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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.59 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2007

     

     

    A CRIAÇÃO LITERÁRIA NA BIBLIOTECA DO ESCRITOR

    Telê Ancona Lopez

     

    As bibliotecas de escritores têm se mostrado de capital interesse para a compreensão dos caminhos tomados por poetas, ficcionistas, críticos ou jornalistas. Como somatório de títulos, contribuem para a história da leitura; como espaço da criação, ligam-se implícita ou explicitamente à gênese de obras, ao nos propor matrizes e, na marginália, materializar instantes da escritura. Conservadas ou não no seio de acervos completos, isto é, conjugadas a arquivos, coleções – de quadros, discos, filmes ou de objetos diversos –, essas bibliotecas, quando mantêm cadernos de registro ao longo da chegada de livros e periódicos, ou selos, carimbos de livrarias e faturas de compra, historiam fases da própria formação. Quando nos apresentam etiquetas ou fichas que designam recintos nas casas, estantes e prateleiras, facultam-nos a disposição dos volumes no espaço original e, nas dedicatórias, que em geral carregam, oferecem-nos elementos relevantes da biografia daqueles a quem estas se endereçaram, bem como informações sobre a vida literária, o campo cultural da época a que pertencem. Cartas, crônicas, diários e depoimentos desses leitores diferenciados beneficiam sobremodo o estudo de todos os aspectos aludidos.

    O termo marginália, emprestado do latim, designa o conjunto das notas que os leitores introduzem nas margens e entrelinhas das páginas, no verso das capas ou nas folhas de guarda dos livros ou em periódicos sobre os quais se inclinam, anotações as quais, muitas vezes, se prolongam em folhas manuscritas, recortes de jornais ou revistas, postos no interior dos volumes. Na marginália apensa, como a denomino. A marginália define-se como a justaposição do autógrafo espontâneo, a tinta ou grafite, às linhas impressas, configurando um diálogo que ali toma corpo.

    Na verdade, o aparecimento de notas autógrafas dignifica as estantes de todo e qualquer leitor. Mas, quando se trata de bibliotecas de escritores e de intelectuais de todos os naipes, a marginália converte essas estantes em privilegiado objeto de cogitações da crítica genética, sobretudo quando não perduram conjuntos de fólios que documentam, com autonomia, o processo criativo. Na marginália e em certas leituras não assinaladas, ficam, pois, manuscritos recônditos, à espera de uma decodificação escorada na análise de textos inteiros, de fragmentos e de sinais sobrepostos ao livro, ou nutrida por citações fora desse contexto, anunciando a indelével captação por parte do leitor, a ser flagrada pelo crítico. Essa captação pode espelhar uma latência, no insconsciente, memória de uma experiência de leitura, a qual, mesmo passado muito tempo, de repente aflora por força de associações que retomam, de modo claro ou não, o diálogo antigo, para servir a novos propósitos no decorrer do processo criativo de novas obras. Desse diálogo restam vestígios: as notas marginais que valem como notas prévias e os textos de outros autores que escondem matrizes.

    Na esfera da literatura, a marginália aproxima, na intertextualidade, a matéria impressa e a matéria manuscrita, o tempo da leitura e o da escritura; a absorção e a crítica ou a apropriação criativa. Então, as notas marginais que selecionam trechos e palavras, ao recolher, no texto alheio, idéias, concepções, achados de estilo, informações, personagens etc concretizam, nas obras freqüentadas, um celeiro da criação. As anotações que acrescentam o comentário ou que irrompem como textos paralelos, a lápis ou a caneta, sobre folhas dos livros e sobre fólios anexados a eles, sobre páginas de periódicos, fazem a seara em estantes assim, pois configuraram novos manuscritos em normalmente curtos, autônomos ou parcelas de outros, nos arquivos da criação. Nessa seara, posturas ou posições coincidentes, afinidades e divergências também afloram.

