática proporcionasse ao matemático um domínio tão preciso e rigoroso como inexplicável sobre a realidade.

    Essa chave de interpretação nos permite compreender por que motivos somente um professor de matemática, com uma mente brilhante, seria capaz de pôr fim às aventuras de Sherlock Holmes. Se o detetive era exímio, único, em seu raciocínio hipotético-dedutivo, fazia-se mais e mais necessário conceber como rival alguém capaz de ler, interpretar, deduzir e coordenar aspectos bastante complexos da realidade. Ora, pressupor que a matemática é a ferramenta suficiente para esse tipo de prática demonstra, tanto quanto a história de Diderot, o desconhecimento de seus limites. Em algumas interpretações e leituras da realidade, pode ser necessária alguma matemática, mas pressupô-la como suficiente - em detrimento de recortes das ciências humanas e mesmo de saberes de diferentes naturezas, como, por exemplo, os de matriz popular ou ancestral - significa atribuir-lhe uma capacidade que ela não possui. Para elucidarmos nossa afirmação, recorremos à abordagem filosófica da matemática.

     

    A NATUREZA DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO EM OPOSIÇÃO À VILANIA

    Para nos opormos às formas como a matemática tem sido, via de regra, constituidora da vilania, é preciso, portanto, discutir a própria natureza do conhecimento matemático - discussão cuja ausência faz, não poucas vezes, com que supervalorizemos as possibilidades da matemática (ou do matemático). Afinal, elucidar como se constrói matemática contribui em larga medida para que compreendamos seus limites que, de acordo com Guillen, pode ser decisivo para desconstruir o medo que tradicionalmente assola até mesmo os indivíduos mais brilhantes como Diderot.

    O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) concebeu respostas bastante interessantes às perguntas que angustiavam os matemáticos e os filósofos da matemática em sua época, tornando-se por isso um dos responsáveis pela virada linguística na história da filosofia.

    À virada linguística, portanto, associa-se a figura do filósofo justamente porque os trabalhos elaborados pelo "segundo Wittgenstein" - nome dado à fase de seu pensamento em que há um rompimento decisivo com muitos preceitos que o orientavam anteriormente - provocaram a superação da concepção estritamente referencial da linguagem que caracteriza predominantemente o modo de entender a linguagem - daí, a virada linguística. As Investigações filosóficas de Wittgenstein tornaram-se, nesse cenário, ilustrativas do sentido e do significado da própria virada linguística.

    Do ponto de vista do Wittgenstein maduro, os significados das palavras e das coisas em geral não são dados a priori como concebiam Platão e Agostinho, por exemplo, mas, ao invés disso, são construídos na prática, no uso: "Pode-se, para uma grande classe de casos de utilização da palavra 'significação' - senão para todos os casos de sua utilização -, explicá-la assim: a significação de uma palavra é seu uso na linguagem" [8, §43]. Isso também sinaliza o entendimento de que o significado das palavras não se restringe apenas à simples correspondência com objetos e coisas. Em síntese, para Wittgenstein, a função da linguagem, sobretudo por meio das palavras, não é a de substituir os objetos, como em certa medida revelava o entendimento de Agostinho. Nomear, etiquetar, objetos e coisas, com efeito, consiste em um nível muito elementar da linguagem.

    Se os significados das palavras se constituem nos usos que fazemos da linguagem como um sistema articulado de símbolos e sons, então é necessário um conjunto de "regras de uso" que nos permitam empregar esse sistema. Esse conjunto, complexo, de regras de uso determina o que faz sentido dizer - ou o que pode ser dito - num determinado contexto. Tal conjunto, para Wittgenstein, consiste na gramática que, evidentemente, adquire para o filósofo um significado mais amplo do que o usual precisamente porque sinaliza as regras constitutivas de uso das palavras quando condicionadas por determinadas formas de vida, que abrigam/produzem as condições de sentido da própria linguagem.

    Tais regras orientam os usos possíveis da linguagem sem determiná-los, contudo, aprioristicamente. Conhecer a gramática, nesse sentido, ensina como manejar os códigos da linguagem sem, entretanto, determinar univocamente uma maneira única de uso das palavras, por exemplo. Sob essa perspectiva, a metáfora dos "jogos de linguagem", termos utilizados por Wittgenstein, se torna bastante importante. Assim como, ao jogar um jogo como o xadrez, conhecer as regras não determina um único movimento possível, possibilitando inúmeros lances, as regras da linguagem indicam também um campo do que faz e do que não faz sentido dizer. Em ambos os casos, portanto, a gramática orienta as possibilidades, com determinada vagueza que permite a mobilidade na partida de xadrez e na comunicação.

