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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725versão On-line ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. v.59 n.4 São Paulo  2007

     

     

    O PAPEL DA FORMAÇÃO DE PESQUISADORES NO SISTEMA DE INOVAÇÃO

    Léa Velho

     

    Estudos sobre inovação têm indicado, sistematicamente, a importância do sistema de ensino superior (1) para a inovação tecnológica. Essa contribuição, que tem sido capturada pelo uso de diferentes metodologias e analisada por um grande número de autores (2), pode se dar de várias maneiras. Primeiramente, as instituições de ensino superior produzem resultados de pesquisa que podem ser diretamente apropriados pelas empresas no seu processo de inovação – seja para solução de problemas, seja para a criação de novos processos e produtos. Da mesma forma, as empresas podem utilizar instrumentos e técnicas de pesquisa desenvolvidas pelas universidades (por exemplo, modelos computacionais e protocolos laboratoriais) para o desenho e teste de sistemas tecnológicos. Além disso, e com destaque especial, as universidades produzem profissionais e pesquisadores qualificados. Estes, ao serem incorporados pelas empresas e outros setores da sociedade, levam consigo não apenas conhecimento científico recente, mas também habilidades para resolver problemas complexos, realizar pesquisa e desenvolver novas idéias. Esse pessoal possui também habilidade tácita para adquirir e usar conhecimento de maneira inovadora, além de deter o que alguns autores chamam de "conhecimento do conhecimento", ou seja, sabem quem sabe o que, pois participam das redes acadêmicas e profissionais no nível nacional e internacional. Quando se engajam em atividades fora do meio acadêmico, os profissionais e pesquisadores tendem a imprimir em tais contextos uma nova atitude mental e espírito crítico que favorecem as atividades inovativas.

    Em suma, em meio a todos os benefícios que o sistema de educação superior pode gerar para o processo de inovação – seja para o setor produtivo, seja para a sociedade como um todo – a formação de recursos humanos parece ser o mais importante. Esse é um tema em que os estudiosos da inovação das mais variadas tendências estão de acordo. O clássico documento Science the endless frontier, de autoria de Vannevar Bush, que tinha uma visão linear do processo de inovação, já afirmava a importância de uma massa crítica de pesquisadores competentes para a inovação tecnológica e a competitividade dos países (Bush, 1945). Da mesma forma, os modelos alternativos desenvolvidos nos últimos 15 anos sobre produção e uso do conhecimento(3) também convergem quanto à importância que atribuem às universidades nos processos de inovação, principalmente através de sua atividade de produção de conhecimento e de formação de recursos humanos. Talvez a evidência mais clara desse pensamento seja a declaração de que "a contribuição mais significativa da universidade para a sociedade e para a economia vai continuar sendo a formação de graduados com cabeças críticas e boa capacidade de aprendizado" (Lundvall, 2002: 1). E, para isso, recomenda-se que "o objetivo da política deveria ser a criação de uma ampla e produtiva base científica, estreitamente ligada à educação superior (e particularmente à pós-graduação)" (Pavitt, 1998: 803).

    Apesar do consenso entre os autores analisados a respeito dos benefícios econômicos e sociais derivados do capital humano formado pelas universidades, tais benefícios não são automáticos. Tais benefícios só ocorrem, ou têm muito maior chance de ocorrer, quando algumas condições específicas estão presentes. Este artigo trata especificamente da análise de algumas dessas condições, com foco no caso brasileiro: São elas: a existência de um sistema nacional de pós-graduação sustentável; a relação entre as áreas de conhecimento em que se formam pesquisadores e os problemas nacionais; a qualidade da formação para as atividades a serem desempenhadas pelos titulados; e a inserção profissional dos titulados. Finalmente, sintetiza e coloca juntas as linhas do argumento.

    EXISTÊNCIA DE SISTEMA NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO SUSTENTÁVEL Evidentemente, para que o sistema de ensino superior possa contribuir com a formação de pesquisadores para o processo de inovação, é necessário que exista um sistema de pós-graduação operante e sustentável e que esteja formando o número necessário de titulados.

