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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.57 n.3 São Paulo jul./set. 2005

     

     

    O Estado e o multiculturalismo
    Livio Sansone

     

     

    No Brasil, o debate sobre o multiculturalismo tem sido o palco de distância entre discurso e prática social. Precisamos contextualizar tal discurso, histórica e sociologicamente. Uma forma de fazer isso é analisar como este fenômeno surgiu enquanto ideal de sociedade em alguns países europeus, que há muito tempo estão tentando lidar com diferença étnica, racial e cultural a partir de um conjunto de medidas públicas. Nas considerações sobre o multiculturalismo e o Brasil, é importante aproveitar tanto o debate como o olhar "de fora", sem reduzir a reflexão, comparando apenas Estados Unidos e Brasil. Interessa enfocar os países europeus que receberam uma forte imigração, sobretudo a partir do segundo pós-guerra, as assim chamadas sociedades multiculturais, nas quais existe uma relação orgânica entre discursos, leis e práticas multiculturais. Refiro-me concretamente a Alemanha, França, Bélgica, Holanda e Inglaterra. Nesses países, na base do multiculturalismo encontram-se três fontes clássicas.

    PACTO SOCIAL Em primeiro lugar, há o pacto social – o compromisso do Estado e parte das elites de cuidar dos excluídos e dos pobres. Nesse sentido, se pensa os pobres – as categorias de excluídos – como passíveis de medidas legislativas particulares, como redistribuição de renda, mas num processo de incorporação seletiva de uma parte dos pobres. Nem todos os pobres podem e devem ser ajudados, somente aqueles que se submetem às regras do convívio estabelecidas pelo pacto social. Na Holanda, o primeiro seguro-desemprego foi instituído em 1522 e logo foi preciso definir quem era digno de recebê-lo. Para isso, instituíram-se direitos especiais, mesmo dentro do contexto da legislação universalista. O objetivo substancial era – e ainda é – prevenir ou, pelo menos, administrar o conflito.

    PASSADO COLONIAL A segunda fonte importante é o passado colonial. Nesse sentido, pode-se falar de diferentes estilos de colonialismo: a) o sistema britânico do indirect rule, ou governo indireto; b) o sistema das sociedades plurais como, por exemplo, a do Império holandês, que se baseia na existência de um direito étnico. Assim, no Suriname, até os anos 1930, o direito civil e, em alguns casos, o penal variavam segundo o grupo étnico. Um sistema não muito diferente valia na África do Sul sob o regime do apartheid – não por acaso, uma palavra holandesa; e c) no extremo oposto, existia a versão do colonialismo do Império francês, que era baseada na noção de francité, de universalismo na "boca do fuzil" e na atratividade de uma ocidentalização possível, embora a altos custos (ou duras penas), para uma parcela da população "nativa". Práticas e teorias divergiam em muitos casos e todo colonialismo, pelo menos na África, em algum momento lançou mão de ambos os tipos de domínio, o direto e o indireto.

    Todos esses estilos de colonialismo previam a institucionalização de algum tipo de etnicidade dos direitos e deveres, embora muitas vezes associados a um discurso de igualdade e de respeito à diferença. De qualquer forma, os três estilos levaram a hábitos étnicos e culturais, e a consensos que se mostraram tenazes e capazes de influenciar bastante a época pós-colonial. Nos últimos anos, porém, esses sistemas estão sendo colocados em discussão pelo contexto de internacionalização que altera a relação entre colônia e metrópole a partir das grandes migrações e da globalização das culturas. Nas últimas duas ou três décadas, é a colônia que vem à metrópole e, ao mesmo tempo, a metrópole permanece na colônia, até se enraizando nela mais ainda. Nunca se falou tanto o holandês no Suriname e o francês no Mali como hoje em dia.

    REGIONALISMO A terceira fonte clássica é a tradição que diz respeito às formas de se lidar com as diferenças étnicas e regionais internas desses países europeus. Trata-se do assim dito "regionalismo" de alguns países que se afirmam como Estados-nação na Europa a partir de um compromisso com as diferenças culturais regionalizadas, redistribuindo recursos e poder político para minorias e "colônias" internas. Refiro-me aos catalães, bascos, bretões, galeses, sardos, corsos etc.

    É evidente que nem todo país da Europa é atingido da mesma forma por esses três fenômenos: pacto social, passado colonial e regionalismo. Um determinado país pode dar prova de generosidade e tolerância com relação ao pacto social, mas não ao regionalismo. E vice-versa.