    Não se deve, entretanto, considerar que a gramática seja um dado, algo a priori, uma entidade metafísica que orienta nossos usos da linguagem, tampouco seria um produto de processos empíricos. Deve-se considerar, ao invés disso, que "a descrição gramatical não toca o solo mundano dos jogos de linguagem ainda que o tenha como pressuposto necessário, uma vez que a gramática é produto de nosso pensamento ao agirmos sobre o mundo: esta não é um dado, mas uma construção" [9, p. 16]. Logo, como produto de nosso pensamento ao agir sobre o mundo, as proposições da gramática são arbitrárias e convencionais: interagem, em certa medida, com o mundo empírico, mas poderiam ser diferentes desde que considerássemos jogos de linguagens diferentes.

    Os jogos de linguagem, por sua vez, são "a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada" [8, §7]. Utilizar a expressão "jogos de linguagem" opera, ademais, no sentido de "salientar que falar uma língua é parte de uma atividade ou de uma forma de vida" [8, §23] e, daí, a importância de compreender que a gramática é convencional.

    Em suas Investigações filosóficas, Wittgenstein se dedica, portanto, a explorar e desfazer as confusões epistemológicas e filosóficas causadas, sobretudo, pela concepção referencial da linguagem, que desconsidera essa multiplicidade dos usos das palavras, valendo-se destes e de outros conceitos relevantes em sua obra. Assim, para esclarecer confusões advindas de uma concepção referencial da linguagem, o filósofo imagina jogos de linguagem regidos por gramáticas e condicionados por formas de vidas distintas para evidenciar também o caráter convencional das regras de usos que adotamos.

    Atentar para esse caráter convencional também das proposições gramaticais é de suma importância para compreender, particularmente, a natureza do conhecimento matemático sob uma perspectiva wittgensteiniana. Isto porque parece comum, como destaca Gottschalk, que se procure "uma realidade matemática extralinguística para dar sentido às suas proposições" [10, p. 309]. Ao entender as proposições da matemática como proposições gramaticais, somos chamados ao entendimento subjacente de seu caráter convencional, que não depende de uma "realidade matemática independente, que seria condição para o 'fazer matemático' e uma posterior reflexão sobre a natureza da atividade matemática". Para a educadora, deve-se, ao invés disso, "atentar para os diferentes usos de suas proposições: ora empírico, ora normativo". Em síntese, "uma mesma proposição matemática, como '2 + 2 = 4', pode ser empregada com uma função descritiva ou normativa, dependendo do contexto em que se aplica".

    Segundo a autora, portanto, Wittgenstein não se refere ao processo de negociação dos significados dos entes matemáticos, quando relaciona ensino e significado. O filósofo, ao invés disso, ressalta o caráter normativo das proposições gramaticais, dentre as quais destacamos as proposições matemáticas, que se tornam, por isso, condições de sentido para as demais proposições. Trata-se de uma maneira de organizar a realidade, o empírico, e não um conhecimento que tenha sido extraído dessa mesma realidade - como veremos adiante. Considera-se, enfim, bastante relevante a afirmação de Gottschalk de que, sob uma perspectiva wittgensteiniana, "as proposições matemáticas institucionalizadas é que dão sentido à atividade matemática, e não que sejam geradas por ela, através de processos empíricos" [10, p. 313]. Em outros termos, "são certezas convencionais pertencentes a uma determinada comunidade".

     

    E COMO ENFRENTAR JOGOS DE SOMBRAS, ECOS E REFRAÇÕES?

    O filósofo Mário Sérgio Cortella, em sua tese de doutoramento, também se aproximou desse entendimento ao afirmar que: "mesmo os conhecimentos que pareceriam mais estáveis e exatos precisam de uma relativização que os remeta às condições de produção da qual se cercaram, ou à sua configuração" [11, p. 92]. "A matemática", afirma, "provoca uma admiração imensa, e até espanto, naqueles que tem a exatidão com validade universal como um critério para a verdade absoluta" - afirmação com a qual concordamos, embora concordemos ainda mais com o acréscimo feito em seguida: "não podemos esquecer, entretanto, que essa ciência é a mais humana de todas, pois resulta da pura abstração e da criação livre de nossas mentes".