    Nas influências reconhecidas, nas leituras declaradas, na presença de determinadas obras na biblioteca de um escritor, nas notas autógrafas à margem de leituras ou em folhas apensas e em todas as formas e feições do trabalho nesse espaço, insinuam-se matrizes, instaurando o diálogo que traz a intertextualidade da criação. As matrizes são principais quando se ligam ao modo de formar; quando textos ou elementos de um texto – temas, motivos, seqüências, cenas, personagens, estilo, tratamento do tempo e do espaço etc – enraízam a (re)criação que se afirma com originalidade e autonomia ao integrar outro contexto. Desse ponto de vista, as matrizes, consolidadas ou não pela marginália de um escritor, descobertas no circuito de um diálogo intertextual, interessam também à literatura comparada. Matrizes e marginália nos conduzem, por força da intertextualidade e da dimensão documentária, à tentativa de reconstituir, no diálogo, certas instâncias do ato criador enquanto conjunção de leitura e escritura, convergência na esfera intelectual; enquanto sutil passagem da recepção à criação ou alcance maior da recepção que, segundo Daniel Ferrer, se transforma em produção e se extrema na bricolagem. Diálogo, enquanto leitura anotada, implica movimento na pesquisa do artista que se desenrola em consonância com suas obsessões, reconhecíveis na obra; subentende crítica, seleção e assimilação. A marginália é, pois, seara e celeiro convivendo paralelos ou fundidos nos arquivos da criação. Ao perseguir a gênese de textos e interpretar as pegadas da criação, o crítico deve saber que lida com a realidade visível de um trabalho em processo, com sinais retratando certos movimentos do desejo do artista. Entenderá então que, nesse processo, as marcas do scriptor lhe facultam imaginar uma lógica onde a leitura do artista, os passos de sua impregnação, se desnudam. A marginália, exposta como memória da criação, com todos os percalços da não linearidade da memória, conforma graficamente, na conjunção e sobreposição de dois textos, o que hoje denominamos hipertexto. E, em tempos de RPG, ganham força especial as leituras como berço da criação.

    As notas marginais autógrafas fazem parte do universo da criação de outros textos e, na medida em que se enquadram no percurso de uma nova escritura, duplicam a natureza documental do objeto livro (ou jornal/revista); ao texto impresso existente em uma biblioteca soma-se, então, o manuscrito. A combinação do texto impresso com o manuscrito renova o sentido do livro; duplica-lhe a significação. A transformar ou selecionar, nas margens, a matéria do autor, ao tecer comentários em uma leitura crítica lateral, e na invenção contígua, o escritor promove uma coexistência de discursos. Na verdade, ao receber o texto impresso como criação de outro, contracena com um segundo escritor. Esse diálogo exibe o texto nascente que se defronta com uma criação acabada, o livro alheio oferecido ao público (em uma edição que não barra imposições de outros eus, na composição e na revisão, durante o processo de produção industrial). No diálogo, o escritor/leitor supera o passado: a obra e o autor sobre o quais se debruça habitam seu presente, no encontro que ali se cristaliza a cada incursão do lápis ou da caneta. O diálogo anula uma hierarquia tácita ao refutar o domínio do que parecia terminado, ao desdenhar os limites do espaço do outro e ao fazer com que o alheio se transmute em matéria adstrita a um novo dossiê de criação, isto é, em manuscrito; o outro se torna paradoxalmente determinante e subsidiário. Entendendo, com Octavio Paz, que a criação vale sempre como elevada expressão da liberdade do homem, nessa situação específica, o homem renega a distância e o silêncio perante o objeto livro. Ou melhor, o leitor/escritor materializa, ao anotar, o diálogo inerente a toda e qualquer leitura, no domínio da palavra escrita. Entende-se que, na esfera da criação, não existem tabus e que é riqueza lícita zarpar na bricolagem, na glosa; fazer citações, colagens, paródias, centões. O artista da palavra responde, interpela, redimensiona, transcria na página graficamente dialogizada, hipertexto. Suas notas marginais, vistas como notas de trabalho, postas em contato com a obra publicada do artista, reabrem o confronto com o texto inacabado subjacente e com as edições. Compreendidas na sobreposição ao texto impresso, enriquecem edições genéticas e críticas. A marginália do escritor, portanto, converte a biblioteca dele em seara e celeiro onde a criação se supre e viceja, dona de sua própria dinâmica.

