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    Ciência e Cultura

    Print version ISSN 0009-6725

    Cienc. Cult. vol.63 no.2 São Paulo Apr. 2011

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252011000200022 

     

    David Oscar Vaz

     

    Fragmento de Trem do Atlântico

     

     

    Ana falava de si mais por insistência dele. Confessou que não se considerava portuguesa. As irmãs perderam o sotaque assim que chegaram. A humilhação por parte dos colegas de escola, implicando com sua fala e suas roupas, foi um grande incentivo para o rápido aprendizado da maneira brasileira. Que lembranças tinha de Portugal? Poucas, mas trazia em si algo das montanhas em que nascera, não sabia explicar. Se soubesse, talvez falasse de uma paisagem inóspita, do eco de vastos espaços despovoados, da persistência da pedra. Desprezava a maneira como os homens portugueses tratavam suas mulheres. Nanda dizia que nunca se casaria com um português, ela tinha mesma opinião, mais por solidariedade que por convicção. Lembrava-se que a casa em que nascera dava para um largo com o chão coberto de palha pisado por animais e gente, de outras moradas semelhantes à sua, com grandes portas e varandas, construídas com o mesmo xisto desde tempos muito antigos de reis e condes, que em guerras se fizeram senhores da terra. Fechava às vezes os olhos como num transe... Lembrava-se da lareira onde se assavam diospiros, o outro nome do caqui, da rua vista pela varanda, dos avós quase a se esmaecerem como os fotogramas de filme antigo, um velho com um cajado na mão a brincar com um cão chamado Duque, um outro velho a colher para ela uma mãozada de cerejas num dia de sol quente e depois a limpar a testa com um lenço azul e branco, uma avó de preto a ralhar e a rir, uma velhinha a descascar batatas no regaço e a deitar as cascas ao lume. Havia também a má lembrança, mais viva, da partida da aldeia com a irmã e a mãe. Adélia quis que a triste despedida fosse íntima, só com os seus, e decidira que sairiam ocultas após a ceia em família. Mas um vizinho anunciou a fuga, acordando a noite com gritos de adeus, adeus, e outros acorreram. Em pouco tempo, o povo iluminava com seus candeeiros e velas a frente da casa. Toda a gente a falar alto, a desejar felicidades e a lamentar a partida, tão meninas, coitadinhas! As sombras e as pessoas desfiguradas pela luz das velas davam à cena um tom lúgubre. Pobre Adélia, valha-me Deus! Dois daqueles espectros levantaram as pequenas no ar para as colocar em cima da carroça que as levaria ao comboio do Pocinho. As mulheres rezavam, pediam a Deus que as guardasse, e a Nossa Senhora, e a São João Baptista, e a Santa Eufêmia. E as miúdas amedrontadas desataram a chorar. E os lamentos e as rezas cresceram ainda mais, pobrezinhas!

    — Pareciam loucos, sei lá!...

    Da viagem Ana lembrava-se pouco, nada do comboio, alguma coisa do navio e do mar, mas nunca esqueceria o episódio do viajante clandestino. Anoitecia quando o descobriram. O tumulto atraiu os passageiros e as crianças correram para ver o que se passava. O detido era conduzido ao comandante pelos captores, um homem de ar altivo, que mais parecia um príncipe num desfile que um criminoso, seus pés descalços davam passos seguros. Sem ninguém esperar, num movimento ágil lançou-se na água. Susto, corre-corre, quem poderia prever atitude tão extrema?

    — Ó mãe, o homem não tinha sapatos — diziam as meninas para Adélia que não as escutava, mais preocupada em segurá-las, não fossem elas também querer fazer alguma loucura.

    — O homem não tinha sapatos!

    E elas tinham dois pares, um para o dia-a-dia, outro para as missas, enterros e festas. Estavam acostumadas a ver homens descalços, mas este era diferente. Enquanto assistiam escondidas da mãe à tentativa de resgate, Nanda fez notar a Ana que, fosse por que fosse, estavam ambas calçadas com os sapatos das ocasiões importantes, ao que a outra respondeu:

    — Então deve ser uma ocasião especial.

    O navio ficou ali dando voltas em torno do local onde o desesperado mergulhador se atirara. Uma lua minguante assistia de um ponto privilegiado ao inútil trabalho de busca, as luzes dos holofotes passaram boa parte da noite a riscar o ar e a água. Nada. O homem, que permanecerá para sempre anônimo, que devia ter em alguma aldeia distante um pai e uma mãe, irmãos, talvez uma irmã mais nova de quem gostasse muito, quem sabe uma esposa, mas que não tinha sapatos, julgou num dado momento que o melhor a fazer era escapar para o continente submerso, preferindo servir de pasto aos peixes a regressar ao país onde nascera.

     

    David Oscar Vaz é escritor e professor de literatura brasileira, publicou Resíduos, livro de contos com o qual recebeu o Prêmio da APCA e A urna, ambos pela Ed. Ateliê. Participou das antologias Ficções Urbanas, Editora Senac e Contos de Agora, áudio-livro da Editora Cores e Letras. Vencedor do concurso "Criar Lusofonia" do Centro Nacional de Cultura para a escrita de um romance, Trem do Atlântico, de onde foi retirado o trecho acima.