    Em meados dos anos 1960, o Brasil decidiu investir na formação de pesquisadores, tendo as universidades públicas como base institucional principal e como locus privilegiado os programas de pós-graduação. Ao longo de toda a década de 70 foram criados cerca de 800 novos cursos de mestrado e doutorado (Durham e Gusso,1991). Quinze anos mais tarde, no início dos anos 90, o número de cursos já ascendia a quase 1.500, abrangendo todas as áreas do conhecimento (Martins, 2003). No final de 2004, havia cerca de 2.000 cursos de pós-graduação stricto sensu no país, sendo 1912 de mestrado e 988 de doutorado. Esses cursos formaram 27.186 mestres e 8.856 doutores, com um contingente de estudantes que alcançava a casa de 112.000 mil (MCT, 2006).

    Comparações internacionais entre titulados na pós-graduação raramente incluem o mestrado. Informações sobre doutores formados nos diversos países são mais comumente usadas nas comparações internacionais. Em números absolutos o Brasil forma um contingente razoável de doutores, conforme se constata na Tabela 1. Em 2003 mais doutores foram titulados no Brasil do que na Coréia do Sul e os números brasileiros tendem a aproximam-se daqueles do Reino Unido e da França que crescem muito mais lentamente.

     

     

    Apresentados os números, algumas perguntas se colocam. Primeiramente, o sistema de pós-graduação está formando mestres e doutores em número suficiente? Não existe resposta única para essa pergunta – depende do que se pretenda. Se o projeto for equiparar-se aos países da OCDE, ainda estamos longe: esse países produzem, em média, 1 doutor para cada 5.000 habitantes, enquanto o Brasil produz 1 doutor para cada 28.000 habitantes (World Bank, 2002). O argumento de boa parte da comunidade científica brasileira, assim como dos gestores e tomadores de decisão em C&T é que há necessidade de aumentar o número de doutores, tendo como meta os valores relativos exibidos pelos países avançados. E a política para a pós-graduação caminha nessa direção.

    Mas, até quando é possível crescer com base exclusivamente nos recursos públicos, como tem sido feito até hoje? Ou seja, a política de expansão nesse ritmo é sustentável, tanto do ponto de vista financeiro como do aumento de oferta de vagas, com qualidade, à luz da capacidade instalada? Essas questões certamente não estão suficientemente discutidas, nem equacionadas.

    Sabe-se que a expansão ocorrida deu-se graças a uma política de bolsas bastante generosa para os cursos considerados de boa qualidade. Estudo realizado na década de 90, por exemplo, encontrou que entre todos os estudantes de pós-graduação matriculados, cerca de 80% teve bolsa em algum momento de seus estudos (Velloso e Velho, 2001). Atualmente, não é mais assim; o número de bolsas tem crescido a uma taxa muito mais baixa que o número de alunos. Em 2000 havia 46.500 mestrandos e doutorandos para um total de 16.466 bolsas (1 bolsa para cada 2,8 alunos) e em 2004, o contingente de alunos ascendeu a 111.294 e as bolsas eram 18.807 (1 bolsa para aproximadamente 6 alunos). Com o aumento contínuo de alunos de pós-graduação que se preconiza, é fácil imaginar que as bolsas vão ficar cada vez mais escassas. Formas alternativas de financiamento da pós-graduação terão que ser pensadas. Os dados apresentados parecem indicar que o Brasil conseguiu criar um sistema de pós-graduação que está em contínua expansão, mas ainda não atingiu um patamar considerado desejável em termos numéricos, quando comparado com os países avançados. Além disso, a sustentabilidade financeira, e talvez também a física, para continuar o ritmo de expansão desejado ainda não foram equacionadas

    ÁREAS DO CONHECIMENTO E PROBLEMAS NACIONAIS A literatura especializada tem sugerido, consistentemente, que a relação causal entre desenvolvimento científico e tecnológico é no sentido do último para o primeiro. Ou seja, a direção da pesquisa científica de um país sofre forte influência da natureza dos problemas sociais e tecnológicos nacionais (Pavitt, 1998).

    É por essa razão, ou seja, porque os países se especializam em determinadas áreas científicas de acordo com seus requerimentos sociais, que o product-mix científico tende a variar de país para país. Essa variação pode ser percebida tanto pelo número de pesquisadores ativos nas diferentes áreas, como pelo número de novos pesquisadores formados por área, assim como pela participação de cada área na produção científica nacional – elementos que guardam, obviamente, uma relação direta entre si. Desses três indicadores, o número de novos pesquisadores formados por área é aquele que melhor retrata as relações do sistema científico com as necessidades sociais porque reflete não apenas as demandas históricas (dado que a formação de novos pesquisadores exige que exista um potencial instalado e massa crítica em determinada área para ela possa se reproduzir), mas também o impacto de políticas recentes para incentivo a áreas consideradas estratégicas (tais como programas especiais de formação de pesquisadores em, por exemplo, genômica ou nanotecnologia).