    Por que o grafite, a tinta interrompendo a leitura? Leitura mais detida e cuidadosa, em que a presença do sujeito não se cala, não se esgueira? Vivência plena, pleníssima do presente, no ato de ler; desejo/esperança de regresso às mesmas páginas, sabe-se lá quando? Prazer de se observar num espaço público que é também seu, concretamente? Muitas possibilidades compõem as feições da marginália.

    MÁRIO ANDRADE, LEITOR E ESCRITOR Este artigo, que toma a biblioteca de Mário de Andrade (1893-1945) como locus creationis, seara e celeiro, pretende expor instâncias da criação de Paulicéia desvairada, em 1921-1922, recorrendo à leitura não anotada e a anotações marginais com estatuto de manuscrito. O projeto temático, sob minha coordenação, destina-se a investigar a criação andradiana nos manuscritos e na correspondência, assim como na marginália e na composição da biblioteca que Mário nos legou. Desenvolvido no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) a partir de 2003, o projeto – cuja equipe leva o nome do escritor – representa a evolução de idéias que nortearam trabalhos meus e de estudantes por mim orientados, desde 1974, as quais, de 1988 em diante, abriram-se à crítica genética. Nos últimos anos tem discutido com pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em Crítica Genética da Universidade de São Paulo (NAPCG-USP) e do Institut des Textes et Manuscrits Modernes de Centre National de la Recherche Scientifique (ITEM-CNRS) de Paris.

    A biblioteca de Mário de Andrade, em termos das áreas e títulos, assim como da marginália que a enriquece, começou a ser compreendida em um projeto de pesquisa pioneiro, coordenado pelo prof. dr. Antonio Candido de Mello e Souza, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), entre 1963-1968. O projeto teve como resultado o registro da marginália e as dissertações de mestrado das três pesquisadoras participantes, bolsistas da Fapesp – Maria Helena Grenbecki, Nites T. Feres e eu. Nossos mestrados, na área de teoria literária e literatura comparada da FFLCH-USP, convalidam uma primeira exploração direta da biblioteca, cotejando leituras com a criação de Mário modernista. Após a transferência do acervo do escritor para o Instituto de Estudos Brasileiros da mesma universidade (IEB-USP), no segundo semestre de 1968, o processamento da biblioteca de acordo com as normas vigentes apurou um total de 17.624 volumes, entre livros e periódicos.

    Meu intento, nestas linhas de hoje, é demonstrar que a apropriação, derivada da leitura de Verhaeren sem anotações manuscritas, e firmada nas margens da poesia do expressionismo alemão, alarga os horizontes do modernismo brasileiro nascente e sustém Paulicéia desvairada, em 1922, como o primeiro texto e livro moderno, capaz de se lançar com lúcido humanismo no tema da cidade, tema principal na literatura do final do século XIX e início do XX. Essas leituras afastaram o poeta, por certo, do tentador esquematismo futurista que comprometeu a produção de outros poetas nossos, no começo do decênio de 1920, quando se trata da exploração desse tema-chave da modernidade. Dou prosseguimento, aqui, a dois estudos meus: "Arlequim e modernidade", de 1995 (Lopez, Telê Ancona. In Mariodeandradiando. São Paulo: Hucitec, pp. 17-35) e "A biblioteca de Mário de Andrade: seara e celeiro da criação", de 2002, na coletânea de Roberto Zular, Criação em processo - ensaios de crítica genética (São Paulo: Fapesp/ Iluminuras/ Capes, pp. 45-72).

