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    Ciência e Cultura

    versão impressa ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.63 no.1 São Paulo jan. 2011

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252011000100025 

     

    Evandro Affonso Ferreira

     

     

    É domingo. Chove choro. Minha tristeza é seca. Efeito natural dela melancolia árida. Pranto que torce-retorce o íntimo; desalento que chega guiado pelo sopro da morte. A vida é ruim; eu sei. Mas a não existência me amedronta. Este não saber o que acontece depois que viramos a esquina me desespera; pelo silêncio de todos desde toda a eternidade parece que não há nada lá; nem lágrimas de Heráclito nem sorriso de Demócrito; mas também poderá ser silêncio justificável: encontraremos o planeta dos seres-da-mudez-eterna; lugar no qual se prescinde solenemente do subterfúgio da fala; da sagacidade da palavra; planeta do idioma-sentimento; seremos possivelmente asas que voam suprimindo pássaros. Sei que tenho medo. Acho que vou pedir torta de peras ao vinho. Espero que dê tempo. Para a senhora de humor refinado deu; aquela de vestido preto que estava na sexta mesa à esquerda assim que cheguei nesta mesa-mirante. Agora me arrependo de não tê-la convidado para sentar-se comigo; falaríamos antes de tudo dos chistes preferidos dele judeu psicanalista de Viena – este que escreveu interessante texto falando do luto falando da melancolia. Sempre privei da intimidade desses substantivos; minha tristeza é congênita; meu sentimento de pesar me acompanha há sete décadas sem conseguir percorrer toda a sua trajetória. Senhor decrépito sentado à mesa da outra confeitaria não conteve sua felicidade com repentina chegada de amigo igualmente vítima da decrepitude. Também ficaria feliz se minha amiga filósofa entrasse de súbito neste templo moderno. Mas não virá: posso vê-la; está escrevendo seu novo romance; exatamente neste trecho: se eu pudesse mover as estacas que me fincam ao chão no comando do poder de ir e vir impedindo qualquer arrebatamento da vontade e tornando-me esta imensa réstia de potências irrealizáveis. Não nos veremos face a face nunca mais: estou encerrando minha vida nesta manhã tempestuosa de domingo que parou para mim. Trovões às vezes se confundem com relinchos de quatro cavalos – possivelmente. Sei-sinto-pressinto que estão na rua de trás. Tocaia. Espreitando talvez chegada dele contundente-definitivo-fatal sinal de pontuação. Pode ser também que tudo seja delírio provocado pelo nom plus ultra do sentimento de tristeza – a melancolia. Sei que depois desta tempestade não haverá arco-íris. Adeus minha amiga. Lembrei-me de súbito da quase-quinta aquela em que você me disse que sabe feito eu que a vida é ruim – mas que não devemos contar isso para os pequenos. Sim: não é aconselhável servir de arauto transmitindo às crianças tal desígnio inabalável. Sem considerar que maioria cresce vive tempo todo distraída sem se dar conta disso. Sei que foi comovente ver naquele momento niilismo cedendo espaço à generosidade materna. Minha mãe não foi generosa comigo se matando sem dizer adeus. Você foi mais uma vez desprendida doando-me o adeus daquela que lhe trouxe ao mundo.

    Relâmpagos resplandecem todo o espaço que circunda este templo moderno. Natureza lançando mão de seu poder iluminante para clarear meu caminho em direção ao possivelmente absoluto Nada.

     

    Evandro Affonso Ferreira. Mineiro de Araxá, radicado em São Paulo há 40 anos, Evandro Affonso Ferreira surgiu na literatura em 2000. É autor de Grogotó! (Topbooks), Araã! (Hedra), Erefuê, Zaratempô e Catrâmbias (editora 34). O trecho publicado faz parte de Minha mãe se matou sem dizer adeus, pp. 109-110, recém lançado pela Editora Record. O livro conta a história do último dia de um escritor anônimo que faz pacto com a morte para finalmente escrever um livro com começo, meio e fim.