    Observando os dados da Tabela 1 sobre participação das áreas do conhecimento no número de doutores formados em diferentes países nota-se, de fato, que cada um deles enfatiza certas áreas e coloca menos esforço em outras. Entre os países avançados e com longa tradição científica – França, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos – a França coloca muito mais ênfase nas ciências físicas e biológicas, matemática e ciência da computação (quase metade dos titulados foram nessas áreas) do que os outros três. Estes últimos, na verdade, têm uma distribuição de titulados por área bastante próxima que, segundo alguns autores, é o padrão de países que puderam criar sua base de produção de conhecimento paulatinamente, ao longo de um largo período e que, portanto, a desenvolveram em todas a áreas.

    Alguns países de industrialização mais tardia (incluindo Japão, Coréia do Norte e China) têm formado significativamente mais engenheiros, em termos proporcionais, do que os demais, o que provavelmente se reflete no (ou é reflexo do) crescimento explosivo de suas capacidades tecnológicas e conseqüente competitividade industrial. Pavitt (1998) explica que nos estágios iniciais do desenvolvimento econômico dos países que foram bem-sucedidos em catching up, as exigências da indústria estimularam o desenvolvimento das áreas científicas relacionadas, quais sejam, as engenharias.

    E como analisar o caso brasileiro nesse contexto? A Tabela 1 mostra que a distribuição de novos pesquisadores por área no Brasil é bastante semelhante à dos Estados Unidos, um país com base científica e tecnológica "madura", com exceção da área de ciências agrárias que é, relativamente, muito mais enfatizada no Brasil (quase 13% dos doutorados concedidos, ao passo que nos Estados Unidos ela é inferior a 3% dos títulos). A forte presença das ciências agrárias no Brasil certamente reflete uma sinalização da economia nacional historicamente assentada na exploração de recursos naturais.

    Por outro lado, ao contrário dos países de industrialização tardia como a Coréia do Sul, proporcionalmente poucos doutores em engenharia são formados no Brasil (quase 30% dos novos doutores na Coréia e apenas 13% dos titulados são nas engenharias no Brasil). De maneira análoga ao que se argumentou no parágrafo anterior, essa diferença está provavelmente relacionada com demandas da indústria que ocorrem lá e que não têm lugar aqui. De fato, como se verá mais adiante, a não absorção dos doutores pelas empresas brasileiras provavelmente serve de desestímulo para aqueles que, em outras condições de mercado de trabalho para pesquisadores, poderiam se interessar em fazer o doutorado nas engenharias.

     

     

    Em termos da participação de áreas de conhecimento na composição do estoque de novos pesquisadores é razoável concluir que os processos dinâmicos de relação entre o setor científico e o tecnológico não foram plenamente estabelecidos no Brasil. Eles estão presentes no caso do setor agrícola, mas não do setor industrial. Nessas circunstâncias, a dinâmica do sistema de pós-graduação acaba sendo determinada pelos processos internos ao desenvolvimento científico mesmo. Em outras palavras, na falta de demandas ou sinais fortes da sociedade sobre a direção que deve tomar a formação de recursos humanos para pesquisa, o jogo acaba envolvendo apenas os atores acadêmicos que se espelham no que fazem seus pares no exterior, tendem a reproduzir a si mesmos e a "proteger" suas áreas de conhecimento na competição por recursos públicos com as demais áreas.