    A RECÔNDITA ESCRITURA É curioso pensar que o mesmo Mário de Andrade guardião pontual da memória, custódio severo de um sem-número de documentos em seu acervo ou o criador do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tenha apagado os rastros mais evidentes da criação de praticamente tudo que antecede as primeiras edições de livros seus – notas de trabalho, esquemas, versões etc –; descartado manuscritos e se esquecido dos originais entregues a gráficas e editoras. Essa, porém, é a realidade que seu arquivo estratifica, nunca por ele aventada em cartas ou depoimentos, realidade que frustra a expectativa de estudos genéticos amparados em conjuntos de fólios ou dossiês como os que ali se prendem a obras inacabadas ou interrompidas por diversas razões e, principalmente, pela morte que o colheu muito cedo, aos 51 anos. Todavia, manuscritos de muitos poemas e elos na escritura de muitas obras escondem-se em suas anotações em livros ou na leitura de autores, enquanto que alusões à criação remanescem na correspondência, em entrevistas e em outros textos publicados, principalmente nas crônicas.

    No caso de Paulicéia desvairada, sabe-se que o livro recebeu duas edições em vida, ambas em São Paulo: em 1922, no volumezinho ilustrado, impresso às expensas do autor, na Casa Mayença e, em 1941, na coletânea Poesias, tirada pela Livraria Martins Editora. Para Poesias convergiram, com raras alterações no texto, os títulos publicados a partir do ano do estouro modernista até 1930, e os novos conjuntos "A costela do Grã Cão" e "Livro azul". No arquivo de Mário de Andrade, não há autógrafos ou datiloscritos que preludiam Paulicéia, os outros livros do período 1922-1930 e os poemas coligidos em 1941. Não se acham planos, esquemas, notas de trabalho, rascunhos, versões, documentos de processo enfim, enquanto fólios ou dossiês autônomos. É preciso, portanto, escavar, na biblioteca, a memória desses textos, nos rumos da atualização estética procurada pelo modernista, no momento da criação. Vale dizer, remontar a obras dos mestres das vanguardas e à produção das próprias vanguardas do século XX.

    Entre as primeiras está Les villes tentaculaires precedées de Les campagnes hallucinées, 18ª edição da Mercure de France, Paris, 1920, do belga Émile Verhaeren (1855-1916), cristão de aspirações socialistas, consagrado como o primeiro poeta da vida moderna. Documento hoje isolado, mereceu, possivelmente, registro tangível no dossiê dos manuscritos de Paulicéia quando este se concretizava em fólios com notas, esboços ou versões, entre 1920 e 1921. Leitura talvez oriunda do curso de literatura universal da Faculdade de Filosofia do mosteiro de São Bento, associado à Universidade de Louvain, assistido como ouvinte pelo futuro modernista por volta de 1910, a contribuição de Verhaeren é por ele admitida, mais tarde, na correspondência enviada a Manoel Bandeira, Sérgio Milliet, Anita Malfatti e Ribeiro Couto. Mas, ao contrário do que se poderia supor, o exemplar de Les villes tentaculaires precedées de Les campagnes hallucinées não guarda anotações manuscritas. Apesar disso, a obra merece ser classificada como matriz geradora de Paulicéia desvairada no diálogo que, entre 1920 e 1922, une os anseios de modernidade de nosso poeta à visão da cidade moderna, esposada pelo simbolista belga – a urbe dominadora, áspera, sem euforia. Anseios de modernidade do tupi do alaúde que, nesse momento, realiza seu crivo crítico, antropofagia avant la lettre, associando conquistas formais tanto dos simbolistas como dos futuristas, à temática humanista de Verhaeren e dos expressionistas, à irreverência dadá e a elementos do purismo da revista L’ Esprit Nouveau. Crivo que, em Paulicéia desvairada, desvia da modernolatria futurista o enfoque da cidade, mostrando-se moderno pela reflexão crítica voltada para o tema e para o próprio artefazer, se pensarmos com Henri Lefebvre a questão da modernidade.

    Matriz principal, as duas partes dessa obra de Verhaeren associam-se ao tema da cidade microcosmos andradiana. Duplicam os laços com o Baudelaire de "Les tableaux parisiens" (Les fleurs du mal), poesia da proximidade de Verhaeren e leitura antiga do poeta paulistano. Enraízam a criação/ apropriação que se afirma com originalidade e autonomia ao integrar outro contexto. Diálogo sem notas de margem, virtual, sugere a pesquisa e as afinidades de Mário, cristão que valoriza a caridade, com as idéias socialistas de Émile Verhaeren.