    Sob essa perspectiva, Cortella nos recorda de que não existe correspondência única e natural entre os objetos matemáticos e os objetos da natureza, da "mundidade". Existem, ao invés disso, correspondências construídas histórica e socialmente: "a correspondência entre a materialidade e os objetos matemáticos é uma construção nossa". Assim, evidenciando ainda mais o caráter arbitrário e convencional do conhecimento matemático: "o conhecimento é fruto da convenção, isto é, de acordos circunstanciais que não necessariamente representam a única possibilidade de interpretação da realidade".

    Compreender a natureza convencional - e, portanto, cultural - do conhecimento matemático nos permite elucidar o fato de que o bom matemático somente representa bem a realidade matematicamente, porque a matemática foi construída de maneira a corresponder com tais representações e não porque existam aspectos da realidade que se revelem apenas aos "deuses e gênios" - como se referia Freire [12] àqueles a quem era permitido conhecer o mundo matematicamente. Desconstrói-se, assim, qualquer possibilidade desses jogos de ecos, sombras e refrações que tanto caracterizam as ações de Moriarty.

    Para evitá-los, assim como a vilania em matemática, torna-se necessário, enfim, evidenciar seu caráter de constructo humano, convencional, histórico, contextualizado socialmente, cuja ausência em seu ensino faz com que seus conhecimentos sejam percebidos como jogos de ecos, sombras e refrações para aqueles que são vitimados pelo medo. Poderemos, dessa forma, não somente reverter os cenários com que iniciamos este texto, mas também – e principalmente – bradar, como faz Holmes: "após mil desvios e artimanhas, cheguei à figura do ex-professor Moriarty, celebridade matemática" [6, p. 19].

    Moriarty e nenhum outro vilão frio e calculista pode premeditar aspectos da realidade ou, ainda menos, controlá-la de acordo com sua vontade, meramente por conhecer bem matemática. Afinal, essa faculdade contradiria a própria natureza do conhecimento matemático. A realidade não se revela de maneira diferente, singular, aos matemáticos e nem eles têm sobre ela qualquer poder sobrenatural de interpretação, especialmente porque a matemática tem sido, historicamente, a linguagem construída convencionalmente por mulheres e homens que se dedicaram aos seus estudos. Compreender sua natureza nos permite enfrentar tais jogos de ecos, sombras e refrações. Os caminhos são muitos e tantos deles podem incluir justamente retirar a matemática da obscuridade e do brilhantismo que parecem qualificar os deuses e gênios que dela pretendem se aproximar. É preciso, reiterando palavras ditas anteriormente, devolver a humanidade à matemática – "a mais humana das ciências".

     

    NOTAS, REFERÊNCIAS E BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

    1. Acesso em: https://g1.globo.com/sp/ribeirao-preto-franca/noticia/ estudantes-em-ribeirao-preto-dizem-que-matematica-foi-vila-na-1-fase-da-fuvest-2018.ghtml

    2. Acesso em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2015/05/06/interna_cidadesdf,482072/medo-de-matematicatem- origem-cultural-e-traz-consequencias-negativas.shtml

    3. Acesso em: https://www.recantodasletras.com.br/artigos-de-educacao/2868610

    4. Acesso em: https://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/administracao/quando-matematica-se-torna-uma-vila.htm

    5. Acesso em: https://www.revistaencontro.com.br/canal/atualidades/2015/09/matematica-e-a-grande-vila-da-alfabetizacao.html

    6. Doyle, A . C. O livro de Moriarty. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

    7. Guillen, M. Pontes para o infinito: o lado humano das matemáticas. Lisboa: E ditora Gradiva, 2013.

    8. Wittgenstein, L. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

    9. Moreno, A. R. Wittgenstein: através das imagens. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

    10. Gottschalk, C. M. C. "A natureza do conhecimento matemático sob a perspectiva de Wittgenstein: algumas implicações educacionais". Caderno de História e Filosofia da Ciência,14 (2), 305-334, 2004.

    11. Cortella, M. S. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. São Paulo: Cortez Editora, 2008.

    12. Freire, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

    13. Russell, B. Misticismo e lógica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.