    O Conselho da Europa, num esforço de pragmatismo e postura ecumênica, optou por dividir, de outra forma, os países europeus com relação à multiculturalidade, salientando o fator variedade. Por um lado, haveria os países nos quais a nacionalidade é vista como o começo da integração, como a França e, por outro lado, países, como a Alemanha, onde a nacionalidade é vista como o resultado final do processo de integração. Na Alemanha, Suíça e França, a ênfase seria na cidadania, enquanto na Holanda, Suécia, Noruega e Dinamarca, no pluralismo cultural. A Inglaterra é um caso a parte, pois a ênfase não é no pluralismo cultural, mas na luta contra o racismo. Nesse sentido, a Inglaterra é o único país europeu onde as agências governamentais falam de relações raciais, em lugar de relações interétnicas.

    De qualquer forma, em todos esses países, a diversidade étnica, resultado da imigração, apresentou-se como um choque porque colocou em discussão o pacto social. Nesse sentido, a imigração de massa tem tido um efeito quase revolucionário sobre a realidade social dos países em questão.

    Depois da Segunda Guerra Mundial, nos países analisados, a Inglaterra foi a que primeiro recebeu uma imigração maciça, já a partir dos anos 1940 e 1950. Nesse país, já no final dos anos 1960 chega à idade adulta a "segunda geração" de descendentes de imigrantes do pós-guerra – os filhos dos trabalhadores contratados no Caribe anglófono. Na Holanda, somente em 1978 o governo reconhece, pela primeira vez, que o país é de imigração. Na França, isso se dá nos anos 1980, com Mitterand. E, no final dos anos 1990, na Alemanha, finalmente, a legislação é alterada para permitir a dupla nacionalidade.

    O PAPEL DA ESCOLA PÚBLICA Além de se tratar de países com culturas distintas, é preciso acrescentar que, hoje, as políticas que dizem respeito à diferença etnocultural mostram, em cada país, com relação ao passado e às três fontes clássicas mencionadas antes, tanto continuidade como descontinuidade. Um forte elemento de continuidade depende do "enraizamento" do multiculturalismo na história do estado social e do ensino obrigatório. Se o serviço público é o âmbito em que se experimentam medidas em prol de minorias, como quotas, programas de treinamento e planos de carreira, a escola pública é o palco principal do discurso pró-diversidade do multiculturalismo. Sobretudo na Holanda, na Alemanha e na Inglaterra, os respectivos ministérios da educação investiram muito dinheiro e recursos na implementação de medidas multiculturalistas, implementando políticas afins nas escolas e estimulando os professores a formarem uma visão de mundo um pouco mais tolerante e cosmopolita do que antes (embora com princípios discutíveis, nos quais as culturas de maioria e minoria coexistem em estilo mosaico ou patchwork). Na maior parte dos casos, trata-se de um esforço feito com grande seriedade. Nesses cinco países – Holanda, França, Alemanha, Inglaterra e Bélgica – o Estado gerencia as medidas e articula os discursos acerca do multiculturalismo. De fato, este surge como vontade e resposta do Estado, muitas vezes até contra os interesses da iniciativa privada. Hoje, a efetivação do multiculturalismo está, muitas vezes, colocada em discussão pela própria crise da máquina estatal, característica desta época nos cinco países mencionados. Embora, neles, o Estado continue muito presente nas políticas sociais e não pareça estar transformando-se em uma máquina punitiva com relação à pobreza – ao contrário do que parece acontecer nos Estados Unidos – seu poder de intervenção é severamente afetado pelos cortes dos gastos públicos e a privatização de serviços.

    Os efeitos das medidas e práticas multiculturalistas, ademais, são diferenciados. Podem ser um, com relação aos trabalhadores imigrados, outro, com relação às minorias originárias das ex-colônias – que, na maioria dos casos, estão mais familiarizadas com a língua, a religião e a cultura da metrópole – e ainda um terceiro, no caso das minorias regionais. Assim, um país pode ser generosamente multicultural com uma minoria e pouco tolerante com uma outra.

    Finalizando, hoje a integração dos "estrangeiros" nesses países se dá em um contexto mais fluido com relação ao passado, definido por cidades e regiões mais do que por Estados, e caracterizado tanto pela hetero quanto pela homogeneização cultural.

     

    Livio Sansone é coordenador de pós-graduação em estudos étnicos e africanos do Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (UFBA)