    A busca da presença de Verhaeren na gênese de Paulicéia desvairada, a partir de leituras sucessivas, em 1920, 1921, realizadas pelo poeta no seu exemplar da edição que reúne Les campagnes hallucinées e Les villes tentaculaires, não conta apenas com o rastro virtual do scriptor, o qual leva o crítico a distinguir determinados elementos em um processo criativo complexo, que se firmou ao longo de descobertas e transformações. Entre as crônicas de Mário em "De São Paulo", na revista carioca Illustração Brazileira entre novembro de 1920 e maio de 1921, série que coexiste com a redação e se apropria, na prosa, de certos versos de Paulicéia desvairada, o quinto texto (ano 8, nº 6), em fevereiro desse último ano, atesta a leitura de dois poetas cultores da cidade: "E se eu entremear a crônica com um ou dois versos de Verhaeren e de Coppée, e uma anedota, que se não existir inventa-se, tínhamos uma crônica, que algum Mário de Alencar, piedoso e amigo, poria em livro depois da minha morte". De François Coppée (1842-1906), poesia ainda parnasiana da vida parisiense, nada restou na biblioteca do poeta leitor, que não mais a mencionará, enquanto que Emile Verhaeren tem a função de matriz de Paulicéia desvairada – "livro de cabeceira" –, por ele distinguida na carta ao amigo Manuel Bandeira, em 16 de agosto de 1931 (Moraes, Marcos Antonio de, org. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: IEB/ Edusp, 2001, pp. 519). E confirmada publicamente, em 1942, na conferência "O movimento modernista" (In: Aspectos da Literatura Brasileira. 2ª ed. São Paulo; Martins, p. 233-34), depoimento e análise de propostas e conquistas, quando Mário de Andrade já é um nome já consagrado em nossa literatura. Assim procede quando evoca e encena o eclodir dos poemas como uma espécie de resposta à incompreensão da família diante da cabeça de Cristo de linhas contemporâneas, escultura de Brecheret, que ele brandira exultante, depois de comprar:

    "Eu passara esse ano de 1920 sem fazer poesia mais. Tinha cadernos e cadernos de coisas parnasianas e algumas timidamente simbolistas, mas tudo acabara por me desagradar. Na minha leitura desarvorada, já conhecia até alguns futuristas de última hora, mas só então descobrira Verhaeren. E fora o deslumbramento. Levado em principal pelas Villes tentaculaires, concebi imediatamente fazer um livro de poesias ‘modernas’, em verso-livre, sobre a minha cidade. Tentei, não veio nada que me interessasse. Tentei mais, e nada. Os meses passavam numa angústia, numa insuficiência feroz. Será que a poesia tinha se acabado em mim?… […]

    […]

    "Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. Jantei por dentro, num estado inimaginável de estraçalho. Depois subi para o meu quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo. Me lembro que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo [do Paiçandu]. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Eu estava aparentemente calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, Paulicéia desvairada. O estouro chegara afinal, depois de quase ano de angústias interrogativas. Entre desgostos, trabalhos urgentes, dívidas, brigas, em pouco mais de uma semana estava jogado no papel um canto bárbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte deu num livro".

     

     

    Neste seu historiar do modernismo, o conferencista se esqueceu da poesia pacifista de Verhaeren, a qual, assim como a de Heine do mesmo teor, havia iluminado seu livro de estréia, em 1917, Há uma gota de sangue em cada poema. Ele freqüentara Verhaeren em Poèmes (9ª ed., 3 v.; Paris: Mercure de France, 1913), quando seu lápis de leitor e artista depôs, naquelas páginas, sinais de sua captação de sinestesias, de imagens inusitadas e visões apocalíticas, sinais que relatam, ainda que de forma indelével, o surgimento de certos versos, conforme estudei em "Leituras e criação: fragmentos de um diálogo de Mário de Andrade", artigo programado para o próximo número de Manuscritica, revista da Associação de Pesquisadores de Crítica Genética.

