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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.55 no.3 São Paulo July/Sept. 2003

     

     

    Lançamento

    A ANATOMIA, SEGUNDO VESALIUS

     

    Evidências indicam que Leonardo da Vinci (1452-1519), o multifacetado gênio renascentista, começou a fazer investigações anatômicas simplesmente para aperfeiçoar sua representação pictórica do corpo humano. Afinal, a estética vigente ditava que o belo, na arte, se encontrava na representação direta dos fenômenos naturais. Planejou publicar um tratado de anatomia em colaboração com o anatomista Marcantonio della Torre (1481-1512). Do livro que não foi concluído e certamente teria inaugurado uma nova era nos estudos de anatomia e fisiologia, só se conhecem os esboços.

    Essa "grande obra" teria de esperar por outra geração de entusiastas do "novo humanismo". Coube a Andreas Vesalius (~1514-1564), de Bruxelas, possivelmente tão habilidoso no manejo do bisturi quanto na promoção de sua própria imagem, publicá-la. De Humanis Corporis Fabrica foi a primeira obra de anatomia em que a ilustração rivalizou com o texto em cuidado, importância, imponência. Observando a riqueza de detalhes que compõe suas gravuras, dificilmente se imagina que as chapas das quais se originam tenham sido talhadas em madeira (box).

    A Ateliê Editorial, a Editora da Unicamp e a Imprensa Oficial SP reuniram esforços para lançar no Brasil o livro que traz, além da obra-prima do autor, mais duas belas amostras de seu trabalho: a Epitome e as Tabulae Sex. Os autores J.B. De C.M. Saunders, da Universidade da Califórnia, e Charles D. O'Malley, da Universidade Stanford, traduziram e anotaram a obra a partir do original em latim. Além disso, realizaram uma pesquisa cuidadosa sobre a vida do médico, cirurgião e anatomista e contextualizaram seus trabalhos dentro da tradição médica da Renascença e da ilustração anatômica. Pedro Carlos Piantino Lemos e Maria Cristina Vilhena Carnevale, da Universidade de São Paulo, traduziram-na do inglês.

    Trata-se realmente de uma obra-prima, na qual o autor deixou suas contribuições ao estudo e ao ensino da anatomia. Nessa época, primeira metade do século XIX, a disciplina era ensinada sobretudo por meio da leitura de textos. E a maioria dos textos anatômicos disponíveis eram derivados de escritos árabes tradicionais do período medieval: "obras de médicos muçulmanos e de seus comentaristas, ou de traduções dos autores clássicos, alterados inevitavelmente pela passagem do grego para o aramaico, do aramaico para o árabe e deste para o pouco conhecido latim."

    O conhecimento erigido no passado era considerado superior, fazendo os estudiosos se debruçarem quase que exclusivamente sobre a palavra escrita. No entanto, partes importantes da obra de Galeno, a principal autoridade seguida pelos anatomistas, permanecia desconhecida para a maioria deles. Vesalius, autoproclamando-se um "restaurador", aceitava as concepções galênicas, a cujo sistema anátomo-fisiológico nunca se opôs completamente: "ao contrário, tentou conciliar ou retificar as descrições anatômicas de Galeno onde quer que diferissem daquilo que se observava nas dissecções."

    A leitura de Galeno levou-o a redescobrir a importância que o "mestre" atribuía à prática da dissecção na formação de anatomistas e médicos. E também as limitações de sua obra, das quais o próprio Galeno, que dissecou mais freqüentemente animais do que cadáveres humanos, era consciente.

    Como o livro, originalmente publicado em 1543, a edição comentada traduzida para o português transcende as costumeiras limitações de publicações de conteúdo técnico.

    As Tabulae Sex, um conjunto de seis desenhos, constituíram a primeira publicação anatômica de Vesalius, em 1538, e tiveram sucesso instantâneo. Três saíram do punho de Vesalius, três do artista flamengo Jan Stefan van Kalkar. Buscam orientar a sangria (venissecção), para a qual o método proposto por Hipócrates e Galeno diferia do proposto pelos árabes, e expressar os princípios fisiológicos de Galeno.

     

     

    Entre outras contribuições à posteridade, Vesalius, consciente da existência de diferenças raciais, procurou estabelecer um modelo para o formato do crânio, dando, segundo os comentadores, um "início tímido" à antropologia física. Uma das vertentes dessa ciência, a craniologia, no século XIX tentou forjar uma associação entre o quociente de inteligência e os crânios, colocando no topo o formato da raça branca.

    Já as gravuras que exibem os músculos foram de grande utilidade para pintores e escultores. Nas ilustrações do sistema circulatório, por sua vez, aparecem apenas as artérias principais, enquanto o sistema venoso é minuciosamente descrito por servir ao principal recurso terapêutico da época, a sangria. No que concerne às vísceras, alguns equívocos cometidos podem ser atribuídos ao fato de resultarem da dissecção de animais, não de humanos. O coração, que apresenta um "aspecto globoso" e a disposição dos ramos da aorta indicam que algumas ilustrações foram feitas a partir de símios.

    Vesalius também inovou ao realizar ele mesmo demonstrações de dissecção em cadáveres para ilustrar as lições dadas em aula. Notabilizou-se como cirurgião, o que certamente concorreu para que tenha se tornado o médico do imperador Carlos V, a quem dedicou o livro.

     

    Flávia Natércia