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    Ciência e Cultura

    On-line version ISSN 2317-6660

    Cienc. Cult. vol.65 no.2 São Paulo Apr./June 2013

    http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252013000200027 

     

    LUCAS PICCININ LAZZARETTI

     

    STRIGOI

     

    As justificativas científicas foram o primeiro refúgio que encontraram para o fato de que você havia saído de casa por fim, mas ninguém sabia ao certo quais eram as razões que levavam sua bunda a sair da cadeira de madeira na qual esteve pregado no último ano e meio, até porque não bastava pegar o argumento darwiniano e esticá‑lo até enquadrar‑se em seu caso. O fato era que você havia sido chutado, como quase todos os seres humanos já foram, mas reagiu como uma espécie de concha e ninguém foi capaz de movê‑lo de casa. (...). Passaram dois meses e nada de levantar‑se da maldita cadeira de madeira, todos chegavam a pensar que você substituíra o apego que sentia por ela e inculcara tudo em uma inocente cadeira de madeira. Foi aí que começaram as conjeturas científicas, psicológicas, médicas e, devo confessar, até mesmo espirituais, em que em um jantar fui forçado a ouvir um estúpido mencionar que sua cadeira era o apego por um deus inexistente, era a objetificação de todo o niilismo que você sentia no momento do abandono, o que, segundo o estúpido, justificava que seu processo de luto não evoluía sem religião ou espiritualidade, ficando estagnado na negação. Como eu gostaria que você entrasse naquele jantar, com a cadeira pregada na bunda, para dizer que não era por estar recluso, sentado em uma maldita cadeira, que você passara a acreditar ou precisar de deuses. Depois desse primeiro tempo as pessoas deixaram de se sentir curiosas por seu caso e quando completou oito meses em que estava em seu silêncio tumular, respondendo tudo com uns resmungos guturais, o sentimento havia se alterado, compactando todas as formas de manifestações em um único apiedar‑se, sendo uníssonas as mensagens de melhora, dando a entender que ninguém mais tinha esperança que saísse de seu mutismo. As primeiras mensagens que pretendiam servir como apoio não torraram tanto minha paciência, porque eu sei que as pessoas precisam dessas coisas para reconfortarem‑se lá naquilo que chamam de alma ou consciência (...). Sua mãe foi a primeira que buscou alegar qualquer coisa, primeiro exigindo uma posição mais incisiva de todos e por fim balançando os braços dizendo que a única solução seria interná‑lo. Afastados os corvos foi mais fácil dar tempo ao tempo e esperar que voltasse a falar, ou que simplesmente escolhesse um outro lugar para sentar. (...). Quando todos já haviam perdido as esperanças você levantou e disse um basta para aquela palhaçada, com essas palavras mesmo, depois arrumou uma mala e veio se instalar nesse quarto, nesse hospital que não é uma má escolha, mas que aumenta consideravelmente o número de adeptos que alegam encontrar justificativas científicas para o seu caso. O médico que está cuidando de você veio falar comigo, parece estar confiante em sua recuperação.(...).