    O INTERESSANTÍSSIMO DESVAIRISMO O desvairismo, vanguarda brasileira fundada em 1922, restringe-se ao "Prefácio interessantíssimo" e à poesia de Paulicéia desvairada. O primeiro, de título montado na blague dadaísta, articula uma teoria modernista devedora de muitas formulações colhidas em obras na biblioteca de Mário de Andrade e não está no foco do presente artigo. A segunda, enquanto proposta, abebera-se nos temas de Verhaeren e revitaliza determinadas soluções do estilo do mestre, como o uso do refrão, transitando também, com liberdade, por Les fleurs du mal, pelo expressionismo, futurismo, espritonovismo e dadá, ao mesmo tempo que busca o nacionalismo do romântico Gonçalves Dias e outras fontes que não cumpre agora discriminar. O modernista brasileiro, deixando ou não notas marginais em suas leituras, supera na síntese e no crivo crítico a chancela limitadora dos "ismos" que concorrem para a realização de seu texto. Ambiciona desvelar uma nova dimensão da cidade na era industrial, a dimensão de um mundo tecnizado cheio de duras contradições sociais e alheio à angústia da alma do homem. Nesse espaço e nessa hora, o eu lírico, guiado por funda consciência, incumbe-se da denúncia, profeta ou louco. Mescla o sarcasmo e a visão apocalíptica da cidade, vincados por Verhaeren, com esses mesmos traços repetidos nos expressionistas e com a irreverência dos dadaístas, no ataque comum à burguesia, ao capitalismo, mas, paralelamente, comunga o lirismo de Soffici e Luciano Folgore perante a cidade veloz do século XX. Não teme a solidão em suas posições; é Verhaeren, aliás, quem fornece ao poeta a epígrafe para o "Prefácio interessantíssimo", convalidando, juntamente com as antinomias, o papel do pioneiro, "primitivo de uma nova era": "Dans mon pays de fiel et d’or j’en suis la loi".

    No título Paulicéia desvairada, o livro composto de um "Prefácio interessantíssimo", 21 poemas e um oratório profano reveste-se de especial ironia, se for lembrada a incompreensão de Monteiro Lobato, em 1917, à exposição de Anita Malfatti, marco em nosso modernismo. O desvairismo, estética que sabe armar uma base teórica coerente, contesta, de certo modo, a pergunta "paranóia ou mistificação?", feita pelo crítico de O Estado de S. Paulo, para invalidar a legitimidade da arte moderna, no artigo "A propósito da exposição Malfatti" (São Paulo, 20 dez., 1917).

    O mais importante, contudo, no momento da criação da poesia do modernista brasileiro é o diálogo com Emile Verhaeren, Les villes tentaculaires precedées de Les campagnes hallucinées. Da primeira parte da obra, deriva o título Paulicéia desvairada, e a adoção da loucura, enquanto visão liberada, profética lucidez que contesta a ordem estabelecida na sociedade e define a postura do eu lírico, principalmente nos poemas "Religião" "O rebanho" e em duas das personagens do oratório profano "As enfibraturas do Ipiranga". Do conjunto das duas partes, como força motriz, advém a visão da cidade moderna tentacular, isso é, expandida e sufocante nas contradições que a conformam. Tanto o reverenciar da loucura, como a cidade agressiva juntam-se, no âmbito da leitura e da invenção de Mário, à poesia do expressionismo da coletânea organizada por Kurt Pintus, Menschheitsdämmerung: Symphonie Jüngster Dichtung (Berlim, Ernst Rewohlt, 1920), volume na biblioteca do escritor, crivado de anotações traçadas entre 1920 e 1921.