    QUALIDADE DA PÓS-GRADUAÇÃO A formação de novos pesquisadores só pode ter impacto positivo para os processos de inovação e para o desenvolvimento se houver qualidade no treinamento oferecido. Desde a criação formal da pós-graduação no Brasil houve uma preocupação em criar um sistema de avaliação dos cursos. O Sistema de Avaliação da Pós-graduação foi criado em 1976 e, desde então, vem aprimorando seus procedimentos em diálogo constante com a comunidade acadêmica. O sistema está de tal modo incorporado nas atividades dos cursos que o cumprimento dos requisitos exigidos tem direcionado a dinâmica de todos eles. Há uma forte tendência à padronização dos cursos de todas as áreas, empurrando-os a um "modelo único de qualidade". Apesar dos critérios de avaliação serem múltiplos e variados, há, sem dúvida, um maior peso conferido às publicações científicas oriundas dos professores e estudantes dos cursos. Publicar é certamente um indicador chave de desempenho do sistema de pesquisa, mas é extremamente parcial. Outros fatores são cruciais para a translação do mundo da pesquisa para a inovação tais como, o treinamento de estudantes; o trabalho conjunto com usuários da pesquisa (seja a empresa, seja outro qualquer segmento social), a comunicação de resultados através de outros meios menos tradicionais, incluindo o envolvimento em projetos, oficinas, publicações eletrônicas, artigos de divulgação etc. Quando se busca estimular a colaboração entre os que trabalham na universidade e os demais segmentos da sociedade, é necessário valorizar produtos resultantes dessas interações, que nem sempre são publicações.

    Outra faceta importante da qualidade da pós-graduação refere-se ao tipo de formação oferecida. A pergunta que se faz aqui é: os pós-graduados recebem uma formação que lhes permite desempenhar de maneira eficiente e com qualidade as atividades que ocupam quando se titulam? Evidentemente, essa questão pode ser respondida de duas perspectivas diferentes: a dos titulados mesmos, e a dos empregadores.

    São poucos os estudos que se preocuparam em responder a essa pergunta no Brasil, e nenhum deles o fez a partir da perspectiva dos empregadores. Poucos estudos buscaram a opinião dos titulados da pós-graduação sobre a satisfação no trabalho e o preparo que haviam recebido (Gunther e Spagnolo,1986; Velloso, 2004). No mais recente desses estudos, tanto os mestres como os doutores ouvidos na pesquisa manifestaram satisfação com a experiência em pesquisa que receberam durante a formação. O nível de satisfação dos doutores foi ainda mais alto que o dos mestres. Isso se explica pelo fato de que uma parcela muito maior dos doutores do que dos mestres encontrou trabalho no meio acadêmico. Os mestres que tinham ocupação fora do setor acadêmico tinham uma visão, em geral, mais crítica da formação que receberam e tendiam a considerar a experiência adquirida em pesquisa como pouco relevante para as atividades que realizam. Ainda que os doutores, tomados em seu conjunto, tenham indicado alto nível de satisfação com o conteúdo do programa de doutorado, quando desagregados os dados por grandes áreas do conhecimento encontrou-se um significativo descontentamento entre os engenheiros que não seguiram carreira acadêmica. O que esses resultados indicam, portanto, é que os cursos de mestrado e doutorado no Brasil formam pesquisadores para a carreira acadêmica e, na opinião dos formados, fazem isso bem. Entretanto, esses cursos não estão preparando mestres e doutores para trabalhar em outros contextos institucionais.

    Resumindo, a formação de pós-graduação no Brasil conseguiu construir um sistema de avaliação com critérios bem definidos, constantemente aperfeiçoados, de tal forma que hoje goza de credibilidade perante a sociedade e também no exterior. Graças a esse sistema, é possível saber a qualidade dos cursos, vários deles considerados de nível internacional. Entretanto, essa qualidade é definida unicamente com base nos valores internos à ciência, não havendo, entre os critérios adotados, qualquer um que estimule a interação dos pesquisadores e alunos com o meio externo à universidade. Em conseqüência, os egressos da pós-graduação são preparados exclusivamente para desempenhar atividades acadêmicas e percebem, quando encontram trabalho em outros contextos institucionais, que a formação que tiveram não os preparou bem para aquela função.

    INSERÇÃO PROFISSIONAL O monitoramento da inserção profissional dos mestres e doutores formados no Brasil é bastante deficiente. A informação disponível sobre isso restringe-se a alguns poucos estudos que, ocasionalmente, tentaram, com enorme esforço, localizar os mestres e doutores, aplicar questionários a uma amostra representativa destes e, então extrapolar o local de trabalho do universo todo.