    "Lembra muito o barulho estridente e agudo que faz uma coruja no meio da madrugada. Se você está andando no meio do mato esse barulho faz com que a nuca se arrepie e instantaneamente a cabeça deve se abaixar, proteger os olhos talvez. Se você está andando em uma cidade pequena, onda as corujas têm liberdade à noite, a reação é de curiosidade e espanto, uma contradição citadina, aquele animal silvestre anunciando seu território no meio do breu, impondo seu respeito perante o negrume da noite e aí você se sente um pingo de qualquer coisa. (...). No momento em que fiquei sabendo o que vinha acontecendo fui jogado na noite e pouco importava se era uma noite urbana ou não. Senti os braços perdendo sangue e a vontade de me sentar, para trazer ar para cabeça e não acabar cometendo alguma insanidade, fui me aproximando da parede e deixando a vertigem tomar conta, depois mais e mais a parede foi parecendo uma ladeira e por fim uma montanha e eu me sentia no sopé de uma erupção de tijolos brancos, em que a única possibilidade era me arrastar até o chão e esperar pelo resgate. Na manhã seguinte ela veio, já avisada que eu sabia de tudo, para colocar meu pescoço no devido lugar. Foram poucas as palavras, alguma coisa que buscava explicar tudo, com ela saindo e argumentando que era melhor daquela maneira, (...) desejei que ela fosse atropelada por um caminhão, então caminhei para dentro de casa, ajeitei minha cadeira e sentei para sentir o sangue voltar para os braços, tendo muito prazer em passar o resto do dia em silêncio e em repouso. O vento fazia o vaso de samambaia ficar girando, como se fosse uma espécie de cata‑vento esverdeado, e só percebi que o dia inteiro tinha corrido quando não consegui enxergar os meus pés dentro dos chinelos com muita nitidez. Pensei; "bem, um dia que perdi não conta muita coisa, porque nem sei direito quantos dias tenho no total, mas tudo bem ficar um dia aqui sentado, estava merecendo", para então dar conta que minha boca tinha permanecido calada por todo aquele dia. É plausível que uma pessoa entre em estado de choque com alguma perda, mas eu sabia que não havia sido uma perda, que era uma coisa habitual, (...), ficar em casa quieto foi a minha forma de acostumar‑me com o acidente, estava supondo, e ficar calado era uma opção sensata, (...). Até aí havia justificativas, perfeitamente razoáveis, mas escutei o primeiro grito, não lembro como nem onde, não sei se ele foi realmente distante ou se algum efeito, do tipo doppler, fez com que parecesse ir e vir de uma orelha para outra. Mas é certo que escutei um grito, não muito agudo, de forma animalesca, indefinido entre a dor, o desespero e a raiva. (...). Durou alguns segundos e parou, retornando ao silêncio. Meus braços começaram a sentir novamente o enformigamento e cheguei a imaginar que estivesse enfartando, (...). Na cozinha tomei um copo de qualquer coisa e fui deitar com o estômago vazio. No meio da noite fui acordado por outro grito, ainda indistinto, mas que soava mais próximo. Durou mais (...), tinha um ponto fixo, longe do meu quarto e do meu apartamento, em algum lugar no limite entre dois bairros próximos. Impossível dormir depois do grito, então levantei e preparei um chá, um resto de folhas verdes que ela tinha deixado, olhei o apartamento com as luzes apagadas, só a chama azul do fogão iluminando tudo com pouca intensidade, e fui com a xícara até a cadeira de madeira, ficando sentado o resto da madrugada e quando o dia começou não senti ânimo para levantar. No fim da tarde outra vez o grito, mas agora mais longe, como se andasse pela cidade, e mais tarde, no meio da madrugada, novamente, outro grito. Minha rotina havia sido alterada, dependia inteiramente primeiro da ansiedade em receber aquele grito e depois na agonia de ter recebido. Cogitei a possibilidade de bater no apartamento de algum vizinho e perguntar se também estavam escutando aquilo, porque eu não deveria ser o único a ouvir algo tão avolumado, mas tinha medo das reações e fiquei sentado em minha cadeira de madeira. Alguns dias chegava a escutar quatro vezes, outros dias ele aparecia uma única vez, causando uma onda de expectativa angustiosa que eu jamais havia provado. No primeiro dia esperava que ela voltasse, era também uma ansiedade, mas ela não voltou e isso já não importava, pois de alguma forma eu tinha que estar ali para o grito, para aquela demonstração de garganta diária. (...). Tem uma hora que cansa, ou que a agonia leva à precipitação. Já ouvi histórias de soldados que saíram correndo feito loucos por estarem entrincheirados por muito tempo, em um nível de apreensão esgotante. (...). (...). Tentava me convencer que era só um barulho rotineiro da cidade, ou gatos. A cidade era mais plausível, as construções, tudo se encaixava para que a calma voltasse. Mas uma noite, enquanto estava deitado, escutei o grito outra vez, só que estava perto, gritava muito perto, não distante em um bairro, gritava dentro do meu prédio, nas escadas, conseguia escutar o eco do grito nas escadas. Levantei assustado, preparei o chá um pouco afoito e fui sentar. Enquanto dava um gole o grito outra vez, agora mais perto, como se tivesse alcançando meu andar, era forte, muito forte. Na posição habitual, na cadeira de madeira, de costas para a porta de entrada, virei meu pescoço e vi a porta abrir em silêncio. Eu estava em pé, na minha frente. Eu acabava de entrar pela porta com expressão afoita. Eu abri a boca com o corpo ereto e gritei, na minha frente, olhando no fundo dos meus próprios olhos com desespero. De alguma forma eu já estava morto, gritando do além‑túmulo para minha figura viva, implorando para que ela reagisse. E quando levantei da cadeira, nascendo para minha própria morte, o grito parou de soar."

     

    Lucas Piccinin Lazzaretti, natural de Pato Branco-PR, mudou-se para Curitiba aos 17 anos, onde reside. Autor sem publicações, tradutor caseiro e estudioso sistemático da obra de Kierkegaard. O conto é inédito e foi minimamente reduzido para a presente edição.