    Deste modo, no oratório profano "As enfibraturas do Ipiranga", as Juvenilidades Auriverdes, tenores, "loucos, sublimes", almejam a atualização para a arte e a vida em um compasso brasileiro, olhos postos na "integralização da vida no Universal!", bebida por certo também nas páginas de Romains e Whitman, ingrediente que não deve ser ignorado no amálgama que a poesia de Paulicéia configura. Proclamam: "Ventem nossos desvarios fervorosos!/ Fulgurem nossos desvarios dadivosos!/ Clangorem nossas palavras proféticas/ na grande profecia virginal! Somos as Juvenilidades Auriverdes!/ A passiflora! O espanto! A loucura! O desejo!/ Cravos ! mais cravos para a nossa cruz!" (versos 136-142). Enfrentam os passadistas e tombam exaustas no sono, embaladas pelo canto vaticinador da personagem Minha Loucura, soprano ligeiro, solista, que aponta duros embates e a distante consolidação das transformações sonhadas.

    Na loucura como forma de percepção mais acurada, "coroa de luz" do eu lírico em "Religião" e atributo do mesmo em "O rebanho", a alucinação ganha foro de iluminação, fecundada pela segunda "Chanson du fou" de "Les campagnes hallucinées" (In op. cit., pp. 30-32). A apropriação de Mário transmuta a degradação do campo ante o avanço da cidade, vivenciada pelo "fou" de Verhaeren, na grotesca passeggiata urbana, na qual, a animalização dos deputados em São Paulo satiriza os políticos de cartola, no viés da crítica à burguesia, preconizada pelo expressionismo: "Oh! Minhas alucinações!/ Vi os deputados, chapéus altos,/ sob o pálio vesperal, feito de mangas-rosas,/ Saírem de mãos dadas do Congresso…/ Como um possesso num acesso em meus aplausos/ aos salvadores do meu estado amado!…// "Desciam, inteligentes, de mãos dadas,/ entre o trepidar dos táxis vascolejantes,/ a rua Marechal Deodoro…// "Oh! Minhas alucinações!/ Como um possesso num acesso em meus aplausos/ Aos heróis do meu estado amado!…// "E as esperanças de ver tudo salvo!/ Duas mil reformas, três projetos…/ Emigram os futuros noturnos…/ E verde, verde, verde!…/ Oh! minhas alucinações!/ Mas os deputados, chapéus altos,/ mudavam-se pouco a pouco em cabras!/ Crescem-lhe os cornos, descem-lhes as barbinhas…// "E vi que os chapéus altos do meu estado amado,/ com triângulos de madeira no pescoço,/ nos verdes esperanças, sob as franjas de oiro da tarde,/ se punham a pastar/ rente do palácio do senhor presidente…/ Oh! Minhas alucinações!" (In Poesias completas. São Paulo: Martins, [1955], pp. 40-41). O refrão "Oh! minhas alucinações!", revestido de ironia, como bem se observa, reitera a denúncia.

    A associação fecunda, desencadeada talvez pelo equívoco em um imediato traduzir de chanvre (cânhamo) por chèvre (cabra que possui barbicha), marca a transposição modernista brasileira dos quatro primeiros versos da "Chanson du fou" ("Je les ai vus, je les ai vus,/ ils passaient par les sentes,/ avec leurs yeux, comme des fentes,/ et leurs barbes, comme du chanvre.") (In op. cit., pp. 30). A criação de Mário de Andrade efetua a metamorfose dos sofridos seres rurais que marcham fantasmagóricos ("Deux bras de paille,/ un dos de foin,/ blessés, troués, disjoints,/ ils s’ en venaient des loins,/ comme d’ une bataille.// "Un chapeau mou sur leur oreille,/ un habit vert comme l’ oseille;/ ils étaient deux, ils étaient trois,/ j’ en ai vu dix, qui revenaient du bois." – versos 5-13, pp. 30-31) nos deputados que desfilam grotescos na cidade e se mudam no animal de apetite voraz; desenvolve, assim, a sátira expressionista às instituições burguesas. Esta sátira intensifica-se ao apelar para a figura da cabra que ataca os "verdes esperanças, sob as franjas de oiro da tarde," clara metáfora do Brasil, situada na literatura de circunstância da exploração do aqui e agora postulada pelo modernista, também com apoio no expressionismo alemão. Sátira que continua atualíssima, pode-se dizer entre parênteses…