    O estudo mais abrangente com mestres e doutores titulados em toda a década de 90 para 15 áreas do conhecimento (4) foi coordenado por Velloso (2004). Os resultados, agregados em três grupos de grandes áreas do conhecimento, revelaram o local de trabalho em que se encontram os egressos da pós-graduação do período estudado, conforme Tabela 2.

     

     

    Os dados revelam que o trabalho dos mestres formados é bastante diversificado. A maior parcela deles (cerca de 40% nas áreas básicas e 32% nas áreas profissionais) trabalha nas universidades. Para aqueles das áreas tecnológicas, a universidade foi o destino de 30% e as empresas públicas e privadas absorveram a maior parcela dos mestres formados (quase 40%). As empresas públicas e privadas, por sua vez, empregam algo em torno de 17% dos mestres formados nas áreas básicas e tecnológicas, parcelas maiores do que a de mestres empregados pelas instituições de pesquisa, mas menores do que aquela absorvida pela administração e serviços públicos. Como a pesquisa não separou empresas públicas das privadas, é impossível saber que proporção desses mestres foi contratada pelo setor privado.

    O emprego da maioria dos doutores continua sendo a universidade pública em todas as grandes áreas. Tomando em conjunto as universidades e as instituições de pesquisa, pelo menos 80% dos doutores das áreas básicas e das tecnológicas têm empregos onde desempenham atividades de pesquisa. Uma parcela muito pequena de doutores de áreas básicas e das profissionais encontra ocupação em empresas públicas e privadas. Essa parcela sobe para 12% entre os doutores das áreas tecnológicas, mas não se sabe quantos são empregados pelo setor privado.

    Os resultados dessa pesquisa (Velloso, 2004) confirmam os levantamentos realizados pela Pintec e pela PNAD/IBGE. Ou seja, a empresa privada no Brasil é extremamente tímida, para colocar de maneira leve, na absorção de doutores. Conforme dados da PNAD, o setor privado em 2004 empregava apenas 3 mil doutores no total, sendo que a pós-graduação brasileira forma mais de 8 mil doutores por ano.

    A literatura especializada aponta que sem pessoas de nível superior (com destaque para os doutores) trabalhando na empresa, a probabilidade de que essa empresa busque as universidades quando se depara com um problema é mínima. Isso significa que as soluções encontradas dificilmente levarão a inovações baseadas em conhecimento científico (Gibbons and Johnston, 1974). Estudos recentes sugerem que existe uma relação positiva entre número de doutores envolvidos em P&D industrial e output tecnológico. Ademais, esse efeito não se restringe a indústrias de alta tecnologia, mas aplica-se a todo o setor industrial (Hansen, 2006).

    Em suma, para que os recursos humanos qualificados pelo sistema de pós-graduação possam gerar benefícios para os processos de inovação, é necessário que tais mestres e doutores sejam absorvidos pelas empresas. Sem eles as empresas não têm a capacidade interna necessária para buscar, fora de si mesma, soluções inovadoras para seus problemas e dificilmente conseguirão gerar inovações baseadas em conhecimento. Na situação atual no Brasil, em que as empresas não contratam os egressos da pós-graduação, é pouco provável que o investimento público que se faz nessa atividade possa reverter em maior atividade de inovação.

    NOTA FINAL O sistema de ensino superior desempenha papel proeminente nos sistemas de inovação, servindo uma série de funções. De todas elas, a formação de recursos humanos qualificados é considerada, de forma unânime pelos autores, como sendo a mais importante. Entre os recursos humanos qualificados, destaque é dado àqueles treinados no nível de pós-graduação, quais sejam, mestres e doutores.

    Houve um momento, quando foi criado o modelo de pós-graduação vigente, em que a política via uma clara divisão de trabalho entre as universidades que formavam pessoal qualificado e os demais segmentos sociais. Os primeiros produziam conhecimento e os últimos os utilizavam. Essa compreensão dos processos de produção e uso do conhecimento se modificou e nos permitiu entender que é necessário que certas condições estejam presentes para que os recursos humanos treinados pelo sistema de pós-graduação possam gerar os benefícios prometidos. Em outras palavras, a mera existência de mestres e doutores não gera benefícios de maneira automática. Para que isso ocorra, identificamos algumas condições que provavelmente não são suficientes, mas certamente são necessárias para que esses benefícios tenham lugar.

