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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.60 no.3 São Paulo Sept. 2008

     

     

    ALEXANDRE BONAFIM

     

     

    O FILHO DE MARIA

    Tinha os olhos azuis, intensamente tristes. Os cabelos brancos e um sorriso sem dentes. Era louca e todas as outras crianças, assim como eu, tinham medo dela. Lavadeira, sempre carregava uma sacola repleta de fotografias. No fundo de sua loucura, havia qualquer coisa de mágico. Um lirismo de humanidade reluzia no absurdo de sua alienação. Era uma criança também, menina perdida no interior da loucura.

    De todos os seus comportamentos estranhos, tais como gritar pelas ruas, andar com roupas imundas (justo ela, a mulher que lavava as roupas dos outros), dentre outros tiques e manias, o ato de carregar sempre uma sacola repleta de fotografias, causava-me encantamento e atração.

    Certa vez, minha mãe adoeceu e precisou de alguém que a ajudasse com os afazeres domésticos. Então Maria, a louca, passou a freqüentar a nossa casa, a lavar as roupas de toda a minha família. No bairro pobre, quase nenhuma dona de casa tinha uma máquina de lavar. As mulheres todas, assim como minha mãe, tinham de suar para trazer todos limpos e bem vestidos. Eu gostava de ver as mãos das lavadeiras lutando contra a pedra dos tanques, pelejando contra a imundice do mundo. Muitas cantavam e o canto enchia as casas de uma alegria viva.

    Eu ficava atrás das portas, na soleira das paredes, observando-a de longe. Maria esfregava as roupas com estranho carinho. Apascentava a fúria dos tecidos, a impaciência de costuras, a alegria de botões coloridos, de golas amarfanhadas. De todas as lavadeiras, era a única que não cantava. Nunca ouvira dizê-la uma palavra sequer. Comunicava-se por grunhidos e gestos. Ao invés de cantar, contentava-se em ter, ao lado das pernas, a sacola com as fotografias.

    Hoje, fico a imaginar que a imagem no papel era-lhe uma memória a trasbordar para além do corpo. Todos os seus parentes mortos permaneciam ali, vivos, naquela sacola suja. A eternidade acompanhava Maria em todas as casas. Os rostos de seus amados estampados nos papéis amarelecidos eram o seu alimento, sua respiração, sua fé. Um dia, estava eu atrás da porta a bisbilhotar o trabalho de Maria, quando aconteceu: Maria olhou com olhos medonhos, para a frincha da porta. Parecia um fantasma de olhos vesgos. Eu engoli meu medo com um tremor gelado. Maria sabia que estava sendo observada. Talvez ela me batesse, talvez ela até me matasse. Num rompante, ela puxou a porta que dava para a varandinha e, com a cara amarela, se pôs à minha frente, gigante medonho e desgrenhado. Quanto tempo durou esse átimo? Talvez todo o tempo de minha infância. Então, repentinamente, Maria começou a sorrir, um sorriso tão triste, tão doce, que me causou mais receio ainda. Com os dedos descarnados, pegou minha mão. Em meu pânico, em meu fascínio pelo desconhecido, deixei-me levar. Me puxou até a varandinha e me abriu a sua sacola. De lá, tirou uma fotografia precisa e me estendeu. No papel, um menino com gravata e chapéu sorria. A fotografia era velha e o sorriso do menino estava quase apagado. O rosto do menino era tão parecido com o meu… Aquela face de papel tinha os contornos do meu próprio semblante. A criança era, na verdade, eu mesmo; era o meu ser muito antes do meu nascimento. Era minha existência embrionária, em estado placentário. Desesperado, joguei a foto na sacola e saí correndo em busca de minha mãe. Mas qual outra mãe teria, agora, além de Maria?

     

     

    Alexandre Bonafim é natural de Belo Horizonte, atualmente mora em Franca, interior de São Paulo. É mestre em literatura brasileira pela Unesp, de Araraquara, com a dissertação. "A graça poética do instante: poesia e memória na obra de Rubem Braga". Atualmente, é doutorando pela USP e estuda os aspectos do sagrado na obra de Dora Ferreira da Silva e de Sophia Mello Breyner Andresen. É poeta, contista, crítico literário. Publicou os seguintes livros de poemas: Biografia do deserto e A outra margem do tempo.