    Rosângela Asche de Paula, em sua tese de doutoramento "O expressionismo na biblioteca de Mário de Andrade: da leitura à criação" (2006; bolsista da Fapesp e participante do projeto temático citado), coloca "O rebanho" na chave da recriação de "Weltende", de Jakob van Hoddis (1887-1942), por parte autor de Paulicéia desvairada. Segundo esta estudiosa do nosso modernismo, o diálogo com "Weltende" ("O fim do mundo"), primeiro poema da antologia Menschheitsdämmerung, alia o esboço de uma tradução, sobreposto a lápis ao texto impresso, à reverberação de imagens que, em "O rebanho" e "Ode ao burguês", se afinam com a sátira, com o escárnio expressionista ao burguês. O primeiro verso do apocalíptico "Weltende" – "O chapéu do burguês voa da cabeça pontuda (chifruda)" – ressoa nos versos em que o poeta de Paulicéia desvairada, no epíteto "chapéus altos" (cartolas), qualifica os deputados. A alucinação/ lucidez extrema-se ao recorrer ao animal, e parte assim para a invectiva ao político burguês, cuja cartola lhe esconde os cornos, invectiva que continuará, sem peias, conforme a percuciente análise da jovem crítica, na "Ode ao burguês", no mesmo livro de 1922. Com uma pitada do humor dadaísta, acrescenta-se.

    É preciso ainda lembrar que a loucura que denuncia e vaticina, linha de força em Paulicéia desvairada, será condensada na função do vate, poeta/profeta, conferida ao eu lírico, na poesia da maturidade de Mário de Andrade, em 1937, no nono verso de "Brasão" – " ‘Eu sou aquele que veio do imenso rio’ " –, em "A costela do Grã Cão" (In Poesias completas; ed. cit., pp. 352). Virá ainda na endeixa visionária da Mãe, em Café, concepção melodramática em três atos, concluída em 1942 (In op cit., pp. 476-478), na qual esta personagem redimensiona a solista Minha Loucura, do oratório de 1922. "Eu sou aquele que" e "eu sou aquela que disse" dialogam com o refrão da terceira "Chanson du fou" em "Les campagnes hallucinées" (In op. cit., pp. 71-74), "Je suis celui qui vaticine/ comme les tours tocsinnent.", revelador, aliás, da leitura de Verhaeren do profeta Isaías (capítulo 51, versículo 12) e do Apocalipse (capítulo 1, versículo 23).

    A loucura e o vaticínio convivem em Paulicéia desvairada com a expressão "arlequinal", adjetivo e advérbio que se incumbe de traduzir a cidade multifária, na qual o diálogo com Verhaeren reaparece no veloz verso harmônico em "Rua de São Bento" – "A cainçalha… A Bolsa… As jogatinas…" –, da condenação da bolsa de valores, esteio do capitalismo em todas as metrópoles, captada em "La bourse", em Les villes tentaculaires (In op. cit., pp. 156-162). Arlequinal ou brasileiro traje de losangos, na verdade, espelha a construção dessa obra, para a qual concorrem tantas leituras.

     

    Telê Ancona Lopez é professora titular da área de literatura brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma universidade. Foi presidente da Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário (APML), na gestão 1997-1999.

     

     

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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    Jackson, H. J. Marginália: readers writing in books. New Haven/ London, Yale University, 2001.

    Lopez, Telê Ancona. "A biblioteca de Mário de Andrade: seara e celeiro da criação". In: Zular, Roberto, org. Criação em processo: Ensaios de crítica genética. São Paulo, Iluminuras/ Fapesp, 2002, p. 45-72.

    Neefs, Jacques. "Marges d’ombre". In: Hugo dans les marges. Lucien Dällenbach et Laurent Jenny (org.). Paris, Zoë, p.91-117.

    Rouveyre, Edouard. Dos livros. Trad. Claire Levys. Rio de Janeiro. Casa da Palavra, 2003.