    As condições aqui discutidas e analisadas para o caso brasileiro foram: a existência de um sistema de pós-graduação que forme o número necessário de pesquisadores e que seja sustentável; que a composição das áreas de conhecimento enfatizadas pela pós-graduação seja capaz de refletir as necessidades nacionais; que a formação oferecida tenha qualidade e relevância para as ocupações a que se dedicarão os titulados; que haja inserção dos titulados em atividades e carreiras profissionais fora do setor acadêmico. De acordo com o argumento desenvolvido, a presença de tais condições indicaria que a pós-graduação brasileira estaria funcionando de acordo com os novos modelos interativos sobre produção e uso do conhecimento.

    A análise revelou que o ensino de pós-graduação brasileiro tem se expandido consideravelmente, formando contingentes crescentes de mestres e doutores, mas ainda teria que crescer muito para se equiparar aos índices praticados nos países avançados. Por outro lado, vai ser difícil manter esse nível em expansão apenas com recursos públicos, o que coloca em risco a sustentabilidade do sistema.

    Em termos de áreas, evidências sugerem que o crescimento da pós-graduação se deu com base em critérios estritamente científicos. Aparentemente há pouca relação entre as necessidades da sociedade e da economia e as áreas enfatizadas pela pós-graduação, com exceção das ciências agrárias. Evidentemente não há uma negativa do setor em atender a tais necessidades, mas sim uma ausência de demandas por conhecimento e recursos humanos por parte da sociedade, dada a debilidade das relações entre essas duas esferas.

    A qualidade dos cursos é avaliada de maneira sistemática, sinalizando aqueles que têm excelência, e negando funcionamento para os despreparados para a tarefa de formação. Qualidade, entretanto, é definida por critério limitados, exclusivamente internos ao sistema social da ciência, sem incentivos de recompensa para atividades alternativas. Os egressos dos programas, desde que estejam empregados em universidades, estão satisfeitos com a formação. Entretanto, a percepção daqueles que se dirigiram para empregos fora da academia é de que não estão totalmente preparados para as tarefas que desempenham. Sentem falta, especificamente, de habilidades e competências relacionais, interativas, de negociação, que a dinâmica de inovação requer.

    Finalmente, muito do que se analisou nas condições acima deriva do fato de que a inserção de pós-graduados nas empresas é mínima. Deste fato, já bastante conhecido nosso, derivam várias conseqüências. A questão é como enfrentar esse problema. Certamente a solução extrapola os limites da política nacional de pós-graduação.

     

    Léa Velho é professora titular em estudos sociais da ciência e da tecnologia junto ao DPCT da Unicamp. Pertence aos grupos de pesquisa do CNPq: Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia, e Análise de Políticas de Inovação, ambos da Unicamp.

     

     

    NOTAS

    1. O que se chama de "sistema de ensino superior" neste texto refere-se ao conjunto das instituições que combinam atividades de ensino de terceiro grau com atividades de pesquisa. Para designar o mesmo conjunto de instituições usam-se também aqui os termos "universidades" e "setor acadêmico", assim como "academia".

    2. Ver, entre outros: Gibbons and Johnston (1974); Mowery and Rosenberg (1989); Rosenberg (1992); Faukner, Senker and Velho (1995); Meyer-Kramer and Schmoch (1997); Pavitt (1998); Salter and Martin (2000).

    3. Por exemplo, o modelo de "ator-rede" (Callon, 1987); a "hélice tripla" (Etzkowitz and Leyderdorff, 2000); "sistemas de pesquisa em transição" (Ziman, 1994); "sistemas nacionais de inovação" (Freeman, 1987; Lundvall, 1992; Nelson,1993); Modo 1 e Modo 2 de produção de conhecimento (Gibbons et al, 1994); e o "sistema de pesquisa pós-moderno" (Rip and van der Meulen, 1996).

    4. Administração, engenharia elétrica, física, química, agronomia, bioquímica, clínica médica, engenharia civil, sociologia, direito, economia, geociências, engenharia mecânica, odontologia, psicologia.

    5. As grandes áreas de conhecimento neste estudo correspondem a: áreas básicas – agronomia, bioquímica, física, geociências, química e sociologia; áreas tecnológicas – engenharia civil, engenharia elétrica e engenharia mecânica; áreas profissionais – administração, clínica médica, direito, economia, odontologia e psicologia.

     

    BIBLIOGRAFIA SUGERIDA:

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