SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.55 número2 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

    Links relacionados

    • Em processo de indexaçãoCitado por Google
    • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

    Compartilhar


    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.55 n.2 São Paulo abr./jun. 2003

     

     

    A NUDEZ DE TELMA

     

    EUSTÁQUIO GOMES

     

     

    Que espécie de bicho é uma mulher nua? Como é, de fato e à vera, uma fêmea sem plumas? De repente aquilo passou a ser uma questão crucial para nós. Havia um grave déficit em nosso conhecimento do mundo. As informações eram desencontradas, as descrições, suspeitas. Doca tinha visto uma prima lavar-se no córrego, mas era incapaz de dar detalhes. A mãe de Lúcio despira a blusa bem na sua frente, sem que fosse visto, mas aquilo era pouco, e na opinião de Pedro, abominável. "Mãe não vale", argumentou. "Nem irmã", disse Lucas, que tinha várias. Uma delas, Telma, tinha-se deixado bolinar atrás da capela. Mas nudez mesmo, só o fulgor de suas coxas alvas.

    Não sei como urdiu-se em mim a idéia do espetáculo de nudez, se ao sopro da leitura de Alencar (que descoberta!) ou se durante a expedição ao bosquinho de pés-de-embira, onde abrimos uma clareira, e nela, o espaço para um lugar de maravilhas. "Para cantar e dançar", eu disse. Mas logo: "Não, para um espetáculo com índios". E em seguida, numa iluminação: "Vamos encenar Iracema".

    Foi agradável descobrir que, aberta a clareira, o bosquinho fez curvar amorosamente suas copas e seus liames sobre a terra fofa, dando à sombra um aconchego de alcova. De uma forquilha a outra estendemos caules flexíveis e sobre eles, ao longo e ao largo, folhas de buriti. Ao rés do chão, tábuas sobre pedras chatas trazidas da beira do riacho: o auditório. No entretempo, minhas mãos sujas de seiva tinham preparado uma espécie de texto, uns quantos diálogos e uma dança indígena sacrílega e sensual. Durante os ensaios, eu passeava autoritário a minha borduna de peroba, um feixe de penas em torno da cintura, um cocar na cabeça. No dia da estréia soubemos que o segredo, o pacto de silêncio que havíamos selado tinha-se rompido em algum ponto. No povoado já se comentava a coisa com ar de mistério. Isto explica por que o público tomou todos os lugares e desbordou para as galerias. Dois lampiões iluminavam a cena. Mal o espetáculo principiou, ganhou impulso com o diálogo entre os guerreiros. "Tupã deu à grande nação tabajara toda esta terra", disse o guerreiro-chefe. "O gavião paira nos ares", respondeu o jovem guerreiro. "Iracema!", bradou o guerreiro-chefe. Aplausos. Deu-se então o inaudito, o mágico, o miraculoso. Iracema, a virgem dos lábios de mel, irrompeu no palco. Telma em carne e osso. Nada de plumas, penas, tanga. Nada. Inteiramente nua. As pernas longas, lisas, terminavam no triângulo escuro, selvagem, púbere. O umbigo era uma flor dilacerada contrastando com os seios pequenos. Mas o conjunto, no todo, era harmonioso. A platéia veio abaixo. Os guerreiros congelaram-se no centro do palco. Gritos, assobios, até palavrões ouvi. E viu-se quando, de um salto, Lucas avançou para o proscênio e baixou o pano, que era um lençol corrido de uma ponta a outra. E depois, pelos fundos, matagal adentro, arrastou Telma para casa, onde ele e o pai, segundo se soube, a cobriram de pancadas.

     

    Eustáquio Gomes é autor, entre outras, das novelas A febre amorosa (1984), Jonas Blau (1986) e O mapa da Austrália (1998). O presente texto faz parte do livro inédito Paisagem com neblina.